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BRASIL

Volta Redonda: os 33 anos da grande greve contra a truculência do Capital

Em torno da história da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fundada em 1941, forjou-se vigoroso movimento operário-sindical que, além de imprimir tensão à modernização conservadora do país, escreveu, em aliança com diversos movimentos sociais, um dos mais célebres episódios da história da classe trabalhadora brasileira: o confronto contra o Exército em novembro de 1988.

Marcos A. Ramalho Gandra*, de Volta Redonda, RJ

Greve de novembro de 1988, antes do confronto que vitimou três operários. Ao centro, o deputado constituinte, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e prefeito eleito durante a greve, Juarez Antunes. Centro de Memória do Sul Fluminense “Genival Luís da Silva” – CEMESF/UFF

Ainda sem resolver a “questão siderúrgica”, condição para o projeto de modernização conservadora da Era Vargas, na Ditadura do Estado Novo (1937-1945), através das Comissões Técnicas (que esvaziaram funções parlamentares) implantou-se a siderurgia no país. O empreendimento exigia volume de capital não assumido pelos capitais locais, e pesado demais para o Estado. Habilmente, Vargas explorou a política estadunidense de domínio imperialista sobre a América Latina, ao “flertar” com a Alemanha nazista, fazendo com que os EUA liberassem o investimento, impondo contrapartidas militares e culturais, via Eximbank.

A idealização, construção e operação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) teve presença maciça de militares, que buscavam se posicionar de forma privilegiada na nova configuração econômico-política que o feito desencadearia. O estabelecimento do 1º Batalhão de Infantaria Blindada (1º BIB) na cidade de Barra Mansa em 1950, quatro anos após o início da operação da Usina Presidente Vargas (UPV), tinha a função de monitorar a “subversão” sindical e comunista na região.

Construiu-se uma cidade para fixar a força de trabalho necessária para atender à CSN, e a primeira geração de operários, os “arigós” (pássaros migratórios), esteve muito submetida à pressão ideológica da “família siderúrgica” da “CSN-mãe” e à concepção militarizada de trabalho, que mascaravam as despóticas relações de trabalho através da “política de proteção social” específica para os metalúrgicos, com salários acima da média nacional, fornecimento de moradias, saúde, educação, lazer, cultura, demais serviços urbanos, etc. Tal política constituía-se em base material para a malograda tentativa de passivização da categoria através do “compromisso fordista” entre os poderes do Estado, do capital (personificado nas chefias), e o sindical, assinalamos, conseguiu evitar a deflagração de greves até 1964, dadas as intervenções dos presidentes da República que negociavam diretamente com a categoria via Sindicato dos Metalúrgicos.

As tensões entre operários siderúrgicos e o Populismo guardavam relação com a ambígua relação deste operariado para com a CSN, empresa defendida como patrimônio nacional apesar dos crescentes conflitos com as chefias. A participação, entre outras experiências, no Comício das Reformas de Base na Central do Brasil, demonstra o grau de imbricação desta classe com o ameaçado projeto no poder. A tentativa de greve contra o golpe de Estado em 1º de abril de 1964 deveu-se ao fato de CSN e Exército já terem previamente traçado o Plano de Segurança da Usina, em que todas as lideranças já estavam mapeadas. A brutal repressão de primeira hora contra os metalúrgicos da CSN (77 prisões ilegais, 113 demitidos sumariamente), não permite revisionismos como os das teses que apontam para uma “ditabranda” até o advento do  AI-5.

O Relatório Final da Comissão Municipal da Verdade “Dom Waldyr Calheiros” (CMV-VR), demonstra como Volta Redonda foi a Cidade “vigiada” do Aço: nos dez primeiros casos de (graves) violações de direitos humanos relatados destacamos: a) o 1º Batalhão de Infantaria Blindada (1º BIB, em Barra Mansa) foi local de torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres; b) a repressão atingiu lideranças sindicais, estudantis, religiosas e de organizações de esquerda; c) mortes sob torturas soldados do 1º BIB, denunciadas, obrigaram o Exército brasileiro a um inédito reconhecimento destas práticas; d) foi determinante a atuação do bispo Waldyr Calheiros na resistência à Ditadura.

Os últimos quatro casos relatados vão além de 1985, ano tido como “oficial” de encerramento da Ditadura Militar-Empresarial, o que evidencia a tutela militar sobre o governo Sarney.  A Assessoria de Segurança e Informações da CSN (ASI, braço do Serviço Nacional de Informações-SNI) e o Departamento de Segurança da Usina (DSU), seguiam em plena operação na Cidade “vigiada” do Aço, infiltrando-se e produzindo relatórios e dossiês sobre os movimentos, mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Em novembro de 1988 a invasão da cidade pelo Exército visou encerrar a greve, como ocorreu nas seis anteriores, mas agora de forma brutal e exemplar. A primeira greve na CSN, em 1984, já foi de ocupação, dado o gigantismo da Usina Presidente Vargas. Para tanto, foi crucial o apoio dos outros movimentos sociais para sua sustentação, iniciando dois determinantes fenômenos: a cada vez maior organização das comissões de fábrica, condição para o controle operário sobre a CSN; e a crescente imbricação sindical-popular, dada a indignação com as agressões militares.

