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MUNDO

Volodymyr Ishchenko: “Esta guerra não era inevitável”

Pesquisador dos movimentos de protesto em seu país, Volodymyr Ishchenko falou com Brecha acerca dos debates sobre a Ucrânia na esquerda global, do crescimento do extremismo e do futuro da identidade ucraniana.

Volodymyr Ishchenko*
Guerra Ucânia destruição
Daniel Ceng Shou-Yi/ZUMA/picture alliance/DW

—Fora da Ucrânia e da Rússia, há um debate na esquerda e entre seus intelectuais sobre qual deve ser a posição perante esta guerra. Algumas vozes, como a de Noam Chomsky (“Abrir la puerta de salida”), favorecem uma saída negociada para a invasão e defendem a busca de um compromisso diplomático como a única abordagem sensata de um ponto de vista progressista. Outros, como Étienne Balibar (ver nesta edição “Sobre la guerra europea”), exigem que a esquerda internacional dê todo o seu apoio à resistência ucraniana e, pelo menos por enquanto, deixe outras considerações de lado ou num lugar secundário. Como você vê este debate?

—Na minha opinião, a prioridade deve ser a de salvar vidas ucranianas, as cidades ucranianas, a economia ucraniana. Quanto mais cedo for alcançado um acordo de paz, mais vidas serão salvas, menos cidades serão destruídas e menos danificada será a economia. Se a guerra tender a prolongar-se, se já não se tratar de travar a invasão russa, mas de, por exemplo, conseguir a queda de Putin custe o que custar – o que pode não ser um objetivo acessível – significará transformar a Ucrânia num Afeganistão. Um lugar onde uma guerra eterna acontece sem parar durante anos, com um Estado falido, com a economia regressando a um estado pré-moderno, com a indústria completamente destruída e milhões de refugiados que não podem regressar às suas casas durante anos [ver “Noticias de Moscú”]. Este cenário, honestamente, seria apenas o segundo pior para a Ucrânia, caso a guerra degenerasse em um conflito nuclear. Claramente, não desejo isto para o meu país.

—Indo à Ucrânia, e pondo de lado a propaganda russa sobre uma inexistente “Ucrânia nazi”, há certamente elementos de extrema-direita no país. Grupos que hoje são insignificantes do ponto de vista eleitoral, mas que, durante a guerra no Donbas, fortaleceram a sua penetração nas forças armadas. Você acredita que é inevitável que uma situação de guerra prolongada em todo o país implique em aumento e fortalecimento destas forças ultranacionalistas que cresceram durante a revolução de Maidan e, depois, ocuparam posições de poder no aparelho de defesa e segurança?

—Sim, sem dúvida alguma. Em caso de guerra prolongada, haveria uma destruição progressiva do Estado e das instituições militares ucranianas, o que daria mais oportunidades para que grupos radicais tomassem as rédeas. Quanto mais mortos e feridos entre a população, e quanto mais destruição, causados pela invasão russa, maior será também o ódio. E os movimentos que centram sua retórica no ódio e capitalizam o ódio com mais facilidade, certamente crescerão nesse cenário. Aqueles que falam de fazer da Ucrânia um novo Afeganistão para as tropas russas [em referência à derrota soviética de 1989 e americana de 2021], aqueles que dizem que é preciso preparar-se para resistir a uma guerra de longa duração, estão abrindo a porta pela qual as forças de extrema-direita entrarão para assumir o controlo.

Vai acontecer exatamente como aconteceu no Oriente Médio: o colapso das instituições estatais causado pela invasão estrangeira no Iraque, e o colapso institucional na Líbia e na Síria, criaram o espaço para que grupos extremistas tomassem o poder em vastas zonas desses países, com consequências funestas. Não compreendo como é que as pessoas podem esperar um cenário diferente no caso de uma guerra prolongada na Ucrânia!

—Em um artigo recente para a Al Jazeera, você lamenta o fim da Ucrânia multicultural em que você cresceu. Isto deve-se ao crescimento esperado destes grupos de extrema-direita, desta ideologia ultranacionalista? Você vê como inevitável o fim desta ideia de uma Ucrânia multicultural e multiétnica?

—Essa é uma das várias razões. Antes da guerra eram possíveis na Ucrânia o que foi chamado de identidades ambíguas. Alguns ucranianos entendem sua identidade nacional como uma oposição à Rússia, mas muitos outros não entendem sua Ucrânia assim. Muita gente se sente ucraniana e russa ao mesmo tempo. Por exemplo, em muitas famílias o pai é russo e a mãe ucraniana. Ou ao contrário. Tudo isto será muito difícil depois desta guerra. O russo é agora o inimigo. Milhares de pessoas estão sofrendo por causa desta invasão. A posição que a língua russa goza hoje na Ucrânia provavelmente será perdida. Esta guerra será – está sendo – uma grande transformação na forma como os ucranianos pensam sobre si próprios, sobre a sua identidade e sobre o russo e os russos. A reconciliação é possível, claro. Foi possível mesmo após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo depois do Holocausto. Mas levará muitos anos e exigirá mudanças políticas muito sérias, tanto na Ucrânia como na Rússia.

