Quando, em 1977, ano de uma mudança radical, um grupo de músicos ingleses gritou No future, parecia um paradoxo a que não se deveria dar importância. Na realidade, tratava-se de um anúncio muito sério. A percepção de futuro começava a mudar. (Berardi, 2019, p. 20).
O envelope ostenta, como remetente, a Comissão da Anistia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Embora há mais de 10 anos aguardo parecer sobre o meu processo de anistia, uma carta com decisões tomadas por um grupo de militares não é animadora. O primeiro parágrafo inicia-se com um gerúndio, quase um advérbio. “Cumprimentando-a”. Ao seguir lendo, após o cumprimento, tomo ciência de que meu pedido de anistia política fora INDEFERIDO. Escrito assim. As letras maiúsculas, gritando, com o propósito inequívoco de dirimir qualquer dúvida.
No mesmo dia, é tornada pública a Carta aos Brasileiros e Brasileiras. De maneira muito apropriada, faz referência à Carta aos Brasileiros, de agosto de 1977 e, de maneira também muito apropriada, é impossível não vincular as duas correspondências, aquela da Comissão da Anistia e esta, cuja conclusão peremptória é “Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre”.
O contexto da primeira carta, aquela lida por Goffredo da Silva Telles, merece ser revisitado.
Geisel tinha a incumbência de controlar o processo de abertura e, para tanto, não economizou esforços. Convivemos, nesse período, com os assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, em outubro de 1975 e janeiro de 1976, respectivamente; com o assassinato de Ângelo Arroio, Pedro Pomar e João Batista Drummond e as prisões e torturas de outros cinco integrantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), na chacina da Lapa em dezembro de 1976. Em primeiro de abril de 1977, Geisel lança mão do Ato Institucional N.5 (AI-5) e decreta o fechamento do Congresso com o objetivo de impor um pacote de medidas, constituído de uma emenda constitucional e seis decretos, que garantissem ao partido do governo, a Arena, o controle do Legislativo. Uma escalada terrível que acenava para o endurecimento do regime.
Por outro lado, a vanguarda se reestruturava, ampliando seu raio de ação. Organizações de estudantes, professores, associações de bairros e outras representações civis contrárias à ditadura avançavam no sentido de dar um basta à ditadura e somavam-se ao contexto desfavorável ao regime causado pelo fim do milagre econômico. A criação do Comitê de Defesa dos Presos Políticos (CDPP), em 1974, e a missa ecumênica por ocasião do assassinato do jornalista e professor Vladimir Herzog, no ano seguinte, inauguram uma crescente movimentação de setores já bastante insatisfeitos com as arbitrariedades. Em 1976, vários Diretórios Centrais de Estudantes são criados à revelia dos atos de exceção. As discussões contra o ensino pago e as péssimas condições do ensino superior, temas recorrentes em reuniões dos centros acadêmicos, culminam com a volta às ruas após anos de retração. Com ampla cobertura da imprensa (1), em 30 de março de 1977, os estudantes driblam a Polícia Militar sob o comando raivoso do Cel. Erasmo Dias, em São Paulo, e promovem a primeira manifestação pública desde a promulgação do AI-5.
No mês seguinte, na madrugada de 28 de abril, fui presa com José Maria de Almeida e Celso Giovanetti Brambilla. Na época, trabalhávamos em indústrias metalúrgicas de São Bernardo do Campo e militávamos em uma organização clandestina trotskista, a Liga Operária. Eu havia trancado o curso de História na Universidade de São Paulo (USP) para militar no movimento operário. Nossos depoimentos, acerca das torturas e maus tratos, tornaram-se públicos através da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo, portanto não me estenderei aqui mais uma vez nos detalhes das prisões. O fato é que, a partir do momento em que meus companheiros de organização fizeram a denúncia dessas prisões, se desencadearam várias mobilizações. A denúncia foi feita em uma assembleia ocorrida no anfiteatro do Departamento de História da USP. Cerca de 300 estudantes, sensibilizados com os discursos de operários do ABC paulista e militantes da Liga Operária, fizeram alastrar pelo país inúmeras passeatas (2).