Tropas de cinco quartéis do Exército, Polícia do Exército, Choque da PM e Polícias Civil e Federal não foram capazes de amedrontar a população, decidida a resistir em novembro de 1988. Mesmo com o confronto de horas, o assassinato de Willian, Walmir e Barroso e dezenas de presos e feridos, a greve continuou até conquistar todas as reivindicações. A embrionária experiência de poder popular, com assembleias diárias (algumas com mais de 50 mil pessoas) suplantou os poderes institucionais. Dentro da Usina e sem condições políticas para reprimir, o Exército assistiu de forma humilhante a Cidade “vermelha” do Aço influenciar o resultado das eleições municipais (como na vitória de Luiza Erundina em São Paulo, entre muitas outras), eleger Juarez Antunes prefeito (ex-presidente do Sindicato e deputado constituinte), e tensionar a “ordem”, leia-se tutela militar sobre a sociedade brasileira. Os responsáveis pela agressão à cidade ainda carecem de punição.

O governo de Juarez Antunes, que tentava estabelecer outra forma de relação do poder público com a população organizada, foi subitamente encerrado com o acidente de carro que o vitimou com apenas 51 dias à frente da prefeitura. Investigações à época confirmaram tratar-se de acidente, mas a CMV-VR recomendou a reabertura do inquérito em função do bispo Waldyr Calheiros ter sido avisado pela Polícia Federal de que ele e Juarez poderiam sofrer um atentado nestas condições.

O monumento projetado por Oscar Niemeyer em homenagem aos operários assassinados, inaugurado em 1º de Maio de 1989 com a presença dos grandes nomes da esquerda brasileira, sofreu atentado terrorista na madrugada seguinte, e as suspeitas apontam para o Batalhão de Forças Especiais do Exército. A documentação da CPI instalada na ALERJ para investigar o atentado desapareceu, e a testemunha-chave, um soldado que fazia ronda em casas cedidas pela CSN aos militares nas proximidades do monumento, foi assassinada às vésperas de seu depoimento.

Memorial Nove de Novembro, no dia de sua inauguração (01/05/1989)
Memorial Nove de Novembro após explosão, na madrugada subsequente a inauguração. Centro de Memória do Sul Fluminense “Genival Luís da Silva” – CEMESF/UFF

A luta dos trabalhadores da CSN era de toda a cidade, que agiu no limite máximo de sua capacidade de resistência e auto-organização, fugindo do script da transição tutelada pelos militares, mas destacada de uma sustentação nacional para tal radicalidade. A quebra desta ponta de lança das classes subalternizadas era condição estratégica para a implantação do Neoliberalismo no país, o que se deu com as derrotas da greve de 30 dias em 1990 e da CUT nas eleições sindicais de 1992, permitindo a privatização da CSN. A “caixa de Pandora” foi aberta, mas como a História não tem fim, urge sempre “esperançar”.

 

*Doutor em História pela UFF, professor do Curso de Serviço Social do Centro Universitário de Volta Redonda (UniFOA)

Para saber mais:

ANTUNES, Ricardo. O novo sindicalismo no Brasil. Campinas: Pontes, 199

BEDÊ, Edgar D. A. T. Formação da classe operária em Volta Redonda.Volta Redonda: Nova Gráfica e Editora, 2010.

GANDRA, Marcos A. Ramalho. Cidade “vigiada” do Aço: dominação autocrático-burguesa, repressão militar e resistência popular-sindical em Volta Redonda (1984-1990). Niterói: Universidade Federal Fluminense-UFF, Tese de Doutorado, 2021.

GRACIOLLI, Edílson. Um caldeirão chamado CSN. Uberlândia: Edufu, 1997. ___________ Privatização da CSN: da luta de classes à parceria. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998.

 

Vídeo-documentários: 

BEDÊ, Pablo Marins. Volta Redonda: fatos marcantes. Volta Redonda: Arigó Filmes, 2011. 

COUTINHO, Eduardo. Volta Redonda – Memorial da Greve. Rio de Janeiro: Instituto Sociológico de Estudos sobre Religião (ISER), 1989. 

SILVA, Erasmo José da. 1988: uma greve, corações e mentes. Volta Redonda: TVR-UFF, 2018.