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Colunas

O fantástico mundo da transparência e outros contos de fada dos Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais anticorrupção

Parte 3 da série A Lava Jato e o capital-imperialismo

Moro palestrando no 1º Congresso do Pacto Pelo Brasil (2017), organizado por uma rede de ONGs para o “combate à corrupção”

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Confira as partes 1 e 2 desta série:

A bandeira do combate à corrupção foi levantada pelo capital-imperialismo para se contrapor às lutas populares que denunciavam a corrupção empresarial +  

 

Para disputar a hegemonia sobre o significado da corrupção no senso comum, se proliferaram centenas de organizações empresariais nacionais e internacionais de “combate à corrupção” focadas apenas na “corrupção pública” +  

 

Uma vasta filmografia sobre corrupção foi produzida para impulsionar a ideologia lavajatista e construir o consenso de que a “racionalidade técnica” do mercado é a saída para o problema da moral corrupta dos latino-americanos +  

 

“As forças econômicas e políticas do capitalismo não estão armadas apenas com advogados, armas de fogo e dinheiro, elas também têm ideias. Dentre as várias noções que funcionam como suturas no edifício conceitual das sociedades burguesas, a corrupção política é uma das mais importantes”

Peter Bratsis, A corrupção política na era do capitalismo transnacional

Hegemonia e apassivamento das lutas populares

a escolha do tema da corrupção como uma prioridade por esses Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais (APHEs) não foi aleatória. Foi uma resposta às crescentes lutas populares que denunciavam a corrupção empresarial.

Nos textos anteriores destacamos como a guerra global à corrupção (Global War on Corruption – GWC) surgiu no bojo da reorientação da política externa norte-americana pós-União Soviética, de forma a, junto com a guerra às drogas e ao terrorismo, se constituir como um dos discursos justificadores das intervenções capital-imperialistas. Mas a escolha do tema da corrupção como uma prioridade por esses Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais (APHEs) não foi aleatória. Foi uma resposta às crescentes lutas populares que denunciavam a corrupção empresarial. Um dos maiores alvos das lutas eram os investimentos offshore (os paraísos fiscais), que são, como analisou João Pereira, “uma dimensão do capitalismo cuidadosamente ocultada que serve para encobrir toda sorte de corrupção, esculpida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM)”. Sufocados pela contradição, os intelectuais da Transparência Internacional (TI), fundada em 1993 por ex-diretores do BM, do Exército dos EUA e industriais, tentam identificar os paraísos fiscais como um câncer, escondendo sua funcionalidade estrutural para o capitalismo. O ex-presidente da TI José Ugaz, por exemplo, fala dos paraísos fiscais como o “lado escuro” das finanças, embora a própria presidente da TI na Argentina, Laura Alonso, admitiu que os paraísos fiscais estão dentro da legalidade, quando defendia os investimentos offshore do ex-presidente argentino Mauricio Macri (2015-2019).

Para disputar o senso comum sobre o significado da corrupção, milhares de entidades empresariais passaram a investir em programas de combate à corrupção. Leo Panitch e Sam Gindin observaram, por exemplo, como o BM começou a rearticular seus programas alçando a corrupção como sua principal preocupação, “seguindo a pauta da política externa dos EUA pós-guerra fria”. Essa rearticulação foi também, em parte, uma resposta aos protestos anti-FMI. É emblemático dessa falsa preocupação do capital com o combate à corrupção que, como a pesquisa de João Pereira demonstrou, enquanto o Banco Mundial discursava pela transparência, tentava ao mesmo tempo abafar os escândalos envolvendo a anuência do banco com o desvio dos empréstimos que fazia ao governo de Boris Yeltsin na Rússia e ao governo do ditador Suharto na Indonésia, ambos alinhados à política anticomunista dos EUA. Além de responder por práticas corruptas no exterior, o BM enfrentava dentro de casa acusações de falta de transparência feitas pelo Congresso estadunidense.