PODCAST EOL | MÁRCIA BASSETTO PAES
A fantástica reação em cadeia dos atos que reivindicavam a imediata liberdade de todos os presos políticos, bem como a volta dos exilados, nos fez presenciar um salto qualitativo na história da luta contra a ditadura no Brasil. Não se tratava mais de questões específicas como a melhora da qualidade do ensino público, mas o olhar se lançava para o restabelecimento imediato das Liberdades Democráticas e o fim da ditadura civil-militar. As pautas batiam de frente com os métodos políticos da oposição democrática e da esquerda estalinista. A energia e determinação para enfrentar cassetetes e gás lacrimogênio desferidos por uma polícia sob o comando de militares em desespero, por estarem perdendo o controle da situação, vinha do frescor de uma geração não abalada pelo peso das derrotas anteriores, seja da política suicida das organizações guerrilheiras ou do ‘etapismo’ estalinista, favorecendo a evolução das mobilizações e todas as possibilidades que a conjuntura oferecia.
(…) o olhar se lançava para o restabelecimento imediato das Liberdades Democráticas e o fim da ditadura civil-militar.
Vale assinalar com ênfase as diferenças entre os setores de oposição à época. Havia um forte freio de mão naquele momento acionado pelo pessoal do partidão – um dos exemplos que ilustra de maneira contundente as diretrizes dos estalinistas foi o posicionamento contra a leitura de uma carta denunciando as prisões nos teatros de São Paulo. Meus amigos muito próximos e companheiros de militância Robson Camargo e Maria Cecília Garcia, artistas de teatro recém-formados pela Escola de Comunicações e Artes da USP, enfrentaram todo o peso político do partidão que estava à frente do sindicato dos artistas e conseguiram passar a proposta. Convido-os a conhecer esse episódio através da leitura do depoimento de Robson Camargo publicado no volume 10 do relatório da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (3).
A expressão desse salto foi a criação do Comitê Primeiro de Maio pela Anistia, que desempenhou papel inconteste no processo de abertura; o avanço da reconstrução de organizações estudantis; e o fortalecimento dos sindicatos. Com as rápidas transformações que se operavam, foi possível Goffredo da Silva Telles, em 8 de agosto de 1977, subir no palanque do pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e ler a Carta aos Brasileiros, assinada por cerca de 300 juristas, para uma audiência de cerca de duas mil pessoas (4)
que aplaudiu por mais de cinco minutos ao final da reivindicação “Estado de direito já!”. Os milhares de jovens que saíram às ruas, em 1977, garantiram a expressão de juristas e demais representantes de entidades democráticas. Em 1978, ocorre uma mudança bastante significativa no eixo das mobilizações, deslocado para as fábricas da região do ABC paulista.
Quarenta e cinco anos depois, concomitante às centenas de indeferimentos de pedidos de anistia é necessário bradar “Estado de direito sempre”, mais uma vez. Esse paralelo exige a reflexão de como se operou, e por que, a deterioração das instituições democráticas. Quais acordos foram feitos?
Se fizermos uma retrospectiva histórica poder-se-ia dizer que, entre 1946 e 1964, as instituições democráticas careciam de alicerces mais robustos. Além de perseguições aos militantes e simpatizantes do Partido Comunista, havia muita pressão por parte da direita. O golpe civil-militar, desferido em 1964 e os 21 anos que se seguiram, conseguiu estimular o projeto da política do esquecimento, cuja consolidação de deu com a anistia de 1979. Não há como ocultar que essa anistia ocorrera sob a vigência da ditadura, embora tenha sido um importante passo para o retorno de exilados e só possível graças às fortes mobilizações ocorridas em nível nacional. As inúmeras conceções e acordos foram recebidas e interpretadas como um apelo ao esquecimento, inclusive das torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados realizados pelo governo ditatorial (SILVA, 2015, p. 57). Silva afirma ainda, com muita propriedade, que a partir desse enfoque constatamos a reprodução de um vício de origem que está contido na concepção de democracia moderna, qual seja, “o de substituir injustiça por igualdade, reforçando o apelo para uma sociedade amnésica” (5). Não à toa, as práticas de tortura, as prisões arbitrárias, os desmandos, assassinatos etc. nunca cessaram.
