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BRASIL

“Armas a preços populares” ou Autodefesa dos trabalhadores contra o bolsonarismo?

Euclides de Agrela, de Fortaleza
Vera Lúcia na sabatina da UOL
Reprodução

Em entrevista à Sabatina do UOL-Folha, no dia 26, a candidata do PSTU à presidência da República, a companheira Vera Lúcia, defendeu que “a população tem o direito de comprar armas a um preço popular”.

Com esta proposta estapafúrdia, Vera e o PSTU confundem o direito do armamento individual com a luta da classe trabalhadora pela quebra do monopólio da violência pelo Estado capitalista, e o consequente controle das armas de fogo pelas organizações dos trabalhadores, como uma das principais medidas da ascensão do proletariado ao poder político e da instituição de um Estado de transição ao socialismo capaz de debelar a contrarrevolução burguesa armada.

Por outro lado, ao contrário de defender o direito à autodefesa dos movimentos sociais, dos sindicatos e da esquerda partidária como uma medida coletiva e, portando, político-organizativa contra possíveis ataques físicos e armados do bolsonarismo em sua cruzada neofascista, Vera e o PSTU arguem simplesmente na esfera do “direito de comprar armas por um preço popular”.

No entanto, nem Vera nem o PSTU dizem como viabilizar essa ideia, que se aproxima perigosamente dos planos neofascistas de Bolsonaro e seus asseclas milicianos e vendilhões do templo. Pergunto: a compra de armas ao um preço popular seria garantida com subsídios estatais para a indústria privada de armamentos? Se a resposta for sim, então nada impediria o próprio Jair Bolsonaro de tomar essa ideia “genial” de Vera e do PSTU como um dos eixos programáticos de sua plataforma eleitoral.

Isto significa buscar lutar contra o neofascismo apenas carregando com tintas vermelhas sua proposta armamentista. Como se apenas colocar um sinal inverso ao direito do armamento individual e a venda de armas baratas fosse garantir espontaneamente, a partir de uma lógica dispersa e individualista, a autodefesa dos trabalhadores contra possíveis ataques físicos e militares do neofascismo contra as organizações dos movimentos sociais, os sindicatos e a esquerda partidária. Fazer propostas estúpidas como essa, além disso, toma os bolsonaristas por idiotas, como se a facilitação da compra de armas para os extratos mais pobres da população permitisse espontaneamente a organização de grupos de autodefesa armada da própria classe trabalhadora.

Ora, o que quer o bolsonarismo com a proposta do “direito” individual ao armamento não é simplesmente garantir que o cidadão de bem possa se defender dos bandidos pobres e dos abusos de poder do Congresso Nacional e, sobretudo, do STF. Quando Bolsonaro defende o direito ao armamento, ele está defendendo, sobretudo, duas coisas: 1) subsídios e renúncia fiscal do Estado sobre a indústria bélica; e 2) a organização, a partir do disfarce legal de atiradores esportivos e caçadores, de grupos armados, ou seja, de verdadeiros grupos paramilitares a serviço da estratégia de poder do bolsonarismo.

Por tudo isso, a proposta de dar “a população o direito de comprar armas a um preço popular” é completamente refém do mesmo individualismo metodológico, baseado no senso comum do direito burguês, que em sua essência busca apenas proteger e resguardar o indivíduo do abuso de outro ou outros indivíduos ou ainda dos abusos do próprio Estado capitalista. Isso nada tem a ver com a ideia-programa da autodefesa da classe trabalhadora e da transferência do monopólio da violência das atuais forças armadas e policiais, guardiãs da propriedade privada da classe capitalista, para a organização da classe trabalhadora como classe para si, portanto, como a classe dominante enquanto durar o Estado de transição socialista.

Como nossos mestres abordaram a questão do “armamento do proletariado”

Assim, Engels discorre sobre a proclamação da nova república francesa, em 1870, durante a guerra franco-prussiana, às vésperas da Comuna de Paris:

“O povo ascendeu nesse sentido com tanto mais facilidade devido a que, para os fins de defesa, todos os parisienses capazes de empunhar armas estavam engajados na Guarda Nacional e se achavam armados, constituindo os operários uma grande maioria dela. Mas o antagonismo entre o governo constituído quase que exclusivamente por burgueses e o proletariado em armas não tardou a se manifestar”. (1)

Todo o raciocínio de Engels, nesta breve introdução à Guerra Civil na França, não versa em nenhum momento sobre o direito individual da posse de armas, mas sobre a criação de um novo organismo militar pelo proletariado parisiense, a Guarda Nacional, cuja tarefa seria defender Paris dos exércitos prussianos invasores e dos capitalistas franceses, exilados em Versalhes e mancomunados com os capitalistas prussianos contra a Paris operária em armas.

Já a Mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a 1ª Internacional, texto que constitui o núcleo central do livro A Guerra Civil na França, redigida por Karl Marx e aprovada na sessão do Conselho Geral da AIT em 30 de maio de 1871, proclamava:

“E se Paris, pode resistir foi unicamente porque, em consequência, do assédio, desfizera o exército, substituindo-o por uma Guarda Nacional, cujo principal contingente era formado pelos operários. Trata-se agora de transformar esse fato em uma instituição duradoura. Por isso, o primeiro decreto da Comuna foi no sentido de suprimir o exército permanente e substitui-lo povo armado”. (2)

Vê-se aqui quão nitidamente o método de Marx não menciona nada parecido com o direito individual, mas defende com todas as letras a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.