Em seu esforço de construir consensos hegemônicos e apassivar as lutas anticapitalistas, o capital-imperialismo atua para enquadrar as lutas populares nos marcos da “cidadania”. O exemplo citado da Indonésia é interessante para analisar esse esforço, ao passo que, como analisaram es antropólogues Comaroff, a queda de Suharto foi seguida por intensas mobilizações e pelo avanço da organização indígena. Para se contrapor a essas lutas e redirecioná-las, as pautas “universais” da democracia, transparência e sociedade civil, mobilizadas por uma rede de ONGs ocidentais, tiveram um surto de expansão.

O exemplo indonésio é um caso no qual uma pauta mais externa que interna tentou ganhar a atenção de pessoas que tinham outro tipo de preocupações. Já no caso dos programas do BM pensados como contraponto aos protestos contra paraísos fiscais, o capital-imperialismo tentava transformar o significado de uma preocupação já existente. Esse também parece o caso do processo analisado por André Guiot em sua pesquisa sobre o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Através do CDES, o empresariado brasileiro absorveu várias demandas das classes subalternas que exigiam transparência do Estado e do empresariado e transformou seu caráter antisistêmico. Dirigindo o encaminhamento das pautas, “introduziu uma cunha legitimadora social-liberal de alta eficácia”. A partir dessas observações, buscamos apontar como toda construção de consensos envolve uma combinação dialética entre temas “externos” e “internos”.

O capital-imperialismo forjou uma nova compreensão sobre a corrupção, na qual “a onipresença dos interesses privados no âmbito público não pode ser vista como corrupção”. Portanto, “apenas algumas formas desses interesses são consideradas corrupção e, consequentemente, a maior parte é normalizada”.

Como vimos discutindo a pesquisa de Bratsis, o capital-imperialismo forjou uma nova compreensão sobre a corrupção, na qual “a onipresença dos interesses privados no âmbito público não pode ser vista como corrupção”. Portanto, “apenas algumas formas desses interesses são consideradas corrupção e, consequentemente, a maior parte é normalizada”. A legislação eleitoral norte-americana é emblemática dessa corrupção legalizada. Os interesses privados dos grandes doadores das campanhas eleitorais bilionárias são responsáveis por mais de 70% de todas as candidaturas presidenciais. Os interesses empresariais também são favorecidos pela estrutura institucional que regula o lobby pós-eleitoral: como levantou a pesquisa de Walfrido Warde, hoje há mais de 12 mil lobistas atuando para comprar políticos eleitos em Washington.

Porém, mais do que corromper legalmente os políticos estadunidenses, o Estado norte-americano também corrompe legalmente juízes, procuradores e policiais latino-americanos, financiando seus congressos e depositando dólares diretamente em suas contas pessoais para despesas com hotéis e restaurantes (o que não é pouca coisa, se considerarmos que essa nata de funcionários exige o padrão “lagostas e vinhos com pelo menos 4 premiações internacionais”).

Como observaram Hoeveler e Melo, essa centralidade que a agenda do combate à corrupção assumiu na América Latina é representativa do triunfo do esforço capital-imperialista para esconder as contradições do modelo neoliberal atrás dos seus sintomas, como a corrupção. Parafraseando Marx, os autores comentam como “acreditar que a corrupção é a causa de todos os males é como acreditar que a febre é a causa das doenças”. Dessa forma, são excluídas do debate político as questões da grande política, quer dizer, as disputas entre classes pela direção da sociedade, que fica reduzido à pequena política, ou seja, as disputas entre frações da classe dominante que não questionam o sistema político vigente. Felipe Demier, na mesma linha, vem argumentando como o foco da mídia nos escândalos de corrupção da pequena política também funciona como um elemento diversionista para tirar do debate assuntos da luta de classes.

No entanto, mais do que esconder a atuação predatória do capital sob o manto da corrupção como a causa de todos os males, o discurso do combate à corrupção serve ainda para apresentar o empresariado como os paladinos da ética. É cômico ver como todos os palestrantes dos eventos sobre integridade, ética e compliance sempre vestem camisetas com frases como “eu sou íntegro”, e sempre começam suas falas contando uma história sobre o dia que acordaram e decidiram levar a ética pelo mundo. Observação parecida foi feita pela pesquisa de Lísia Cariello sobre o ativismo empresarial de Jorge Lemann, que sempre reivindica sua formação protestante para afirmar a ética e a transparência como o pilar das suas iniciativas.

