O Afeganistão, com a ascensão do novo governo do Talibã, virou explicitamente o centro da disputa geopolítica mundial.
Para fazer uma análise mais próxima possível da realidade e chegar à compreensão do verdadeiro significado desse acontecimento de grande impacto mundial, precisamos partir não da situação interna do Afeganistão ou apenas de uma caracterização política e social do Talibã, mas da mudança de paradigma na estratégia geopolítica do imperialismo estadunidense para a Eurásia, no marco de uma nova disputa global que envolve agora outros dois grandes atores: Rússia e China. Não podemos deixar de mencionar, tampouco, a importância do Irã nesta disputa, particularmente na questão iraquiana, mas isso seria tema para outro artigo.
Desde o ataque às Torres Gêmeas, em 2001, a estratégia geopolítica dos Estados Unidos foi resumida no slogan da chamada “Guerra ao Terror”. Essa estratégia, mais do que combater grupos como Al Qaeda, Estado Islâmico ou o próprio Talibã, teve como objetivo ocupar militarmente dois países-chave para as disputas geopolíticas na Eurásia: Iraque e Afeganistão. O primeiro, por sua importância estratégica no que diz respeito ao controle da produção e distribuição de petróleo. O segundo, por sua localização geopolítica, ao representar um importante corredor de passagem para a construção de oleodutos e gasodutos, bem como para a produção e o comércio internacional de opioides, cujo principal produto é a heroína – em 2018 o país concentrou 82% da produção mundial de ópio, segundo a estimativa do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). (1)
O que o imperialismo estadunidense buscava alcançar com as ocupações do Iraque e Afeganistão não era apenas consolidar a sua hegemonia geopolítica, militar e econômica na Eurásia, mas conquistar a mais completa supremacia em todos esses terrenos. Desde 2001, na busca de sua completa supremacia, os Estados Unidos moveram mundos e fundos, gastando US $ 2,26 trilhões no Afeganistão, segundo cálculos do Projeto de Custos da Guerra da Universidade Brown. A maior parte – quase US $ 1 trilhão – foi consumida pelo orçamento de Operações de Contingência no Exterior para o Departamento de Defesa. O segundo maior item de linha – US $ 530 bilhões – são os pagamentos de juros estimados sobre o dinheiro que o governo dos Estados Unidos tomou emprestado para financiar a guerra. (2)
Podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que essa estratégia fracassou rotundamente. Os Estados Unidos não só não conquistaram a supremacia na região, mas viram a sua hegemonia questionada pelo avanço das posições geopolíticas da China, Rússia e, inclusive, do Irã. Os ianques que já haviam assumido o fracasso da ocupação do Iraque e retirado suas tropas desse país; pelo menos, desde 2020, ainda sob o governo Trump, vinham negociando a completa retirada do território afegão. E quem era o principal interlocutor desse acordo no Afeganistão? Nada mais, nada menos que o Talibã.
A ascensão do Talibã representa uma nova fase da contrarrevolução imperialista no Afeganistão
A contrarrevolução imperialista triunfou efetivamente no Afeganistão desde que os talibãs chegaram ao poder pela primeira vez, com as bênçãos tácitas dos Estados Unidos e o apoio explícito da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão, entre 1996 e 2001. Desde então, esse processo contrarrevolucionário teve várias situações, mas nenhuma delas que significasse uma mudança qualitativa na gangorra entre o apoio implícito do imperialismo ao Talibã ou a ocupação militar pura e simples (2001-2021).
Hoje, o que assistimos é uma nova inflexão desse processo contrarrevolucionário. As negociações com o Talibã começaram ainda no final do segundo governo Obama (2013-2017) e avançaram significativamente durante o governo Trump, que fechou um acordo com a sua direção em 2020 para retirar todas as tropas ianques do Afeganistão. O novo governo Biden está apenas executando esse acordo e retirando suas tropas em 2021.
Com Biden, a retirada das tropas ianques não foi um plano improvisado nem sua execução caótica, como aparentam. Tudo foi negociado, a ponto de a saída das tropas estar quase que milimetricamente sincronizada como o avanço dos talibãs sobre as grandes cidades do Afeganistão, não havendo notícia de um único conflito entre soldados ianques e fundamentalistas. Tampouco os talibãs realizaram algum atentado contra a embaixada ou outros aparatos diplomáticos, comerciais e militares dos Estados Unidos ou dos demais países ricos com negócios em território afegão. Nenhum funcionário estadunidense foi preso, sequestrado, torturado ou assassinado.
Mesmo que os talibãs tenham entrado triunfais em Cabul desde o último dia 15 de agosto, o exército ianque segue controlando o aeroporto internacional e organizando a partida não só de diplomatas e funcionários estadunidenses e de outros países com representações diplomáticas e comerciais no Afeganistão, mas, inclusive, de afegãos que colaboraram com o regime de ocupação e seus sucessivos governos. Os talibãs controlam apenas os arredores do aeroporto, para impedir a aproximação de milhares de civis que tentam desesperadamente sair do país. Além disso, o Talibã se comprometeu, até agora, em garantir a vida e a propriedade de todos os cidadãos, inclusive dos colaboradores do governo de Ashraf Ghani, que renunciou no último dia 15 e fugiu do país. Mas isso não é tudo.
