O povo bakongo, da região que hoje chamamos de República Democrática do Congo, em sua língua originária chamava a água, sobretudo o oceano, de “Kalunga”. O nome Kalunga também aparece com centralidade em sua cosmopercepção e filosofia, sendo usado para se referir a linha que separa o mundo dos vivos do mundo dos ancestrais.
No século XV, quando os europeus estabeleceram contato com os bakongo, o sétimo Manikongo (Rei do Kongo) os chamou de Mputu. Essa palavra é uma derivação de kimputu, que significa “miséria” ou “pobreza”. Alguns anos mais tarde o termo Mputu passou a ser usado para determinar um lugar, um espaço geográfico, relativo a onde os sujeitos que lá estavam existiam em meio a pobreza e penúria de espírito.
Os bakongos passaram a identificar Mputu como a “terra dos brancos”, que seria também a “terra da morte”. Aquele lugar além do Kalunga, para onde eram forçados pelos europeus a irem acorrentados nos navios negreiros que cruzavam o Atlântico.
O Brasil continua sendo a Terra da Morte.
Se a Europa via do outro lado desse imenso cemitério de corpos negros que se tornou o Oceano Atlântico um lugar de oportunidades semelhante a um Paraíso na Terra, para os bakongos esse oceano se tornava a linha divisória entre os que viviam e os que morriam, entre famílias que foram divididas e entre a comunidade que foi destruída.
Além do Atlântico Negro existia a morte. E essa terra da morte passou a ser chamada pelos seus novos donos, os homens de pele clara, de Brasil. O Mputu é aqui. O inferno (como cantado por Racionais Mc’s) é aqui. Para aqueles que carregam a pele marcada pela melanina, o Brasil continua sendo a Terra da Morte.
Bem vindo ao paraíso das raças
O Brasil foi fundado através da colonização. Surge ao mundo antes mesmo de nascer para si próprio como país. O Brasil nasce inclusive fora de suas fronteiras terrestres. É no Atlântico Negro, mas precisamente nas embarcações de navios negreiros, seu local de parto. O primeiro brasileiro nasce antes mesmo do Brasil se conformar como Nação.
É em solo africano que a expressão “brasileiro” se torna popular pela primeira vez. Para distinguir os comerciantes de escravizados portugueses daqueles que passavam a ter seus próprios negócios do outro lado do oceano, o termo brasileiro passa a ser utilizado e se consolida.
Se a colonização funda o país, o trabalho escravizado de africanos o ergue e o constrói. Ferro, fogo, sangue negro e indígena regam o desenvolvimento econômico.
Temos o Brasil.
Um país que justifica a escravização de africanos com o mito da democracia racial. Que romantiza a colonização em suas novelas e literatura. Um país que é filho do estupro e entrega para isto o nome de mestiçagem.
Nasceu o Brasil.
Onde os senhores de escravos brancos se tornaram a nova burguesia branca. Foram mudadas as relações de produção, mas foram mantidas a mesma classe dominante. O Estado, suas instituições e as leis, se organizam de acordo com a vontade desta velha/nova classe dominante.
Cresce o Brasil.
E nesta terra o modelo de segurança pública desde sempre listou seus inimigos internos: corpos negros. Com as forças policiais surgindo para proteger os então senhores de escravizados, que viriam a se tornar burgueses, justamente das revoltas daqueles negros que eram mantidos em cativeiros.
Viva o Brasil.
Um país que não acertou as contas com a colonização e a escravização. Não pretende fazê-lo e não pode agir assim. Pois acertar as contas com esse passado significa acertar as contas com as mesmas classes dominantes que exercem seu poder econômico e político. A Casa Grande mudou de nome, mas mantém o mesmo endereço.
Ame ou deixe o Brasil.
Um país que desumaniza parte significativa de sua população e portanto é um país que se nega. Que se afasta de si a todo instante, pois se recusa a se assumir e se olhar no espelho. Um país que sua burguesia deseja ser mais Europa e menos Brasil.
O Brasil surge para dar certo para esta classe dominante branca. O Brasil surge para dar errado para o povo negro.
