Pular para o conteúdo
Colunas

A reforma judicial na Argentina

Leia o último artigo da série Lava Jato e o capital-imperialismo

Laura Alonso, ex-presidente da Transparência Internacional na Argentina e uma das principais opositoras à reforma judicial, é um dos elos da direita argentina com a malha de agências da Global War on Corruption. Imagem: PdN.

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Gabriel Kanaan

O projeto de reforma judicial na Argentina, apresentado pelo presidente Alberto Fernández, propõe restringir os poderes do Ministério Público para frear o bonapartismo de toga do lavajatismo argentino.

Como revelaram os telegramas da Embaixada norte-americana em Buenos Aires vazados pela WikiLeaks, o juiz do Supremo Tribunal de Justicia Ricardo Lorenzetti, um dos articuladores da direita argentina, é um dos elos centrais da conexão de toga com os Estados Unidos +

 

Outro contato da Embaixada norte-americana em Buenos Aires é a ex-presidente da ONG de combate à corrupção Poder Ciudadano (PC), filial argentina da Transparência Internacional, que relatou à Embaixada que ao mesmo tempo em que investigava a ex-presidenta de centro-esquerda Cristina Kirchner (2007-2015), assessorava o ex-presidente da direita argentina Maurício Macri (2015-2019) +

 

Para cortar pela raiz a corrupção, tão naturalizada nesse sistema que legalmente coloca os interesses privados como mais importantes que os interesses coletivos, precisamos construir um bom senso sobre a necessidade de mecanismos democráticos para o controle popular das empresas +

Dia 28 de agosto de 2020, o Senado argentino aprovou o projeto para a reforma judicial encaminhado pelo presidente do partido Justicialista Alberto Fernández (peronista-kirchnerista), causando a repulsa da oposição de direita, das associações de juízes e da mídia golpista. Na apresentação do projeto, Fernández disse que não ficaria “distraído” ao avanço dos interesses políticos e econômicos sobre o sistema judiciário, discursando contra o poder acumulado pelos juízes federais encarregados das ações de combate à corrupção, ao narcotráfico e ao terrorismo. Agora, o projeto está em tramitação no Congresso, onde o governo não tem maioria e negocia sua aprovação com outros partidos. Para impulsionar a reforma, Fernández convidou, em março de 2021, o deputado federal Martín Soria, um dos principais críticos da lawfare, para dirigir o Ministério da Justiça, substituindo Marcela Losardo, que demonstrou desejo de se afastar do cargo depois das críticas de Fernandez ao Poder Judiciário.

Como analisaram Hoeveler e Duarte aqui no Esquerda Online, as mobilizações da extrema-direita argentina estão avançando, e o conjunto da oposição de direita começa a agir para inviabilizar o governo através, por exemplo, do esvaziamento das votações no Congresso, o que de fato estão conseguindo no momento. O Propuesta Republicana (PRO), partido do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), dirige a oposição para barrar a reforma judicial no Congresso e convoca banderazos contra o governo, aos quais a Confederación General de los Trabajadores (CGT) responde com contra-manifestações.

A oposição de esquerda, organizada na Frente de Izquierda y de los Trabajadores – Unidad (FIT-U), se corretamente exige o enfrentamento estrutural ao Poder Judiciário, tem, na prática, repetido o discurso macrista de que a reforma é apenas uma manobra para livrar a corrupta Cristina Kirchner da prisão. A polarização em torno da reforma judicial é vista por esses setores da esquerda socialista como “apenas uma disputa entre os setores dominantes”. Argumentando que a reforma não propõe nenhuma transformação estrutural, a FIT-U anunciou que vai votar com a oposição de direita: a deputada federal Romina del Plá disse que o Partido Obrero é “contra a impunidade dos dois lados da moeda”, e o deputado federal Nicolás del Caño falou que o que o Partido de los Trabajadores Socialistas defende é o voto popular para o Judiciário – o que, como veremos, o kirchnerismo conseguiu aprovar em parte no Congresso em 2013, mas teve a lei barrada pelo próprio Supremo. Como estamos tentando mostrar nessa série, há uma característica empresarial no discurso de combate à corrupção que tem ficado invisível para parte da esquerda socialista. Como discutimos na parte 1, não podemos perder de vista como a casta de togados está intimamente emaranhada a essa visão de mundo empresarial e à sua agenda anticorrupção, e por isso ela se volta contra a reforma judicial.