De forma semelhante à função da filantropia no capitalismo analisada por Virgínia Fontes, o discurso da promoção da integridade, ética e transparência é uma forma do empresariado justificar e legitimar o excesso de riqueza e a direção moral da burguesia

Podemos dizer que, de forma semelhante à função da filantropia no capitalismo analisada por Virgínia Fontes, o discurso da promoção da integridade, ética e transparência é uma forma do empresariado justificar e legitimar o excesso de riqueza e a direção moral da burguesia. Uma passagem da conversa revelada pela Vaza Jato entre o diretor da TI no Brasil, Bruno Brandão, e o coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, dá uma ideia da forma como o capital-imperialismo apresenta sua aparência. Brandão estava aconselhando Dallagnol na escrita de um projeto para levantar fundos. Depois do procurador decidir cortar o “atendimento de minorias” para “não perder o foco na causa da anticorrupção”, Brandão o repreendeu dizendo que “hoje em dia não existe uma fundação séria e agências de fomento (cooperação internacional) que não inclua essas questões de gênero e outras de diversidade como aspectos transversais ao projeto (…) todo application (…) [precisa] estar sintonizado nas temáticas da sociedade civil (o que inclusive ajudaria a blindar críticas de certos grupos)”.

APHs da GWC

Foi seguindo os rastros dos agentes brasileiros treinados pela Embaixada, que ficaram registrados nos arquivos da WikiLeaks, que começamos a ligar os pontos que entrelaçam a teia de aparatos governamentais com a malha de aparelhos privados de combate à corrupção. O primeiro elo dessa conexão que encontramos é o advogado Vinícius Santana. Em 2006, ele participou do curso de Técnicas de Investigações Financeiras (FIT) da Escola de juízes, procuradores e policiais do Departamento de Estado dos EUA (ILEA), o mesmo curso que, como vimos no texto anterior, também contou com a presença de Gilson Libório, ex-chefe do GT-Corrupção do MP. Naquele ano, Santana foi descrito pela Embaixada como analista da Unidade de Inteligência Financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (UIF-COAF). Em seu Linkedin, ele diz que o foco da sua carreira é na Prevenção e combate à Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (PLD/FT, tradução da sigla AML/CFT que vimos no texto anterior). Em sua autodescrição, diz que é “capacitado por diversos órgãos nacionais e internacionais, com destaque para o FBI, FMI, GAFI, GAFILAT, Banco Mundial, DEA, Departamento de Justiça/EUA, ESAF, ABIN, Exército e Banco do Brasil”. Ele também destaca suas palestras na Associação de Especialistas Certificados no Combate à Lavagem de Dinheiro (Association of Certified Anti-Money Laundering Specialists – ACAMS), um APHE que reúne indústrias de mais de 175 países e que existe pelo menos desde 1989, quando sua revista foi fundada.

Da função de analista do COAF, Santana foi, em 2015, para o cargo de avaliador da Força Tarefa de Ação Financeira do Grupo de Ação Financeira Internacional (Financial Action Task Force do Groupe d’action financière – FATF-GAFI), um dos maiores APHEs de combate à corrupção no mundo. Em 2017, durante o governo Temer, Santana assumiu o cargo de Gerente de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro do Banco do Brasil, e agora em 2020, durante o período de transição para o mandato do novo presidente do Banco, André Brandão, foi indicado a Bolsonaro por Paulo Guedes, tornando-se Gerente Executivo do Banco.

O GAFI foi fundado em 1989 pelo G7 para combater a lavagem de dinheiro. Depois do 11 de setembro, essa agenda foi articulada ao combate ao terrorismo. Ela se espalhou pelo mundo através de regionais, como a Força Tarefa de Ação Financeira do Caribe (CFAFT). De acordo com o site da CFAFT, ela foi fundada no ano seguinte à criação do GAFI, em acordo com as 40 recomendações da FAFT para combater a lavagem de dinheiro e “seguindo o modelo regulatório da OEA e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Narcóticos e substâncias psicotrópicas de 1988” – o que demonstra mais uma vez a articulação da guerra global à corrupção à guerra global às drogas.