Sobrevivendo no inferno
Os anos de escravização e o colonialismo que se mantém geraram fraturas nacionais que não podem ser recompostas. O racismo e o poder branco moldam o Brasil em todas suas esferas. De relações interpessoais e institucionais, até o subjetivo do sujeito.
O martinicano Aimé Césaire escreveu que “Ninguém coloniza inocentemente e ninguém coloniza impunemente”. Sua tese era que a colonização também desumanizava o colonizador, ao ponto da naturalização da barbárie ser tamanha que abria portas para que no seio do colonizador surgissem Hitler e o fascismo. Estes seriam para Césaire a negação da negação da civilização Ocidental.
Se Césaire direcionava sua crítica a Europa, a civilização Ocidental e sua burguesia. Nós podemos apontar as mesmas palavras de Césaire em direção à burguesia brasileira e sua Casa Grande. Parafraseando esse revolucionário negro, podemos dizer que:
Uma Nação que fecha os olhos diante de seus problemas mais gritantes, que se mostra incapaz de resolver os problemas que ela mesma cria, se mostra assim uma Nação moralmente falida e com as feridas expostas. Uma Nação que deve perecer.
O Brasil, como foi moldado durante esses 500 anos de capitalismo dependente, colonialismo e racismo estrutural, se mostra incapaz de resolver os dois maiores problemas que sua própria existência deu origem: o problema da soberania nacional e o problema racial.
Por isso, o Brasil é irreconstruível. Por isso, o Brasil é indefensável.
Politicamente, moralmente, espiritualmente, essa grande senzala que se chama Brasil é indefensável.
Politicamente, moralmente, espiritualmente, essa grande senzala que se chama Brasil é indefensável.
A cada vez que um corpo negro tomba vítima da violência racial, o Brasil se realiza. Cada vez que um terreiro é queimado o Brasil se realiza. Cada vez que o jovem negro adentra na biqueira para vender drogas, o Brasil se realiza. Cada vez que uma bala perdida encontra uma pele alvo da cor da terra, o Brasil se realiza.
Quando o Brasil e seu filho se encontram
Em nome da civilização se fundou a barbárie e invadiram continentes. Em nome do progresso se dizimaram indígenas. Em nome de Cristo sequestraram e negociaram africanos como mercadorias. Em nome do Brasil se instaurou militares na ditadura, se colocou o fascismo no governo.
O veneno que o Brasil bebe cada vez que se realiza um dia faz efeito. O fascismo tropical que atende por bolsonarista surge, governa e se impõe.
As classes médias assustadas dizem “não sabia que ele era tão mal”. “Ele falou que os imigrantes negros eram a escória do mundo. Que a solução para a segurança era metralhar as favelas. Que teriam que morrer milhares. Mas como eu poderia imaginar que ele era tão ruim assim?”.
E assim, a classe média branca, os setores que agora se chamam de “burguesia progressista”, a imprensa, os partidos de direita, todos eles se dizem contra esse fascismo e seu projeto de destruição e morte. Porém, estes mesmos se calam, quando recordamos que antes de “serem vítimas”, eram cúmplices deste mesmo bolsonarismo.
Sentaram com ele à mesa, alimentaram-no, fecharam os olhos, o absolveram, legitimaram seu discurso e prática, pois afinal, como eles mesmo dizem, “quem poderia imaginar que ele seria tão ruim”.
Até então, quando esta mesma violência e política de morte era destinada apenas para negros e indígenas, apenas para os não brancos, não havia problema. Quando este fascismo se chamava apenas colonialismo, não havia problema. A grande questão foi quando esta política de destruição atingiu também a Nação.
Afinal, o que é o bolsonarismo se não a expansão de políticas de morte e destruição que antes era restrita apenas para a população negra e periférica?
Bolsonaro é o Brasil se olhando no espelho. O encontro de nossa Nação com ela mesma.
Bolsonaro é o Brasil se olhando no espelho. O encontro de nossa Nação com ela mesma. É a expressão máxima do projeto colonial de nossas classes dominantes. É o filho prodígio da Casa Grande.