há uma característica empresarial no discurso de combate à corrupção que tem ficado invisível para parte da esquerda socialista. Como discutimos na parte 1, não podemos perder de vista como a casta de togados está intimamente emaranhada a essa visão de mundo empresarial e à sua agenda anticorrupção, e por isso ela se volta contra a reforma judicial.

A Câmara de Crimes, os Tribunais Orais e a Câmara Civil e Comercial Federal descreveram a reforma como sua certidão de óbito. Na defensiva, os juízes de Comodoro Py, responsáveis pelo caso de Kirchner, reclamaram da injusta acusação de serem uma corporação macrista, argumentando que “qualquer coisa que dissermos será usada contra nós” pois “nos prestam demasiada atenção”. Um dos juízes disse que uma reforma era necessária, mas não esta, qualificada como absurda, desconcertante e decepcionante por outro dos juízes.

O Clarín e La Nación, a Globo e o Estadão da Argentina, acusaram o governo de querer livrar a corrupta Cristina Kirchner da cadeia e aparelhar a Corte Suprema da Justicia (CSJ, o STF argentino). Como no Brasil, a mídia burguesa está intimamente articulada aos juízes e procuradores da Lava Jato argentina empenhados na prisão de Kirchner. E como no Brasil, essa mídia golpista atua na base de fake news, pois a proposta não fala sobre nenhuma mudança na configuração dos 5 juízes da Corte Suprema de Justiça, mesmo que estes, sob a direção de Ricardo Lorenzetti, estejam articulados à oposição ao governo, chegando a não atender o convite de reunião com Fernández para discutir a reforma (apenas 1 das ministras compareceu).

O STF argentino foi aparelhado, na verdade, durante o governo do tão exaltado pela mídia golpista Maurício Macri, que por não ter maioria no Senado, impôs 2 dos ministros por decreto. Macri também ficou conhecido pelo esquema de espionagem que montou sobre seus opositores, inclusive Kirchner, com a Agencia Federal de Inteligencia (AFI), a ABIN argentina.

Em suma, a proposta do governo é unificar os tribunais penais com os tribunais econômicos, categoria em que se enquadram os tribunais responsáveis por lavagem de dinheiro, e aumentar o número deles para agilizar o sistema judicial e diluir o poder dos magistrados. Isso irá aumentar de 12 para 46 o número de juízes da Justiça Nacional sediada em Comodoro Py (que não é a Corte Suprema), uma das instâncias que investiga Kirchner. O projeto também visa estabelecer, tendo em vista as escolhas viciadas dos juízes durante o governo Macri, o sorteio manual de juízes responsáveis pelos processos, bem como uma prova escrita e gravada nos concursos para entrada de novos juízes. São pequenas medidas para restringir o bonapartismo de uma instituição descolada de qualquer controle popular, mas que, como vimos, geraram grande insatisfação na burguesia argentina, justamente pela importância que o Poder Judiciário assume no Estado burguês, aprofundada com a guerra global à corrupção e a universalização da rule of law do capital-imperialismo.

Conexões de toga entre o juiz do STF argentino, Ricardo Lorenzetti, e a Suprema Corte dos Estados Unidos

Como nos outros países da América Latina que analisamos ao longo da série, na Argentina foi costurada uma densa teia entre os aparatos de hegemonia estadunidenses de combate à corrupção e os agentes de aplicação da lei argentinos (law enforcement agents, nomencaltura usada pelos norte-americanos para se referir a juízes, procuradores e policiais). Desenrolamos o primeiro fio dessa teia a partir do próprio Projeto Pontes, aquele promovido pela Embaixada dos EUA em Brasília, que costurou aproximações de policiais de vários países latino-americanos com o programa estadunidense de combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro. Os majores da Unidade de Investigação Anti-Terrorismo da polícia argentina Alejandro Gabriel Cassaglia e Horácio Barreiro viajaram de Buenos Aires para a conferência no Rio de Janeiro.