—Nessa coluna para a Al Jazeera, você critica a recente decisão do governo ucraniano de suspender 11 partidos da oposição devido aos seus pontos de vista “pró russos” sustentados antes da invasão. Entre eles, o segundo partido mais votado do país. Nesse artigo, você recorda também ao leitor que a esquerda já estava muito enfraquecida no panorama político ucraniano, e decisões como esta, que reduzem as vozes dissidentes, só a enfraquecem ainda mais. Neste cenário, quais são as perspectivas para os movimentos sociais e as forças progressistas ucranianas em meio à invasão da Rússia? Há um lugar para eles na resistência contra o ataque e a ocupação russa?

—Quais são as oportunidades para os sindicatos e os movimentos sociais hoje na Síria ou na Líbia, por exemplo? Um dos horrores da guerra é que fecha qualquer espaço para qualquer movimento social progressista tal como os conhecemos. A guerra requer movimentos completamente diferentes, como uma guerrilha, movimentos militarizados e paramilitarizados. E não há absolutamente nenhuma oportunidade para lançar um movimento de esquerda deste tipo na Ucrânia de hoje. Alguns integrantes de movimentos sociais e de esquerda na Ucrânia estão se alistando nas Forças de Defesa, mas seu impacto político, nessas circunstâncias, será insignificante. Atualmente, não há qualquer hipótese de mudar a ideologia dominante ou a orientação da guerra.

—Além disso, o debate fora da Ucrânia sobre onde se deve concentrar a análise para compreender o que está acontecendo complica-se pelo fato de existir uma pressão constante do mainstream político, que acusa a esquerda de ser suspeita de um viés pró-russo e, portanto, cúmplice da invasão. Você vê uma divisão na esquerda da Europa Central e Oriental entre um campo mais anti-OTAN e outro mais anti-Rússia? Considera que este é um bom quadro para um debate no campo progressista?

—Esta guerra tem um impacto global e não apenas regional na forma como provoca uma reação macartista da direita contra as esquerdas. Como bem assinalas, toda a esquerda vai estar sob ataque e será mais difícil, agora, dizer inclusive coisas básicas de esquerda sem ser acusado de “pró-russo”. Não são poucos os que agora evocam os anos e meses passados para dizer que a invasão russa era inevitável, que estava claro desde o início que esta sucederia, e que a esquerda falhou em preveni-la por algum tipo de cumplicidade ou cegueira frente à Rússia. No contexto ucraniano, por exemplo, chega-se a dizer que é hora de reconsiderar o papel dos grupos de extrema-direita que se preparavam para a guerra contra a Rússia há anos, desde a década de 90, para ser exato, desde o momento da independência ucraniana.

Mas isso é realmente assim? Esta invasão torna a extrema direita menos extrema? Isso a transforma em algum tipo de organização patriótica anticolonial e visionária? Claro que não. E a guerra não era inevitável. Sabemos que só em fevereiro a CIA começou a ver sinais de uma decisão definitiva da Rússia tendente à guerra, quando essa concentração de tropas já vinha desde outubro. Durante todos esses meses, houve oportunidades para uma solução diplomática deste conflito e muito poderia ter sido feito de outra maneira.

A esquerda deve ter posições de ofensiva e não só estar todo o tempo a desculpar-se, “oh, estivemos a falar em demasia sobre a OTAN e não o suficiente sobre a Rússia, etc.” Temos de nos manter nas nossas posições, apontar para a complexidade do problema, defender a verdade. Não aceitar o oportunismo de saltar de um extremo – falar apenas da expansão da OTAN como se a Rússia não fosse culpada pela guerra – para o outro, um olhar exclusivamente centrado na Rússia, em que a discussão sobre a OTAN e o nacionalismo ucraniano é marginalizada, inclusive tabu. Discutir a OTAN e o nacionalismo ucraniano não é justificar a invasão russa. É preciso ver estes fatores como parte do cenário geral, e como parte do problema que nos levou a esta guerra. Caso contrário, procurarão apresentá-los como parte da solução. 

Sabemos que há muitos fatores que levaram a esta guerra. Sobre Putin pesa a responsabilidade primeira e principal, sem dúvida. Foi ele quem apertou o botão, mesmo tendo outras opções. A guerra foi sua escolha, e ele é e será culpado por isso. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que houve outras forças que contribuíram para que chegássemos até aqui. Não basta dar um tom “esquerdista” à narrativa de guerra da sua classe dominante e sair repetindo trivialidades sobre o “imperialismo russo”. Há muito para estudar e entender do imperialismo russo como fenômeno real, e simplesmente repetir clichês superficiais não melhorará nossa análise nem nossa capacidade de propor caminhos para sair desta guerra.

Texto original: Esta guerra no era inevitable com el sociólogo Volodymyr Ishchenko

Volodymyr IshchenkoDivulgação

* Volodymyr Ishchenko é doutor em Sociologia pela Universidade Nacional Tarás Shevchenko de Kiev e investigador associado do Instituto de Estudos sobre a Europa Oriental da Universidade Livre de Berlim. O seu trabalho tem se orientado para o estudo da sociedade civil, dos protestos e dos movimentos sociais da Ucrânia e da região. É autor de vários artigos acadêmicos sobre a política ucraniana contemporânea, o levantamento da Euromaidan e a guerra no Donbas. Publicou na Post-Soviet Affairs, New Left Review, entre outras revistas especializadas, e colaborou com The Guardian, Al Jazeera e Jacobin, entre outras publicações internacionais. Atualmente está trabalhando na obra coletiva O levante de Maidan: mobilização, radicalização e revolução na Ucrânia, 2013-2014.

Tradução: Ronaldo Almeida

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guerra / ucrânia