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BRASIL

Osasco, entre as ruínas da Cobrasma e o Ifood

Mateus Pinho, de Osasco, SP
Matheus Pinho

Minha cidade, Osasco, já foi uma cidade industrial, simbolicamente marcada pela Cobrasma, antiga fábrica de trens do grupo Vidigal, e que representa bem esse histórico: foi um símbolo do auge da industrialização brasileira, protagonizou o estopim das grandes greves contra a ditadura, e quebrou com dívidas imensas nos anos noventa. A cidade desindustrializou, como muitas outras, e os enormes e antigos terrenos fabris cederam lugar aos prédios de classe média. Dezenas de torres no mesmo terreno, centenas e as vezes milhares de pessoas morando ali, sob a organização social dos condomínios. Passou a ser uma cidade residencial. Mas não só. Recentemente, com incentivos fiscais da prefeitura, vieram importantes empresas de tecnologia para Osasco, criando o que o prefeito gosta de chamar de Oz Valley, com escritórios do Mercado Livre e Ifood e projetos da Uber, Rappi, 99 e Microsoft. Além disso, a expansão do setor varejista é imensa: novos Atacadões e Assaís estão por toda parte, ocupando terrenos enormes que um dia também já foram fábricas ou depósitos.

Vendo esses prédios que não param de subir, penso como serão as cidades do futuro. Apartamentos cada vez menores e perto do trabalho formavam uma tendência da classe média que desacelerou com a pandemia e a busca por lugares espaçosos para home office – uma forma de trabalho remoto que ficou restrita a cerca de um quarto da população paulista.

Foto antiga, com a fachada da Cobrasma. Na foto, um portão de metal, e ao fundo prédio de 3 ou 4 andares, com o nome da empresa em grandes letras acima do prédio.

Prédio da Cobrasma. Reprodução Prefeitura Osasco.

Olhando pra esses prédios pensei que quando a geração do meu avô, um operário do setor elétrico, olhava para as fábricas de Osasco, dificilmente devia conceber que dali a 50 anos aquilo viria abaixo e a cidade estaria transformada. Talvez o mesmo ocorra hoje: para nós é mais fácil imaginar o fim dos tempos do que uma Osasco sem esses imensos prédios residenciais – assim como aquela ideia do Zizek de que hoje, nas narrativas artísticas e no nosso imaginário coletivo, é mais fácil conceber o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É verdade. A cada dia parecemos mais perto do fim do mundo do que do fim do capitalismo. Mas o mundo não acaba e as lutas anticapitalistas permanecem algo fundamental.

Quando falamos em lutas anticapitalistas parece algo alienígena, mas elas estão por toda parte e são complexas. Se digo a um colega trabalhador de aplicativo que aquilo é muita exploração, pode soar ofensivo. Como poderíamos criticar aplicativos que fornecem um meio de subsistência, um “emprego”, em um país verdadeiramente assolado pelo desemprego? É verdade, ruim com eles, pior sem eles. Porém, é preciso ver as coisas em perspectiva histórica, se não ficamos cegos em nossa realidade imediata.

Um operário da Cobrasma nos anos 70 tinha direitos trabalhistas muitos mais consolidados que um trabalhador de aplicativo hoje. A retirada de vínculo imposta pela uberização do trabalho coloca condições de vida muito mais difíceis aos trabalhadores ao longo dos anos. O que já não era bom vai piorando aos poucos e não vamos percebendo isso se não compararmos com as gerações anteriores. Os operários não tinham uma vida boa, mas muitos compraram terrenos, construíram suas pequenas casas e deram vida digna para suas famílias. Muitos dos trabalhadores de apps cresceram nessas casas, herdadas de seus avôs nos bairros populares – como eu. Porém, hoje, esses trabalhadores dificilmente terão condições de comprar um terreno para construir, ou então de comprar um desses novos apartamentos, ficando portanto sujeitos aos aluguéis e puxadinhos.

A subjetividade coletiva se altera, cada vez mais inserida na lógica empreendedora e individualista, recalcada nos condomínios

Além da piora na condição de vida e das transformações urbanas das cidades, outras coisas também vão se transformando com o passar do tempo e o soprar dos ventos futuros: a subjetividade coletiva flutua junto do erguer dos prédios e do derrubar das fábricas, ao som das buzinas de cada vez mais motos e carros. O que antes eram grandes aglomerações de trabalhadores, com angústias coletivas e suas organizações de classe, hoje são os empreendedores de si mesmos, fragmentados em seus automóveis e com uma coletividade limitada – apesar dos fundamentais movimentos de resistência a isso, como os Breques dos Apps, os Entregadores Antifascistas e as cada vez mais organizadas entidades e cooperativas dessas categorias (vale ler o Ruy Braga, o Ricardo Antunes e outros, sobre uberização/precarização do trabalho). De qualquer forma, a subjetividade coletiva se altera, cada vez mais inserida na lógica empreendedora e individualista, recalcada nos condomínios, sob a tutela dos síndicos (vale ler o Dunker sobre isso), e controlada pelos patrões de si mesmos, com aquela sociedade de massas, da vigilância e da disciplina (Foucault), dando lugar à uma sociedade de forte individualidade, onde o cansaço (Byung-Chul Han) se transforma em uma nova forma coercitiva de nos cobrarmos o sucesso individual, enquanto nos afastamos mais de cobrar do Estado e da sociedade organizada os sucessos coletivos, naquele estilo de países nórdicos de bem-estar social, por exemplo, ideia que vigorava no imaginário coletivo dos anos 80 mas que ruiu ao longo dos anos 90, abrindo espaço ao empreendedorismo de si próprio.