Segundo o Linkedin de Cassaglia, ele já participou de outros três cursos de combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro organizados pela Embaixada dos EUA, e desde então reproduz o discurso de guerra ao terrorismo através de aparatos de hegemonia estatais e privados. Ele dirige a Unidade de Anti-Terrorismo da polícia argentina; é um dos diretores do Foro de Segurança da América Latina (FSAL) e da Comunidade de Inteligência e Segurança Global (CISEG); integra o Comitê da Câmara Argentina de Profissionais em Segurança Integrada (CAPSI) e o Comitê Interamericano Contra o Terrorismo da OEA (CICTE). Recentemente, Cassaglia lançou um livro discutindo a necessidade de transformar a legislação argentina para combater o terrorismo islâmico.

Cassaglia é apenas um exemplo entre centenas de agentes argentinos que foram formados pela rede de programas de treinamento no combate ao terrorismo, à corrupção e às drogas organizada pelos Estados Unidos. No arquivo da WikiLeaks de telegramas enviados da Embaixada dos EUA em Buenos Aires, que possui cerca de 10% do total de telegramas enviados de 2003 a 2010, há 122 listas de agentes argentinos que participaram das formações da Embaixada.

Segundo disse o ex-procurador estadunidense Kenneth Blanco durante visita a Lorenzetti, então presidente do STF argentino, em novembro de 2017, “nós trabalhamos juntos na área de corrupção e lavagem de dinheiro desde o ano passado”. Blanco, vamos lembrar, é aquele que vimos na parte 2, admitindo a ilegalidade da cooperação entre os Ministérios da Justiça brasileiro e estadunidense quando falou sobre como a relação íntima que tinha com Sérgio Moro e Rodrigo Janot ia “muito além dos procedimentos oficiais”. Depois da repercussão negativa que teve sua fala, Blanco foi mais cuidadoso ao omitir que a cooperação com Lorenzetti era muito mais antiga.

Como aponta um telegrama enviado pela Embaixada dos EUA em 2010, Lorenzetti estava, desde então, articulado à oposição dirigida pelo PRO, o partido de Macri. O documento relata o encontro da Embaixada com a líder da oposição no Congresso Gabriela Michetti, que se tornaria a vice de Macri em 2015. “Calorosa e amigável com as autoridades dos EUA”, escreve o Embaixador, “[Michetti] merece nossa atenção contínua”. A congressista informou que estava articulando um “grupo informal da oposição, que deve permanecer confidencial”, que envolvia dirigentes dos partidos da oposição, empresários e Lorenzetti, “unificados por uma agenda de médio prazo”. Michetti pediu a ajuda de especialistas dos EUA “em um tópico de interesse” e planejou uma reunião de todo grupo com a Embaixada. Infelizmente, o relatório dessa reunião não faz parte dos 10% de telegramas vazados pela WikiLeaks.

A “outra reforma judicial”, aquela citada por um dos juízes da Suprema Corte em sua crítica à reforma proposta pelo governo de Alberto Fernandez, já era formulada por Lorenzetti há décadas em conjunto com os aparatos do capital-imperialismo de combate à corrupção. Em novembro de 2006, a Embaixada se reuniu com a Corte Suprema da Justiça da Argentina para debater a reforma judicial que então estava em tramitação na CSJ. Lorenzetti e os outros magistrados “louvaram” os programas de cooperação e o “relacionamento doutrinariamente próximo” com a Corte Suprema dos EUA.