Santana atua na regional para a América Latina, o Grupo de Ação Financeira da América Latina (GAFILAT), criado com o nome de GAFISUD em 2000. Como todos APHEs da rede FAFT-GAFI, tem como objetivo “combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e o financiamento da proliferação de armas de destruição em massa”. A supervisão da regional pelos países capital-imperialistas é explicitada pelos documentos da organização, nos quais Estados Unidos, França, Portugal, Alemanha, Canadá e Espanha são descritos como “nações parceiras que apoiam e cooperam”, e o BM, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o FMI, como organizações observadoras. Atualmente, o coordenador do Brasil no GAFILAT é Ricardo Liao, que desde 2013 era o Secretário-Executivo do COAF. Em 2019, quando Bolsonaro extinguiu o COAF para barrar as investigações sobre a “rachadinha” de Flávio Bolsonaro, Liao foi colocado pelo presidente no comando da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), que substituiu o COAF.

Além de formar quadros para as agências do Estado brasileiro, o GAFILAT fornece o ferramental tecnológico necessário à articulação das agências de aplicação da lei. Na página do MP (tirada do ar) sobre as redes de cooperação da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público Federal (SCI-MPF), é informado que em 2010 o MPF passou a utilizar uma plataforma eletrônica para o intercâmbio de informações gerada pelo GAFILAT para criar e desenvolver uma rede de contatos na região denominada Rede de Recuperação de Ativos do GAFILAT (RRAG).

Outro APHE que alçou a GWC como uma das suas top priorities foi a Atlas Network, fundada em 1981 e financiada por agências estatais estadunidenses, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a Fundação Nacional para a Democracia (NED), além de entidades empresariais como as fundações Koch, Exxon e Mastercard. No Brasil, a Atlas apoiou financeiramente e com treinamentos cerca de 30 institutos “defensores do livre mercado”, como o Estudantes pela Liberdade (EPL), o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Instituto Mises. Com isso, a Atlas ficou marcada como uma das peças internacionais do golpe de 2016, já que estas organizações irmãs organizaram manifestações golpistas contra Dilma Rousseff, utilizando como pauta mobilizadora central o combate à corrupção.

Para Hélio Beltrão, dirigente do Instituto Mises, a Rede Atlas “é como um time de futebol: a defesa é a academia, o meio de campo é o pessoal da cultura e os políticos são os atacantes”. A metáfora de Beltrão, simbolicamente, lembra a análise de René Dreifuss em seu livro A Internacional Capitalista sobre o funcionamento dos APHEs. Para o autor, eles se estruturam em três níveis de organização: 1) os laboratórios de ideias, como agências de planejamento e consultoria, são o núcleo de vanguarda político-intelectual, o que Beltrão definiu como a defesa; 2) as unidades de ação, grupos táticos visando alvos específicos e fins limitados, são o braço operacional, definido por Beltrão como o ataque; e 3) as elites orgânicas, o setor do empresariado que dirige as operações, são o Estado-maior, o verdadeiro meio de campo que Beltrão omite.

No Brasil, essa malha de laboratórios de ideias, unidades de ação e Estado-maior da GWC foi tecida através de diversas pequenas entidades empresariais, as quais foram progressivamente costurando laços com os grandes APHEs transnacionais.