Assim, nossos “burgueses humanistas”, nossa “mídia democrática”, nossa classe média, nossos partidos republicanos, negam Bolsonaro, da mesma forma que negam que se realizam nele, que o ergueram ao posto que ocupa. Negam como reflexo da Nação que criaram.
Todos eles que aceitam Borba Gato, Duque de Caxias, Domingos Jorge Velho e os Bandeirantes, Don Pedro, e que se calam diante do massacre sofrido pelos Lanceiros Negros, e quilombolas. Se negam a aceitar também que em cada um desses heróis da Nação se afirma Bolsonaro.
Sim, o problema não é Bolsonaro. O problema é Bolsonaro e seus seguidores quererem fazer com estes nossos democratas brancos o que antes estava restrito apenas ao povo negro e indígena.
Fazer um país novo, destruir um país velho
No meio disso tudo, vemos diante do projeto bolsonarista, as forças de esquerda falando em reconstruir o Brasil. Mas afinal, como reconstruir este país? Como reconstruir uma Nação que foi erguida sobre nosso sangue e se realiza com nossa derrota?
Hoje a realidade do negro é a seguinte: A renda per capita da média da população branca é mais que o dobro da renda da população negra: são R$ 1.097,00 para brancos contra R$ 508,90 para negros. Somos quase 70% do sistema prisional. Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que leva em conta renda, saúde e educação, os negros no Brasil têm dez anos de atraso quando comparados aos brancos. A cada 23 minutos um jovem negro vai ser assassinado. Jovens negros cometem três vezes mais suicídios do que jovens brancos.
Hoje parte do país se encontra revoltada com o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, congolês de 24 anos e refugiado no Brasil há 11 anos. Há pouco mais de uma semana, o jovem foi brutalmente morto no quiosque Tropicália, na orla da praia da Barra da Tijuca. Violência promovida por cinco homens, após Moïse ter cobrado dinheiro por diárias trabalhadas e não pagas. Esse assassinato é mais um grande caso que escancara a violência racial no Brasil.
Como reconstruir este país? ou porque reconstruir este país da forma que estava antes?
A verdade é que isso não nos interessa. Não interessa reconstruir as mesmas instituições que durante séculos serviram para esmagar e oprimir o povo negro. Não nos interessa reconstruir um país que em toda sua existência nos marginalizou. Para nós, povo negro, o Brasil não tem salvação e o Brasil nunca nos salvou.
Não queremos reconstruir o Brasil, mas sim construir algo novo. Temos toda uma velha Nação para pôr abaixo, e uma nova para erguer. Erguer e criar novas histórias, novas heroínas, nova cultura.
Para isso precisamos destruir as amarras coloniais que ainda nos prendem e por cima destes escombros construir um novo projeto de Nação. Da destruição fazer algo novo, que realmente se pareça e se assemelhe com um país.
Precisamos de um projeto de Poder que seja popular e negro. Pois só assim será verdadeiramente nacional e verdadeiramente democrático. Um projeto de Poder que enfrente e busque demolir a Casa Grande, tocar fogo na Senzala e erguer Quilombos. Um projeto de Poder que não tenha medo de enfrentar desigualdades e a classe dominante. Este projeto de Poder que infelizmente ainda estamos a construir.
Um projeto de Poder que exija Justiça para cada corpo tombado nesta terra pelos nossos inimigos, mas que também queira vingança.
Por Moïse Mugenyi. Por Marielle Franco. Por DG. Por Cauã. Por João Pedro. Por Agatha. E por tantas outras vidas (Presente!!)
Na volta da vitória, quando as cidades forem nossas, no dia que triunfaremos, eles estarão conosco.
Presentes!
Quando nossa poesia não for mais escrita com sangue, quando nossa voz não for mais silenciada, quando os sonhos puderem ser vividos durante as manhãs, para eles e para o santo será derramado o primeiro gole.
Por último,
Ou por primeiro de tudo
Que Exu ilumine o país que queremos construir e abra os caminhos
Laroyê
Justiça para Moïse Mugenyi
Vingança por Moïse Mugenyi
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