Esse relacionamento “doutrinariamente próximo” era tecido por uma intensa atividade da Embaixada na organização de cursos de formação, projetos de intercâmbio e outros tipos de parceria. Na mesma reunião, por exemplo, o Embaixador Anthony Wayne ofereceu expandir as cooperações e organizar seminários de formação sobre a justiça nos EUA. Em setembro de 2007, em outra reunião sobre a reforma judicial, Lorenzetti planejou com a Embaixada uma visita à Washington com “a esperança de que [a visita] result[asse] no planejamento de uma conferência pan-americana sobre rule of law e independência judicial em Buenos Aires”. A Embaixada, da mesma forma que viu em Sérgio Moro e na equipe que participou da Conferência do Projeto Pontes uma oportunidade que não podia ser perdida, analisou que “Lorenzetti oferece uma oportunidade de engajar o sistema judicial argentino (…) em uma forte base para cooperações”. Thomas Shannon, o coordenador das Embaixadas na América Latina, concordou com o Embaixador na Argentina que Lorenzetti era “de fala mansa, tem uma atitude calorosa e acolhedora com as autoridades americanas e conhece os EUA, tendo sido professor no país”.

A realização de conferências e outros espaços de socialização entre juízes estadunidenses e latino-americanos, sempre contando com robusto financiamento para as viagens dos latino-americanos ao solo norte-americano, é apresentada abertamente como uma forma de moldar os sistemas judiciários estrangeiros à imagem da rule of law estadunidense.

A realização de conferências e outros espaços de socialização entre juízes estadunidenses e latino-americanos, sempre contando com robusto financiamento para as viagens dos latino-americanos ao solo norte-americano, é apresentada abertamente como uma forma de moldar os sistemas judiciários estrangeiros à imagem da rule of law estadunidense. Após a visita de Lorenzetti à Washington no final de 2007, avançaram as discussões sobre a reforma que “modernizará o judiciário e aprimorará a rule of law na Argentina”. Um dos projetos da modernização foi a criação de uma versão argentina da revista do American Law Institute, um dos itinerários da viagem de Lorenzetti. Ele viajou novamente para Washington em maio de 2008, agora sob o convite do think tank, Center for Strategic & International Studies, com o financiamento da Embaixada e com visita ao Conselho das Américas. Dois meses depois, Shannon encontrou Lorenzetti para discutir o plano daquela reforma que realizaria “a transição a um sistema judicial de estilo norte-americano”. Também foi discutida a expansão dos programas de cooperação e intercâmbio judiciais, como o “Justiça Passando por Mudanças” e o “Juízes vão às Escolas”. Dessa forma, o espelhamento da institucionalidade capital-imperialista estadunidense e a construção da hegemonia da rule of law vai da alta corte até o chão da escola.

A conferência que Lorenzetti havia pensado com a Embaixada em setembro de 2007 começa a ser de fato organizada em abril de 2009. Seu objetivo era unificar, sob a coordenação do capital-imperialismo estadunidense, “ministros de Supremas Cortes de toda América (…) para criar um corpo internacional que dê base à rule of law no continente”. A conferência seria, nota o telegrama, uma versão atualizada da agenda da Primeira Conferência Judicial das Américas realizada em Washington no ano de 1995. Para fazer os preparativos da conferência, uma nova viagem de Lorenzetti aos EUA foi planejada, agora para visitar o Centro Judicial Federal, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).

A partir da análise das posições da Embaixada, observamos como a conferência era vista como uma forma de se contrapôr ao governo Kirchner. Os telegramas observavam que Kirchner “tem demonstrado pouco interesse na reforma judicial”, e a partir disso apontavam que a conferência seria a faísca da tão necessária cooperação hemisférica para a reforma dos judiciários. O encontro aconteceu em setembro de 2009, um mês antes da conferência do Projeto Pontes, e de forma muito semelhante, teve workshops de treinamento judicial que abordaram assuntos sobre a rule of law e sobre as iniciativas do BID no continente. Infelizmente, o relatório sobre o evento também não está entre os 10% de telegramas vazados pela WikiLeaks.