No Brasil, essa malha de laboratórios de ideias, unidades de ação e Estado-maior da GWC foi tecida através de diversas pequenas entidades empresariais, as quais foram progressivamente costurando laços com os grandes APHEs transnacionais. Novamente, seguindo a pista dos agentes treinados pela Embaixada, nos enredamos na teia que liga os aparelhos governamentais e privados da GWC. Em 22 de setembro de 2020, Vinícius Santana, o especialista em combate à corrupção formado pela ILEA, ex-COAF, avaliador do FAFT-GAFI e gerente de combate à corrupção do Banco do Brasil, participou do V Congresso INTEGRA, III Congresso Compliance Across Americas e 4º Congresso Pacto pleo Brasil, na AMCHAM-SP. O evento foi organizado pelo Instituto ARC, da Associação Brasileira de Auditoria, Riscos e Compliance (ABRARC), pela Escola Superior de Ética Corporativa, Negócios e Inovação (ESENI) associada à ABRARC e pelo Observatório Social do Brasil (OSB).

Em 2016 e 2017, o Instituto ARC e a ESENI realizaram em Santa Catarina os dois primeiros congressos INTEGRA, e em 2018 e 2019, as duas entidades costuraram uma parceria com a Viadrina Compliance Center e com a European University Frankfurt, que realizam o evento Compliance Across the Globe. Essa parceria internacional realizou em São Paulo a terceira e a quarta edição do INTEGRA em conjunto com a primeira e segunda do Compliance Across Americas.

Em 2020, esses dois eventos se fundem com o Pacto Pelo Brasil, organizado pelo OSB desde 2017. O OSB é uma entidade de Curitiba que se define como uma “instituição não governamental, sem fins lucrativos, disseminadora de uma metodologia padronizada para a criação e atuação de uma rede de organizações democráticas e apartidárias do terceiro setor”. Segundo a entidade, ela é formada por voluntários engajados na causa da justiça social que querem contribuir para a melhoria da gestão pública. Como levantou a pesquisa de Lécia Queiroz, a maioria dos seus integrantes são advogados (14%), administradores (12%) e empresários (8%), predominantemente dos Estados do Sul, São Paulo e Minas Gerais, que chegaram à ONG através de entidades de classe locais, como Câmaras de Dirigentes Lojistas, Associações Comerciais, Federações das Indústrias, lojas maçônicas, clubes como o Rotary e o Lions e Conselhos Regionais de Contabilidade e Administração.

Ainda segundo o OSB, o Pacto Pelo Brasil é um desdobramento dos Encontros Nacionais dos Observatórios Sociais do Brasil (ENOS), realizados desde 2012, e nasceu do movimento Brasil Área Livre de Corrupção, lançado pelo OSB em 2015, durante o 6º ENOS, ocorrido em Brasília. O 1º Pacto Pelo Brasil, em 2017, teve a participação do “Dr. Sérgio Moro e Dr. Deltan Dallagnol” e reuniu mais de 900 participantes presencialmente e cerca de 13 mil acessos via streaming. O tema do encontro foi Calamidades x Eficiência da Gestão Pública, mais um exemplo de como o discurso empresarial sobre a corrupção sempre omite a corrupção empresarial, focando apenas na corrupção do Estado. E que sempre apresenta como saída a substituição dos calamitosos políticos pelos eficientes gestores técnicos.

O 2ª Pacto pelo Brasil, em 2018, discutiu “integridade, tecnologia e governança”. A temática deixa nítida outra característica do discurso empresarial anticorrupção, qual seja, apresentar a corrupção como um problema moral, jamais estrutural, desdobrando disso o argumento de que técnicos ditos íntegros devem dirigir o Estado. Ainda sob a coordenação de um APHE nacional, o evento já contou com várias presenças internacionais. Palestraram Kevin Berry, engenheiro fellow do Code For America, e Neha Das, gerente de governança e anticorrupção do escritório de Nova York do Pacto Global da ONU, que costuraram as parcerias para o aprofundamento da relação.