Por outro lado, em O Estado e a Revolução, Lenin segue os passos de Marx e Engels, sobre a questão do armamento do proletariado e a sua centralidade para a destruição do Estado capitalista e consequente construção de um Estado de transição ao socialismo:

“Forma-se o Estado, cria-se uma força especial, criam-se destacamentos especiais de homens armados, e cada revolução, ao destruir o aparato estatal, nos revela a luta de classes, nos mostra muito às claras como a classe dominante esforça-se por restaurar os destacamentos especiais de homens armados a seu serviço, como a classe oprimida esforça-se por criar uma nova organização desse tipo, que seja capaz de servir não aos exploradores, mas aos explorados”. (3)

Lenin, assim como Marx, preocupa-se em propor a criação de uma nova organização estatal e militar cujo objetivo é servir aos explorados.

Damos a última palavra, neste breve artigo, a Leon Trotsky, que em sua célebre obra As Lições de Outubro, arrematou sobre a organização da insurreição de Outubro:

“Tratava-se, em suma, de uma insurreição armada (embora sem derramamento de sangue) dos regimentos de Petrogrado contra o Governo Provisório, dirigida pelo Comitê Militar Revolucionário e sob a palavra de ordem da preparação da defesa do 2º Congresso dos Sovietes, que deveria resolver a questão do poder”. (4)

É brilhante aqui constatar a preocupação de Trotsky não só em organizar o Comitê Militar Revolucionário, mas em submeter o momento da tomada do poder na revolução russa ao 2º Congresso dos Sovietes, que deveria resolver a questão do poder.

A luta da classe trabalhadora pela revolução socialista, como demonstrou a revolução russa, implica numa luta não contra as forças armadas, mas pela separação da base proletária destas da alta oficialidade burguesa. Não se trata de enfrentar os trabalhadores armados contra forças armadas unificadas. Isso seria uma estupidez, uma ação suicida. Ao contrário, a luta dos trabalhadores pelo controle do monopólio da violência como parte da perspectiva da construção do seu Estado de transição socialista busca evitar ou, pelo menos, minimizar os custos de vidas humanas no momento da insurreição com vistas à tomada do poder. Quanto maior o controle social do proletariado sobre os armamentos no momento da insurreição, mais vidas humanas poderão ser poupadas. O maior exemplo do anterior foi a própria revolução de Outubro na Rússia de 1917. No dia da tomada do poder pelos bolcheviques à frente dos sovietes de Petrogrado, a maior e mais industrializada cidade do país, morreram apenas meia dúzia de pessoas.

Autodefesa, armamento das organizações políticas e sociais dos trabalhadores e o problema da correlação de forças

Obviamente que as citações que fizemos acima discorrem sobre situações da luta de classes complemente distintas da que vivemos hoje no Brasil. Tanto na Comuna de Paris quanto no momento da insurreição do Outubro russo, havia não apenas uma situação revolucionária, mas uma profunda crise que possibilitou a divisão entre a alta oficialidade burguesa e a base proletária das Forças Armadas diante de situações de guerra: na França, a guerra franco-prussiana e na Rússia, a 1ª Guerra Mundial.

No Brasil de 2022, vivemos ainda uma situação reacionária que transita lentamente para uma situação pré-revolucionária, atravessada pela eleição presidencial de 03 de outubro. A principal tarefa da classe trabalhadora não é, portanto, a tomada do poder, mas a derrota eleitoral do bolsonarismo e a utilização da campanha eleitoral e de uma possível derrota do presidente neofascista para incrementar a luta real no terreno das ações e dos métodos da classe trabalhadora: manifestações de rua, atos, greves etc.

No entanto, insistimos em fazer essas citações não para entrar numa guerra ridícula de quem coloca na boca de nossos mestres, através de excertos perdidos e retirados do contexto, o melhor argumento em defesa da sua ideia-programa a respeito de temas tão espinhosos como a autodefesa, o controle das armas e o monopólio da violência pelas organizações da classe trabalhadora no momento da insurreição que marcaria o início da transição socialista. Mas, fundamentalmente, porque essas mesmas citações, conhecidas exaustivamente por qualquer militante de base que já se interessou em ler sobre a Comuna de Paris e o Outubro russo, encerram a posição de princípios de nossos mestres sobre a autodefesa, o controle das armas e o monopólio da violência pelas organizações da classe trabalhadora antes, durante e depois da tomada do poder.

A autodefesa dos movimentos sociais, sindicatos e da esquerda partidária como uma tarefa imediata

Defender o direito do armento individual através do barateamento das armas de fogo só joga água no moinho da política do bolsonarismo que busca legalizar, sob o argumento do direito individual, a organização de bandos armados da extrema-direita. 

Por tudo isso, refletindo sobre a posição de princípios de nossos mestres a respeito do tema do armamento, o que se coloca como tarefa imediata para a classe trabalhadora brasileira nesse terreno não é uma ação ofensiva como, por exemplo, a criação de um Comitê Militar Revolucionário, como na Rússia de Outubro de 1917, mas a organização da autodefesa dos movimentos sociais, dos sindicatos e da esquerda partidária contra possíveis ataques físicos e armados do bolsonarismo nos próximos meses e, sobretudo, durante a campanha eleitoral.

Precisamos, para ontem, discutir desde medidas de defesa cibernética, passando por questões jurídicas até a proteção das sedes, das manifestações e dos dirigentes dos movimentos sociais, sindicatos e da esquerda partidária. Essa é a nossa tarefa imediata e não a bravata de dar acesso individual a armas com preços populares para os trabalhadores.

Notas

1 MARX, Karl. A Guerra Civil na França. Introdução de Friederich Engels para edição de 1891. Editora Global, São Paulo, 1986, p. 21.

2 Idem, p.72.

3 LENIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. Editora Global 1987, p. 58.

4 TROTSKY, Leon. As Lições de Outubro. Edições Antídoto, Lisboa 1979, p. 66.

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Armamento / Vera Lúcia