Mais do que demonstrar pouco interesse, Kirchner era vista pela Embaixada como um obstáculo para a “modernização” do Judiciário argentino. Em julho de 2009, no telegrama “Cristina irá terminar seu mandato?”, a Embaixada comentava que o chefe de gabinete de Cristina Kirchner, Aníbal Fernández, descrito como “um conhecido defensor da legalização das drogas”, estava na mira por acusações de corrupção e narcotráfico. Mas, inconformada, observava a desmobilização da oposição, “fazendo-nos pensar no que seria necessário para levar as pessoas às ruas”. Uma das estratégias traçadas pela Embaixada para “tornar a corrupção um assunto mais saliente entre argentinos” seria “conduzir um estudo sobre corrupção em times de futebol”.

Segundo outro telegrama, Kirchner não promovia o combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo porque “tinha muito a ganhar com o relaxamento da lei”. Esperançoso, o Embaixador relatava que estava para sair um relatório que iria “causar o embaraço do governo Kirchner”. O relatório era do Aparelho Privado de Hegemonia Empresarial (APHE) que investigamos na parte 3, a Força Tarefa de Ação Financeira do Grupo de Ação Financeira da América do Sul (GAFISUD) – uma regional do Groupe d’Action Financière (GAFI) criado pelo G7 em 1989 para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. Novamente, temos um exemplo de ação conjunta entre aparatos de hegemonia anticorrupção estatais e privados.

No telegrama, a Embaixada já previa que Kirchner responderia ao relatório com acusações contra “conspirações envolvendo os Estados Unidos”. De fato, dois meses depois, o autor do relatório, Alejandro Strega, foi afastado da Unidad de Información Financiera (UIF) por Cristina. Embora tivesse seus interesses no afastamento, Cristina o fez atendendo a um pedido do então presidente equatoriano Rafael Corrêa, feito depois de Strega colocar o Equador na lista de países de alto risco de corrupção.

Também merecem destaque as conexões entre a Lava Jato brasileira e a argentina, tecidas em torno dos programas de cooperação internacional do Ministério da Justiça brasileiro lançados após o golpe de 2016, como a Rede Ibero-americana de Procuradores Contra a Corrupção. Em torno destes programas, foi fundada, em maio de 2017, por 193 juízes argentinos, a Asociación de Jueces Federales (AJUFE), com o mesmo nome da AJUFE brasileira, “tendo a Lava Jato como modelo inspirador”. A referência foi tão direta que deixou os juízes na defensiva, levando vários dos presentes na cerimônia de inauguração da AJUFE a argumentar que a fundação “não era algo estranho” nem era “contra ninguém”.

A conferência de fundação da AJUFE argentina foi realizada na faculdade de direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), um dos centros da articulação entre a guerra global à corrupção e o macrismo. A faculdade é a mesma que em maio deste ano convidou Moro para palestrar sobre o combate à corrupção e o Estado de direito, convite feito por meio do Centro de Estudos sobre Transparência e Luta da faculdade, vinculado ao PRO, o partido de Macri. No entanto, como nem toda universidade estava aparelhada, a pressão dos movimentos kirchneristas, em denunciar a articulação de lawfare, causou o cancelamento do evento.

Como a AJUFE brasileira, que tem seus congressos financiados pelo Departamento de Justiça dos EUA, que deposita o valor para passagens e refeições direto na conta dos juízes brasileiros, a AJUFE argentina foi forjada no bojo da subserviência ao capital-imperialismo estadunidense. O articulador da AJUFE argentina foi Ariel Lijo, nomeado secretário-geral da organização. Ele era próximo da Embaixada norte-americana pelo menos desde 2008, quando telegramas relatam o pedido por ajuda de Lijo na investigação sobre a compra de políticos argentinos por uma empresa alemã. Em documentos de 2009, é relatada a participação de Lijo em uma oficina organizada pela Embaixada.