O 3º Pacto pelo Brasil, em 2019, insistiu no discurso da integridade, tendo como temática “práticas honestas na relação público-privada”. A organização foi realizada em parceria com o Centro Internacional de Formação de Autoridades e Líderes (CIFAL – uma parceria forjada em 2009 entre o Instituto das Nações Unidas de Treinamento e Pesquisa – UNITAR, o Serviço Social da Indústria do Paraná – SESI/PR e a Federação das Indústrias do Estado do Paraná – FIEP/PR), e o congresso aconteceu no centro de eventos da FIEP. Analisando a lista de patrocinadores, vemos como o Pacto ainda era uma organização essencialmente do empresariado brasileiro. Mais especificamente, de setores médios da burguesia paranaense e catarinense (com forte presença maçom), tendo a presença de apenas uma mega empresa (a J&F), uma empresa estrangeira (a seguradora argentina Sancor), um APHE estrangeiro (a alemã Alliance for Integrity) e diversos movimentos regionais anticorrupção, como o Movimento República de Curitiba (bolsonarista), o Cidadão Alerta (que ficou com Moro após o racha com Bolsonaro) e o #MUDE Chega de Corrupção.

É representativo dessa relação entre a Lava Jato e a indústria do compliance que Deltan Dallagnol era, como revelou a pesquisa da Agência Pública no arquivo da Vaza Jato, o organizador da captação de recursos com o empresariado para o Instituto MUDE. Ele chegou a aliviar uma investigação sobre uma das doadoras, Patrícia Coelho, dona da Asgaard Navegação. Como destacou Natália Viana no Podcast da Agência Pública, o acordo entre o DoJ e o MP para que a multa paga pela Petrobras ao DoJ fosse repassada para o MP, com o fim de criar uma fundação de compliance, também é emblemático dessa relação entre a GWC e o mercado de ONGs. E como outra reportagem da Agência Pública revelou, a ideia de criar uma fundação para isso foi pensada por Dallagnol em conjunto com o diretor da TI no Brasil. Imitando o modelo das revolving doors (portas giratórias entre o setor público e privado) estadunidense, onde todo ex-procurador funda uma consultoria de compliance, os procuradores brasileiros começam a construir a indústria do compliance aqui, como analisou a TV GGN no documentário Lava Jato Lado B: a influência dos EUA e a indústria do compliance. A GWC cria uma indústria própria.

Outra entidade presente no V INTEGRA, III Compliance Across Americas e 4º Pacto pelo Brasil foi o Instituto Ethos, fundado em 1998 por empresários preocupados em “oferecer ferramentas para as empresas aprofundarem sua responsabilidade social”. Como vimos na parte 1, o Ethos é outro APHE central da GWC no Brasil, tendo sido um dos formuladores da lei anticorrupção aprovada por Dilma em 2013, bem como do documento “Novas Medidas Contra a Corrupção”, lançado em conjunto com a TI e Dallagnol durante a campanha presidencial de 2018.

André Martins contextualiza a atuação do Instituto Ethos no projeto neoliberal de remodelar os aparelhos do Estado de acordo com os princípios empresariais de transparência, integridade, responsabilidade social, etc.

André Martins contextualiza a atuação do Instituto Ethos no projeto neoliberal de remodelar os aparelhos do Estado de acordo com os princípios empresariais de transparência, integridade, responsabilidade social, etc. No projeto desse novo “Estado Gerencial”, os serviços sociais desempenhados pelo Estado são transferidos para o mercado através de parcerias público-privadas. Flávio Casimiro, que continuou a pesquisa de Martins sobre os APHEs no Brasil, cunhou esse processo como “empresariamento das funções sociais do Estado”. A pesquisa de Casimiro demonstrou como o Ethos articulou uma gama de quadros da burguesia formados por dezenas de outros APHEs, como o Grupo de Líderes Empresariais (LIDE) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE). Com essa articulação, o Ethos costurou uma gigantesca capilaridade em entidades da sociedade civil e da sociedade política, ocupando cadeiras em Conselhos de prefeituras, do Senado, da ONU, de fundos empresariais, etc.

Seguindo outra pista, dada pelo próprio Dallagnol em uma das mensagens da Vaza Jato, em um chat que planejava a criação da fundação para gerir a multa da Petrobras, as principais entidades de combate à corrupção da sociedade civil, ou as que deveriam ser convidadas para a fundação, seriam: “de cabeça, penso em TI e Observatório Social (OSB). Tem tb a Contas Abertas, a Amarribo, o Instituto Ethos… tem que ver quais mais. Vou perguntar”. Na pesquisa, já havíamos chegado na TI, no OSB e no Ethos, cabendo agradecer ao procurador pela pista sobre a Amarribo e a Contas Abertas.

