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BRASIL

Se não nós, quem?

Juliano Medeiros
Divulgação/Redes sociais

Conheço as posições do professor Luís Felipe Miguel e o considero um dos mais brilhantes estudiosos da democracia no Brasil.

Me apoiei em suas reflexões sobre democracia e desigualdade e sobre democracia e representação para redigir parte da minha tese e cheguei a ser seu aluno na Universidade de Brasília – um mau aluno, reconheço – enquanto me dividia entre o doutorado e as tarefas como dirigente partidário.

É pelo respeito que tenho pelas posições do professor Luís Felipe Miguel que tomo a liberdade de contestar algumas de suas posições sobre o PSOL, publicadas por ocasião de nosso 7º Congresso Nacional. Confesso que elas me surpreenderam, quer pela superficialidade, quer pelo desconhecimento da dinâmica política e social das esquerdas no Brasil. Mas, infelizmente, não é a primeira vez que indivíduos brilhantes atrás de uma escrivaninha se mostram péssimos analistas políticos.

Miguel afirma que o PSOL estaria numa “situação difícil” pois se encontra dividido entre lançar uma candidatura própria e apoiar o ex-presidente Lula. E que, em ambos os cenários, o PSOL sairia perdendo: com candidatura própria, seria relegado à marginalidade política e eleitoral; apoiando Lula, se tornaria “caudatário do lulismo” ou um simples satélite do PT.

Com esse argumento, Miguel conclui que o PSOL “falhou ao definir uma identidade como partido” e que está limitado a um projeto eleitoral sem jamais conseguir se firmar como um polo relevante na política brasileira. Em outras palavras, Miguel sustenta que o projeto do PSOL não tem viabilidade por não ter firmado uma “identidade”. Na prática, o professor da UnB prevê o aprofundamento da “crise do PSOL” e sua incapacidade de representar um projeto “à esquerda do PT”.

Não é a primeira vez que alguém diz algo semelhante em relação ao PSOL. O surpreendente é que isso seja feito quando o PSOL alcança sua maior e mais representativa bancada na Câmara dos Deputados, quando ele rompe a barreira dos 250 mil filiadas e filiados, quando ele supera a cláusula de barreiras sem dificuldades, quando governa sua primeira grande cidade no país (Belém) e quando projeta Boulos como a mais importante liderança da nova geração da esquerda brasileira.

O argumento central do professor Luís Felipe Miguel giro em torno da tese da “debilidade histórica” do PSOL. Se bem entendi, essa debilidade seria causada pela dificuldade de afirmar uma identidade própria (não fica clara a dimensão “histórica” dessa debilidade nos argumentos de Miguel, mas como historiador, sei que os cientistas políticos às vezes têm dificuldade com esse conceito). Para ele, o partido oscilaria entre a condição de “grilo falante do petismo” – uma espécie de consciência crítica do PT – e o identitarismo.

Vejamos. O PSOL surgiu como um partido de resistência, formado por parlamentares, lideranças sindicais do funcionalismo público e estudantes. E a que esses militantes socialistas resistiam? Resistiam ao processo de aggiornamento da esmagadora maioria da esquerda brasileira às “razões de Estado” e às limitações impostas pelos instrumentos de governabilidade herdados dos governos tucanos. Creio que em relação à leitura desse processo Miguel e eu não teremos divergências.

Partindo desse ponto, pergunto: o PSOL falhou na tarefa de ser um polo para aqueles que criticavam esse aggiornamento? Ele abandonou sua vocação insurgente para ser um partido como os demais? Ele colocou interesses eleitorais acima de suas posições políticas, mesmo quando elas fazem com o que o partido perca interlocução junto a setores mais conservadores? Ele deixou de crescer, como outros partidos à esquerda do PT? Para todas as perguntas a resposta é não.

Ao contrário do que afirma Miguel, a identidade do PSOL está bastante definida: ele é um partido socialista, libertário, anticapitalista, que se vê como parte de um fenômeno mundial onde surgem novos projetos de esquerda radical que apontam os limites da democracia liberal, da globalização neoliberal e das saídas apresentadas pela centro-esquerda. Reconhecemos a dimensão estrutural do machismo, do racismo, da LGBTfobia e outras formas de opressão como funcionais ao sistema do capital, e combatemos as abordagens liberais e culturalistas desses fenômenos. É por isso que elegemos tantos jovens, mulheres, negros e negras, LGBTs e não por um suposto “identitarismo”.

Há uma hipótese, sustentado por uns poucos intelectuais, de que as condições históricas do Brasil tornariam impossível o surgimento de um partido com peso de massas à esquerda do PT. Essa hipótese se mostra cada dia mais infundada. Outros, ainda, sustentam que a crise da centro-esquerda seria passageira, o que faria com que a esquerda radical estivesse com seus dias contados, no Brasil e no mundo.

Não posso dizer se o professor Luís Felipe Miguel se associa a alguma dessas teses para questionar a possibilidade do PSOL ocupar um papel de destaque na política brasileira. Mas até aqui, suas “previsões” sobre os limites históricos do PSOL – como a de muitos outros – não se confirmaram: hoje o partido é o que mais cresce no país e o que tem melhores condições de dialogar com novos ativismos e movimentos, porque amadureceu sem rejeitar suas raízes insurgentes e rebeldes. Acreditar que uma eleição definirá o destino de um partido que sobreviveu a momentos muito mais complexos é um erro de análise.

Gramsci dizia que não há previsão meramente objetiva, já que toda previsão traz consigo os desejos de quem prevê, sendo, portanto, um elemento constitutivo do processo de conquista de um determinado objetivo. Me parece que a “previsão” de Luís Felipe Miguel, apesar de suas ressalvas (até apoiei Boulos em 2018!) tem mais a ver com seus desejos do que com a realidade. Se o PSOL não puder ocupar o espaço aberto, no Brasil e no mundo, para uma esquerda renovada, quem ocupará?

*Publicado originalmente em Voz da Resistência