Outro juiz presente na cerimônia de fundação foi o juiz Claudio Bonadio, geralmente descrito como o “Moro argentino”, visto que ele comandou a acusação contra Kirchner. Tal associação geralmente ressalta como em 2017, Lorenzetti, Lijo e Bonadio se reuniram com Moro a portas fechadas. É preciso destacar, porém, que Bonadio, embora tenha se transformado em uma das referências do macrismo, tem trajetória distinta da dos paladinos anticorrupção. Vindo do kirchnerismo, sua relação com as agências estadunidenses no período abarcado pelos telegramas da WikiLeaks (2003-2010) era, portanto, bastante diferente. No início do governo de Cristina, Bonadio era visto com maus olhos pela Embaixada, que o criticou, por exemplo, por “perseguir” o CEO da Metlife, uma seguradora norte-americana, durante a nacionalização da previdência argentina por Kirchner.

Por fim, uma última juíza de Comodoro Py presente no evento que merece destaque foi María Servini. Segundo os telegramas da Embaixada, a juíza parecia ser a preferida dos macristas, visto que eles repassavam para ela todas as acusações contra o suposto financiamento ilícito das campanhas de Kirchner. Sua veia anti-kirchnerista ficou transparente quando, em 2013, Servini foi a juíza responsável pela revogação da reforma judicial de 2013 que Kirchner havia conseguido aprovar no Congresso após uma disputada batalha contra o macrismo. Dentre outras medidas, a reforma submetia ao voto popular os 13 membros do Consejo de la Magistratura – que, sob o comando da Corte Suprema de Justicia (o STF argentino), controla o poder judiciário. Esse episódio, onde o carteiraço de um poder não-eleito barra o estabelecimento de mecanismos mínimos de controle popular sobre a justiça, é emblemático da falsidade dos discursos dos promotores da transparência e democracia.

A transparente política macrista

Além de construir pontes com o Poder Judiciário argentino, a Embaixada também se reunia frequentemente com entidades de combate à corrupção da sociedade civil, inclusive funcionando como a articuladora desses grupos. A principal dessas entidades era a ONG Poder Ciudadano (PC), filial argentina da Transparência Internacional (TI), APHE fundado em 1993 por ex-diretores do Banco Mundial, do Exército dos EUA e industriais. Hoje, a TI é presidida por Delia Ferreira, ex-diretora do PC, que no último 15 de outubro, no Colóquio IDEA, organizado pelo Instituto para el Desarrollo Empresarial de la Argentina, atacou o governo por utilizar a pandemia para desrespeitar a independência dos poderes com a proposta de reforma judicial. Na época, a PC era dirigida por Laura Alonso, militante do partido de Macri, o PRO, e membra do Eisenhower Fellowship. Sua parceria com os EUA no combate à corrupção e ao comunismo ia além das fronteiras argentinas, como revelaram mensagens vazadas em 2018 em que Alonso organizava um projeto com a USAID para derrubar o governo cubano.

Quando Macri chegou à presidência e manejou Alonso para a direção da Oficina de Anticorrupção (Unidad de Información Financera – UIF), mudando a legislação para que ela pudesse assumir sem ser advogada, o caráter político da sua luta contra a corrupção ficou mais transparente. Para dar dois exemplos simbólicos, ela defendeu Macri quando 50 empresas do presidente apareceram na lista de investidores em paraísos fiscais dos Panama Papers, e encobriu como o Ministro de Minas e Energia de Macri, o CEO da Shell na Argentina, favoreceu a petrolífera quando ocupava o cargo.

Logo depois de assumir a UIF, Alonso organizou o “Diálogo sobre Ilícitos Financeiros” com os Departamentos do Tesouro, de Segurança Interna e de Justiça dos EUA. No bojo desses projetos, a Corte Suprema Argentina tentou aprovar novas modificações na legislação judiciária, contando com o apoio do Wilson Center, do The Integrity Forum e do Inter American Dialogue.

