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BRASIL

Ecocídio de Edvaldo Nogueira: o atropelamento da última comunidade extrativista de Mangaba de Aracaju

Elisa Mendonça Dias, José Eduardo Andrade Neto e Arthur Gil de Oliveira Araújo*, de Aracaju, Sergipe

“Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de maneira nenhuma como um povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação, e que coloca em risco qualquer desenvolvimento.” Esse é um trecho da fala de Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista, durante a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, e foi escolhido para iniciar o texto, uma vez que, apesar de referir-se aos povos indígenas, nela também podem ser abarcadas todas as comunidades tradicionais e litorâneas do Brasil, inclusive das catadoras e catadores de mangaba, em Aracaju. Afinal, como um povo que nem sequer viola a árvore, cata a mangaba do chão e que vive de forma tão equilibrada a terra, pode ser um empecilho para a prefeitura e ter suas raízes violadas?

Dessa forma, apresentado no dia 3 de outubro, por meio da Secretaria do Meio Ambiente (SEMA), a Prefeitura de Aracaju expôs um relatório em audiência com o intuito de criar uma unidade de conservação da Reserva Extrativista Mangabeiras Irmã Dulce dos Pobres aos moradores do bairro 17 de março, zona sul de Aracaju, Sergipe. O presente projeto tem o objetivo de construir 1.102 residências populares para a comunidade e também discutir a atividade da cata da mangaba regional aliada à preservação ambiental. 

Entretanto, a prática deturpa a teoria, visto que, dia 26 de janeiro do atual ano, para a execução do projeto, o prefeito Edvaldo Nogueira destruiu hectares da reserva sem nenhuma tentativa de escuta à comunidade local, ignorando por completo o posicionamento da mesma. Além disso, existia um local de zona de amortecimento que protegia as mangabeiras e outras espécies que formavam um sistema socioecológico, logo interferindo diretamente na cultura tradicional da coleta de mangaba.

Ademais, é evidente a proposta de falso desenvolvimento ecológico e proteção ambiental eficiente, visto que o projeto visa asfaltar a área, sendo perceptível os maléficos que virá causar. Além disso, se o objetivo maior fosse uma política eficaz, manteria a integridade do ambiente. Em contrapartida a ação sob ordem do prefeito, a Associação dos Geógrafos Brasileiros de Aracaju (AGB) em parceria com a Universidade Federal de Sergipe (UFS) através do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) afirmou, em relatório enviado para o Ministério Público, que a manutenção do tamanho ideal da área é de fundamental importância para estabelecer os processos ecológicos em funcionamento, manter estabilidade e diminuir efeitos de borda no local.

IMPORTÂNCIA AMBIENTAL 

O ambiente em que vivem as mangabeiras no 17 de março é uma área delicada devido a urbanização do local, caracterizada como zona de expansão. Porém, a partir dos estudos feitos pela AGBAracaju, que pesquisou junto com a comunidade e reuniu no relatório, já citado, informações sobre a geografia, hidrografia e biologia do local, observou-se que graças a biodiversidade de fauna e flora, como animais polinizadores e a vegetação rasteira, que cria lagoas de afloramento, retendo água e preservando a umidade do solo, além da própria cultura da coleta de mangaba, as árvores continuam resistindo. Sem essa cooperativa de seres vivos as mangabeiras vão perder a capacidade de produção. Nenhuma vegetação deve ser retirada.

Além de fatores bióticos, a AGB também constatou que os fatores abióticos são essenciais para que a região das mangabeiras seja um local singular e de extrema importância, não só para a comunidade que nela habita, mas para todos ao redor. Ali, graças ao solo arenoso, com uma deposição específica, alta porosidade e permeabilidade, há boas condições para circulação de águas superficiais e subterrâneas, o que permitiu a formação e o abastecimento de um aquífero raso, que é alimentado diretamente pela água das chuvas.

A partir dessas análises feitas, AGB e a PEAC-UFS propõe a criação de uma Unidade de Conservação em meio urbano, do tipo Reserva Extrativista (RESEX), que seria a primeira destinada a mangabeiras do estado de Sergipe, e que tenha um território bem maior do que o proposto pela prefeitura, maior até que o proposto pela própria comunidade, pois a existência do aquífero e do fluxo de águas subterrâneas, está conectada com uma área bem maior que a esperada, e a permeabilização do solo, ocasionada pela obra, vai destruir esse fluxo e por conseguinte a área de restinga e também a atividade extrativista da comunidade tradicional.