Segundo a página da Amarribo, a entidade “nasceu em 1999 de uma reunião de amigos de Ribeirão Bonito”, município de São Paulo, “que decidiram se dedicar ao combate à corrupção na cidade”. A ONG se orgulha de ter cassado 2 prefeitos e 5 vereadores. Como observou Luis Nassif, a Amarribo é um microcosmos do lavajatismo nacional. Mas ao contrário do que escreveu o jornalista, a entidade não encerrou suas atividades, e hoje coordena uma rede de 230 ONGs de combate à corrupção, segundo a resposta da Amarribo ao artigo de Nassif. A Amarribo tem como apoiadores institucionais a TI, o Ethos, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e outros. Entre os parceiros mantenedores, a única empresa listada é a ALCOA, uma mineradora estadunidense, enquanto que os colaboradores são pequenos hotéis, restaurantes, serrarias, faculdades, etc. Isso aponta novamente para a fusão de capitais de diferentes escalas, funções e territórios na malha da GWC.

Já a Contas Abertas foi fundada em 2005 para “assegurar o uso ético e transparente dos recursos públicos” e “garantir a eficiência” do Estado. Segundo um relatório da Embaixada norte-americana sobre a conferência do dia internacional da anticorrupção em 2008, organizada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o então diretor da Contas Abertas, Gil Castello Branco, disse que o objetivo da ONG era reverter o fato da sociedade civil brasileira não estar mobilizada contra a corrupção. Como veremos na parte 5, essa era a mesma preocupação da TI na Argentina em “transformar a corrupção em um problema central para o senso comum argentino”. Em outros telegramas da Embaixada, a Contas Abertas aparece criticando o orçamento do governo Lula e questionando os US$ 18 milhões repassados ao MST de 2003 a 2008, deixando nítido o alinhamento da ONG com o antipetismo lavajatista.

No telegrama sobre o evento da UNODC, intitulado “Pouca esperança oferecida no dia internacional da anticorrupção”, a Embaixada analisa que o “cenário geral [do combate à corrupção no Brasil] permanece desolador”, e que “qualquer crédito do governo Lula por conta do portal da transparência” e etc. “é minado pelos escândalos que mancharam a imagem do PT”. Vale lembrar que nos telegramas de 2005 sobre o Mensalão, a Embaixada já explorava as possíveis conjunturas que possibilitariam o impeachment de Lula por denúncias de corrupção. Voltando ao relatório sobre o evento da UNODC, a Embaixada comenta que “a tarefa de mobilizar a sociedade para exigir ações do governo (…) parece ser o componente essencial, mas por enquanto ausente, de um esforço efetivo”.

Identificamos que a malha de aparatos empresariais de combate à corrupção é gigantesca, e observamos como ela entrelaça entidades nacionais, como a ABRARC, o OSB e o Ethos, com organizações estrangeiras, como o GAFI, a Transparência Internacional e o Compliance Center.

Nessa investigação ainda muito inicial, já identificamos que a malha de aparatos empresariais de combate à corrupção é gigantesca, e observamos como ela entrelaça entidades nacionais, como a ABRARC, o OSB e o Ethos, com organizações estrangeiras, como o GAFI, a Transparência Internacional e o Compliance Center. Essas, por sua vez, estão estreitamente vinculadas às agências anticorrupção do Estado norte-americano, tanto que foi a partir dos vestígios dos treinamentos da ILEA que chegamos nas organizações privadas. E todas estas são fábricas de formação de quadros para as agências estatais brasileiras, como o COAF, a UIF e o Banco do Brasil, casos que analisamos neste tópico. Em consonância com o discurso ideológico do gestor técnico e eficiente promovido por estas agências da GWC, a prática destas entidades empresariais foi de tomar ainda mais funções do Estado com seu exército de técnicos em anticorrupção. No entanto, para compreendermos a escala e o significado da GWC, muito mais pesquisas empíricas precisam ser realizadas. Parafraseando Dallagnol, “tem que ver quais mais”.