Como analisaram Romano e Vollenweider, a mídia burguesa argentina, enquanto abafava o envolvimento do então presidente Macri nos Panama Papers, bombardeava as capas de jornal com notícias sobre a “Ruta del dinero K” e o “Caso de los Cuadernos”, que tentavam envolver Kirchner em casos de corrupção. O caso dos cadernos ficou marcado pela denúncia de um empresário argentino que gravou o procurador Stornelli, o Dallagnol do país, e seu ajudante D’Alessio, um consultor do Departamento de Combate às Drogas dos EUA (Drug Enforcement Aency – DEA), o acusando de pagar propina para Kirchner e oferecendo um acordo em troca da cabeça de Cristina.

a malha de aparatos estatais e privados de hegemonia que promovem a agenda da guerra global à corrupção atuou intensamente para transformar o significado da corrupção no senso comum, mantendo camuflado, sob o manto do fetichismo, como a própria natureza do capitalismo é corrupta, onde empresas privadas decidem quais serão e o que é feito do trabalho coletivo da classe trabalhadora.

A oposição entre o PC e Kirchner era evidente. “Não recebendo incentivo do governo”, o PC construía suas parcerias com governadores, prefeitos e empresários. Em telegrama de 2008, o procurador-chefe de casos de corrupção Manuel Garrido foi apontado como um dos aliados da PC, responsável por construir a ponte com o BID. Um ano depois, a Embaixada registrava, pessimista, a renúncia de Garrido, “limitado pelo procurador-geral”. O documento apontou o “desbaste da estrutura anticorrupção” realizado por Kirchner e destacou que a Argentina continuava na lista da Transparência Internacional de países que falharam em implementar práticas anticorrupção. Realmente, Garrido estava no encalço de Kirchner, e foi o procurador que iniciou, em 2015, as investigações sobre o esquema de compra de políticos da Odebrecht na Argentina.

Outra membra do PC, além de Alonso, é o quadro da oposição ao kirchnerismo, Maria Eugenia Estenssoro, militante da Coalición Cívica, que compõe a frente que lançou Macri. O último artigo de Estenssoro para o jornal golpista La Nación aponta a reforma judicial de Fernandez como o golpe de misericórdia na democracia argentina. Sua relação com a imprensa golpista vinha de antes, quando ainda era senadora, como vemos em uma das suas reuniões com a Embaixada em que ela pediu ajuda para “vetar as propostas da lei de meios de Kirchner”, campanha que a Embaixada já mobilizava com a Turner, Fox, Discovery, MTV, Disney e HBO, cujos “interesses seriam afetadas pela nova legislação”.

Além da conexão com o PC, a Embaixada articula uma rede de ONGs argentinas, as quais buscam a ajuda estadunidense para, por exemplo, organizar “feiras da sociedade civil argentina em Washington para aumentar a exposição a novas fontes de financiamento, assistência e informação”. Dentre as ONGs, não estão apenas entidades empresariais como o Poder Ciudadano, mas também entidades que são fruto das lutas da classe trabalhadora, como as Madres de Plaza de Mayo, símbolo da luta contra a ditadura. Essa presença exemplifica, como discutimos na parte 3 a partir da análise de Virgínia Fontes, o papel das ONGs no apassivamento das lutas de classes. Vale destacar que Alonso, do PC, recebeu o prêmio de liderança global da Vital Voices, um APHE do partido Democrata norte-americano cujo lema é “invista em mulheres” para “colocar a transparência no rol dos direitos humanos”. Comentando com a Embaixada a cerimônia, ela se disse impressionada com o comprometimento das corporações estadunidenses com a filantropia.

A parceria de Alonso com a Embaixada era de tanta confiança que ela contava que, ao mesmo tempo em que o PC “buscava evidências do financiamento ilícito da campanha eleitoral da Frente Para a Vitória”, de Cristina Kirchner, estava “dando assessoria” ao Recrear, partido da direita que logo depois se fundiu ao PRO. Alonso ainda comenta que estava agindo com Macri, então prefeito de Buenos Aires, para realizar um “leilão transparente e internacional” para o serviço de coleta de lixo, “contra a pressão da Confederación General de Trabajadores”, que queria manter o serviço com o sindicato dos motoristas de caminhão.