Imagem I: Área ideal proposta pela Prefeitura de Aracaju

Imagem II: Área ideal proposta pela Associação dos Geógrafos Brasileiros de Aracaju

O território das mangabeiras proporciona diversos benefícios, como a proteção do solo e do regime hídrico, prevenindo contra inundações e enxurradas e poluição das águas, colaborando com a recarga de aquíferos e evitando o comprometimento do abastecimento público de água. Além de garantir também habitats para animais silvestres (impedindo que esses adentrem o espaço urbano, podendo causar diversos transtornos à população e transmitir microrganismos desconhecidos pela saúde pública, causando epidemias ou pandemias, como é caso da que vivemos hoje), sequestro de gases, regulação do calor e muito mais. Inclusive, caso esse território seja edificado, como é o projeto da prefeitura, que segue uma lógica de política habitacional alinhada com os interesses de capital financeiro e imobiliário, ignorando todos os estudos apresentados no relatório, ocorrerão diversos transtornos para a própria comunidade que vai habitar o local, principalmente na época de chuvas.

Ressaltamos que o mundo vive uma emergência sanitária, uma crise climática e um holocausto biológico e social que põem em risco a própria sobrevivência da humanidade ceifando vidas. É urgente e necessário implementar políticas públicas de restabelecimento e conservação de habitats que ainda guardam um dos maiores índices de diversidade de plantas e animais do planeta.” Diz a AGB e PEAC-UFS.

IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E SOCIOCULTURAL 

A partir de 1950, com a chegada das primeiras famílias, se estabelece o processo de organização local, que atualmente engloba cerca de 260 pessoas, que sobrevivem da renda gerada pelo trabalho de coleta da mangaba. Dessa forma, a cata ocorre em duas safras anuais, a primeira indo de dezembro a fevereiro e a segunda de maio a julho. Na safra de inverno de 2019, a comunidade chegou a comercializar entre 1,5 e 2 toneladas de mangaba, assegurando assim uma renda média de R$2.000,00 por mês, por grupo familiar, segundo a AGB. Esta renda sustenta as famílias nos meses em que não há safra, juntamente com a comercialização de produtos resultantes da transformação de parte da coleta, seja em polpa, geleia, licor ou doce.

“Existem mais de cinco mil pessoas que vivem da catação da mangaba, elevando Sergipe a nível nacional como o maior produtor na catação de mangaba.” Afirma a pesquisadora e militante Sônia Meire, no  Relatório do Projeto Produção de Saberes e Práticas de Trabalho das Catadoras de Mangaba de 2010. Qualificando assim, a cultura da mangaba como um dos pilares da economia do estado.

Mesmo sendo instituído através do decreto estadual N° 12.723/1992, a mangabeira como árvore símbolo do estado sergipano, o abandono e a destruição que as populações que vivem do extrativismo se encontram, retratam a contraditória posição das lideranças políticas locais, desrespeitando inclusive, o decreto nº 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Sergipe detém a maior produção de mangaba proveniente desse tipo de atividade, mas as catadoras e catadores permanecem desconhecidos da maioria da sociedade, facilitando assim as ações de extermínio de seus territórios, seja através da especulação imobiliária, pela carcinicultura clandestina, pela exploração turística comercial e aplicações de agrotóxicos.

Com a derrubada indiscriminada das mangabeiras, as catadoras e catadores têm sua fonte de sustentação ameaçada, acentuando o processo da extinção da população e de todo legado histórico-cultural desse grupo social. Para além da representação simbólica da mangabeira como patrimônio sergipano, se faz necessário a implementação de políticas públicas que assegurem a preservação da biodiversidade dessas comunidades, respeitando as condições do decreto nº 6.040/2007 para perpetuação cultural, social, ancestral e econômica, que depende do uso das áreas de restinga e dos recursos naturais, para que os conhecimentos e práticas constituídas e transmitidas pela tradição, assegurando a resistência das gerações futuras.

*Elisa Mendonça Dias, militante do Afronte! e Resistência-PSOL, Aracaju/SE

José Eduardo Andrade Neto, militante do Afronte! e Resistência-PSOL, Itabaiana/SE

Arthur Gil de Oliveira Araújo, militante do Afronte! e Resistência-PSOL, Aracaju/SE

Referências:

ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS. Parecer Técnico Sobre a Necessidade da Área de Preservação de Mangabeiras Reivindicada Pela Associação de Catadoras e Catadores de Mangaba, do Bairro Santa Maria, Município de Aracaju (SE). Aracaju (SE), Dezembro de 2020.AMÉLIA, A. et al. PARECER TÉCNICO SOBRE A NECESSIDADE DA ÁREA DE PRESERVAÇÃO DE MANGABEIRAS REIVINDICADA PELA ASSOCIAÇÃO DE CATADORAS E CATADORES DE MANGABA, DO BAIRRO SANTA MARIA, MUNICÍPIO DE ARACAJU (SE). p. 1–59, 2020.

MOTA, D. M.; SILVA JR, J. F.; SCHMITZ, H. Os catadores de mangaba e a conservação da biodiversidade no território sul sergipano. Congresso Brasileiro De Economia E Sociologia Rural, p. 10, 2005.
SARAIVA, R. M.; JESUS;, S. M. S. A. DE; SILVA, A. S. DA. AS CATADORAS DE MANGABA E O SEU PAPEL NO CONTEXTO DA SOCIEDADE SERGIPANA. VI Colóquio Internacional “Educação e Contemporaneidade”, 2012.