A construção do consenso na filmografia lavajatista

Essa máquina de propaganda da GWC, movida pela extensa malha de APHEs que apresentamos, foi essencial para transformar os heróis do empresariado, “Dr. Moro” e “Dr. Dallagnol”, em heróis nacionais. A Globo e demais meios de comunicação da mídia burguesa também tiveram papel preponderante neste processo. Mas destacamos aqui, por fim, como uma espécie de síntese, a influência da narrativa construída pela filmografia apologética da Lava Jato, da qual os filmes de José Padilha são a expressão mais emblemática da construção do consenso hegemônico lavajatista.

Em primeiro lugar, ela é emblemática de como o discurso de guerra às drogas se combina com o discurso de guerra à corrupção. “O mecanismo”, uma propaganda apologética da Lava Jato onde Moro é o homem mais íntegro da nação e Lula é um animal selvagem, segue a mesma narrativa “heróis contra bandidos” que sempre caracterizou seus filmes, como Tropa de Elite, onde o Capitão Nascimento é apresentado como um modelo, ao contrário do personagem do livro de Luiz Eduardo Soares, contra os traficantes bandidos. O Mecanismo é tão canalha que inverte a história e coloca na boca de Lula, na interpretação humilhante de Ary Fontoura, a famigerada frase “para estancar a sangria”, dita na verdade por Romero Jucá quando articulava o golpe para derrubar Dilma.

Em “Narcos”, também são os mocinhos da Administração de Fiscalização de Drogas dos EUA (Drug Enforcement Administration – DEA) contra os maléficos traficantes colombianos. Padilha idealiza como a DEA, sem interesses políticos nem econômicos, ajuda os policiais e militares colombianos a combater os vilões do cartel de Medellín. Em episódio emblemático, os traficantes planejam matar um bebê por prazer, que é salvo pela invasão da DEA e adotado pelo herói e sua esposa, um casal que é o estereótipo loiro de olho azul da família perfeita americana. Segundo o diretor, a ideia do seriado era narrar a história do tráfico de drogas, que “começa no Chile, passa por Pablo Escobar e vai a Cali (Colômbia). Se a gente fizer mais temporadas, vai até o México”. Ela não chega, no entanto, aos Estados Unidos, o maior consumidor de drogas do mundo, lembrando que em Tropa de Elite, os consumidores são os grandes culpados pela guerra às drogas. Narcos jamais reflete sobre como as narco-burguesias latino-americanas compartilham seus negócios com os financiadores norte-americanos do narcotráfico, dando lucros milionários aos intermediários estadunidenses.

Dessa forma, Narcos propagandeia o discurso da guerra às drogas usado pelo capital-imperialismo para justificar a penetração nas estruturas militares e policiais latino-americanas. Reproduzindo ainda mais o discurso norte-americano, os mocinhos da DEA são, ao longo da série, constantemente atrapalhados por políticos “populistas”, o termo preferido pela diplomacia estadunidense para desmoralizar os políticos vistos como hostis. No seriado, os populistas falsamente evocam a ideia de soberania para restringir as ações norte-americanas e beneficiar o tráfico.

A superficialidade dos seus roteiros não consegue nem chegar perto das raízes dos problemas. “Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro”, narra os desvios morais de policiais ou políticos, mas jamais as relações dos lucros do tráfico ou da atuação miliciana com o emrpesariado. Nenhuma relação do tráfico ou da corrupção com o capitalismo é sequer cogitada. O tráfico, em Tropa de Elite ou em Narcos, ou a corrupção, em “O mecanismo”, são, como no discurso sobre integridade dos APHEs, resultado da ação imoral de indivíduos maus. Como denunciar a falsidade desses discursos e disputar o significado hegemônico de corrupção será um dos temas da reflexão do próximo texto desta série, que também investigará como esse discurso anticorrupção fincou as bases para a ascensão do protofascismo.

Marcado como:
série lava jato