A (carta) de 1977 foi um importante marco no processo de abertura. Mas, também colocou amarras nas mobilizações que miravam o fortalecimento de direitos democráticos, desaguando em acordos (…)
Voltando às cartas. A de 1977 foi um importante marco no processo de abertura. Mas, também colocou amarras nas mobilizações que miravam o fortalecimento de direitos democráticos, desaguando em acordos como o da anistia, em 1979, ou das eleições diretas, em 1983, fruto do movimento Diretas já, que contava com ampla mobilização popular e serviu de escada para a oposição burguesa garantir a eleição de Tancredo Neves.
Sem dúvida, a anistia é somente um dos aspectos que caracteriza o Estado de Direito no plano institucional. Porém, o questionamento do processo de sua conformação é fundamental para entendermos a razão de, 45 anos depois, as organizações de esquerda, as tantas outras democráticas, o conjunto da sociedade civil e suas representações – incluindo empresários, banqueiros, setores da mídia etc. que tanto fizeram para tirar Dilma Rousseff do planalto – estarmos com a mesma palavra de ordem, exigindo a consolidação do Estado de Direito no Brasil.
Da mesma forma é necessário equacionarmos as gestões dos governos petistas frente à Comissão da Anistia e à Comissão Nacional da Verdade e outras instituições vitais para a consolidação da democracia. Nos 14 anos de governo sob a batuta de Lula e Dilma, cujo amplo apoio de massas, alta popularidade interna e respeito internacional foram incontestes, não faltou oportunidade para que se revertesse o modelo de reprodução dos tais “vícios de origem”. No entanto, o que se viu foi o ovo da serpente crescendo sob nossos narizes.
À Carta aos Brasileiros e Brasileiras somam-se algumas outras, cujo papel imprescindível hoje é barrar a tentativa de golpe que se articula. Não temos aqui dúvidas quanto à importância vital de elegermos Lula no primeiro turno e garantir sua posse. Porém, há que se ter claro a necessidade de adotar uma postura de total intransigência frente aos possíveis acordos colocados à mesa do novo governo. A única forma de efetivarmos a justiça de transição é apostar nas mobilizações, no fortalecimento de organizações do movimento, como as Frentes Povo sem Medo e Brasil Popular, dos sindicatos e centrais sindicais, associações de trabalhadores e representações estudantis. O objetivo deve ser claro: as demandas democráticas não devem ser submetidas a negociações de qualquer ordem que coloquem em risco as conquistas democráticas, sociais, econômicas e trabalhistas.
*Márcia Bassetto Paes é formada em Letras e doutoranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Participou da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo como relatora.
Confira o Eol Podcast “A história da Carta aos Brasileiros” com Márcia Bassetto
Notas
1 Folha de S.Paulo, 31 de mar de 1977 pp. 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30. O Estado de São Paulo, 31 de mar de 1977, p. 25
2 O apito da panela de pressão: https://www.youtube.com/watch?v=DuGZABQ0L5c
3 RELATÓRIO DA COMISSÃO DA VERDADE DA USP. VOLUME 10 – Depoimentos de ex-estudantes https://goo.gl/y4kABW
4 Folha de S.Paulo, 09 de ago de 1977 pp. 1, 4, 5, 6. Estado de São Paulo, 09 de ago de 1977 pp. 1, 4, 5.
5 SILVA Filho, José Carlos Moreira da. Justiça de transição : da ditadura civil-militar ao debate justransicional : o direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto Alegre : Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 50.
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