Essa passagem é ilustrativa de como a transparência do capital-imperialismo, compreendida como leilões onde multinacionais e pequenos sindicatos concorrem como iguais no livre mercado, serve à expansão do capital-imperialismo. Sem barreiras protecionistas, com leilões “transparentes e internacionais”, os monopólios multinacionais não precisam subornar para vencer competição tão desigual. Tal lógica é corrupta em sua essência, visto que interesses privados decidem sobre temas públicos, como a coleta do lixo. Como vimos ao longo da série, a malha de aparatos estatais e privados de hegemonia que promovem a agenda da guerra global à corrupção atuou intensamente para transformar o significado da corrupção no senso comum, mantendo camuflado, sob o manto do fetichismo, como a própria natureza do capitalismo é corrupta, onde empresas privadas decidem quais serão e o que é feito do trabalho coletivo da classe trabalhadora.

Avançar nas reformas judiciais

a única saída para o problema da corrupção é a complexa mas necessária construção de mecanismos democráticos para o controle operário e popular do poder. Para isso, nossa agenda pauta não apenas a expropriação dos donos dos meios de produção, sem a qual tais mecanismos democráticos não podem se efetivar, mas também a expropriação dos donos dos meios judiciais, uma casta burocrática de homens brancos entranhados desde o berço ao empresariado e, como buscamos demonstrar nessa série, associados pelos mais diversos laços ao capital-imperialismo.

Para disputar, a partir de uma perspectiva socialista, o senso comum sobre o que é corrupção, tentamos, nesta série, aprofundar nossa compreensão sobre a agenda da guerra global à corrupção promovida pelos aparatos estatais e privados de hegemonia empresariais, e refletir sobre como podemos enfrentar essa ofensiva bonapartista de toga. Para o campo socialista, é nítido que a única saída para o problema da corrupção é a complexa mas necessária construção de mecanismos democráticos para o controle operário e popular do poder. Para isso, nossa agenda pauta não apenas a expropriação dos donos dos meios de produção, sem a qual tais mecanismos democráticos não podem se efetivar, mas também a expropriação dos donos dos meios judiciais, uma casta burocrática de homens brancos entranhados desde o berço ao empresariado e, como buscamos demonstrar nessa série, associados pelos mais diversos laços ao capital-imperialismo. Como discutimos na parte 1, foi o caminho trilhado pelo ex-presidente boliviano Evo Morales e o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. É também o que o recém-eleito presidente peruano Pedro Castillo está defendendo em sua proposta de reforma constitucional, causando a reação da casta judiciária, e o que o movimento feminista argentino está pautando no debate sobre a reforma judicial, indo mais além e destacando as relações entre as estruturas classista e patriarcal do poder judiciário e a consequente necessidade da inclusão da perspectiva de gênero nas formações e nos concursos do sistema judiciário.

Esse horizonte não impede – pelo contrário, exige – que nossos programas de transição fortaleçam a luta contra o bonapartismo de toga promovido pela agenda anticorrupção, mesmo que seja necessário formar frentes temporárias com setores da social-democracia entranhados com o capital, para impedir que os poucos espaços que a classe trabalhadora conquistou na política representativa sejam deslocados para os juízes e “técnicos”. É na luta pelo protagonismo popular nas decisões sobre temas públicos que podemos forjar consensos sobre como a democracia não pode conviver com a propriedade privada sobre os meios de produção ou sobre os meios judiciais. Podemos formar frentes de esquerda quando há unidade na defesa da democratização dos processos judiciais contra a burguesia unida em torno do bonapartismo de toga, como é o caso das reformas judiciais argentina ou peruana que estão em processo, sem deixar de denunciar as direções social-democratas que insistirem em defender não mexer nos monopólios sobre setores da economia e da justiça. É nessa luta pela democratização que podemos expor como a lógica da propriedade privada capitalista é a essência da corrupção do interesse coletivo pelo privado, essa sim a maior causa da desigualdade e da pobreza, uma forma de corrupção legalizada e tão naturalizada pela ideologia do capital.

Marcado como:
série lava jato