Os Estados Unidos tampouco se preocuparam em, junto com a retirada das tropas, levar consigo seus armamentos. Abandonaram o Afeganistão deixando uma enorme infraestrutura militar, blindados, armas e munições. Acredita-se que o Talibã tenha tomado posse de mais de 2 mil veículos blindados, incluindo caminhões Humvees, e cerca de 40 aeronaves, incluindo UH-60 Black Hawks, drones militares ScanEagle, e helicópteros de ataque (3). Tudo isso ficou para trás, mesmo se sabendo que o Taliban tomaria o país em questão de semanas.
Com a retirada das tropas ianques, transfere-se o poder pacificamente ao Talibã, que passa a ter autonomia para lutar por seu reconhecimento internacional como governo soberano e negociar, sob essas novas condições, possíveis acordos econômicos e militares. Esse é o plano do imperialismo, que não sabemos se e quanto tempo será seguido pelo Talibã.
Se Cabul em 2021 não é nem Saigon em 1975 – em referência à revolução vietnamita – nem, tampouco, Teerã em 1979 – em referência à revolução iraniana –, não se trata, portanto, de uma revolução, ainda que contraditoriamente conduzida por uma direção contrarrevolucionária; também não se trata de uma suposta contrarrevolução, tão ou mais improvável, que teria derrotado e expulsado o imperialismo estadunidense. Esta última caracterização seria muito perigosa, na medida em que colocaria teoricamente a possibilidade de unidade de ação com o imperialismo contra a barbárie fundamentalista do Talibã.
Na verdade, o que vimos não foi uma derrota militar do imperialismo fruto de uma guerra quente com o Talibã, mas a consequência tardia do atoleiro em que os Estados Unidos se meteram nos últimos vinte anos. Cientes do fracasso de sua estratégia de ocupação, os iaques passaram a negociar com a única força beligerante que poderia assumir o poder no Afeganistão em condições de estabelecer um governo nacional: o próprio Talibã.
No entanto, o senso comum insiste em gritar: mas os Estados Unidos não são inimigos dos talibãs?! Aí está a chave do segredo. As relações entre os Estados Unidos e o Talibã não precisam e não podem ser boas para a coisa funcionar. É preciso que a relação tenha um duplo caráter, uma dupla natureza, tenha uma ambiguidade, para que os estadunidenses possam utilizá-los mais amplamente em seu jogo sujo, da mesma forma que fazem os policiais com seus informantes, agentes duplos, traficantes, cafetões…
Por exemplo, parece improvável que o Talibã tenha acesso rápido à maioria dos ativos do banco central do Afeganistão, que somam cerca de 10 bilhões de dólares. “Dado que o Talibã ainda está nas listas de sanções internacionais, espera-se que tais ativos sejam congelados e não estejam acessíveis a eles”, disse o presidente em exercício do banco central do Afeganistão, Ajmal Ahmady, que fugiu de Cabul, em uma série de postagens no Twitter (4). Tudo indica que se trata de uma medida preventiva, cujo objetivo é pagar para ver se o Talibã cumprirá realmente com os acordos de 2020.
Para reforçar o que afirmamos acima, basta constatar a completa dizimação dos diferentes grupos de oposição ao Talibã, particularmente, durante os últimos anos da ocupação militar ianque. Antes da intervenção, em 2001, a oposição ao Talibã controlava parte do país, mas agora não controla quase nada. Ou seja, a ocupação militar justificada para acabar com o Talibã, estranhamente extinguiu a oposição ao mesmo Talibã. A única exceção é o núcleo da Aliança do Norte, formada a partir dos chamados Mujahidin que lutaram contra os soviéticos na década de 1980 e possuem uma origem e um caráter distinto do Talibã. (5)
Uma mudança no caráter do Talibã?
Obviamente que o Talibã de 2021 não é o mesmo que o de 2001. Vinte anos se passaram e seus dirigentes, além de manterem privilegiadas posições na retaguarda, sendo preservados inclusive pelo imperialismo de qualquer desarticulação do seu núcleo duro, buscaram redefinir suas táticas políticas, econômicas e militares.
Os talibãs de 2021 não chegaram ao poder sobre a base de massacres e saques de tribos, etnias e cidades. Conseguiram tomar o poder praticamente sem conflitos armados. Não querem passar a imagem para o mundo de bárbaros fundamentalistas, mas ser tolerados e reconhecidos como o governo de fato do Afeganistão. Isso só foi possível porque Biden cumpriu à risca os acordos assinados por Trump em 2020 e devido ao fato do governo do presidente Ashraf Ghani encontrar-se completamente desprestigiado diante do povo afegão, mergulhado numa série de escândalos de corrupção e inerte frente à grave crise econômica e social do país.
Isto não significa que o Talibã garantirá as mínimas liberdades democráticas e civis para o povo afegão, em geral e para as mulheres, em particular. Eles já anunciaram publicamente que o Afeganistão será governado por um Conselho étnico-religioso regido pelas interpretações que o próprio Talibã faz da sharia (lei islâmica baseada no Alcorão).
Porém, o Talibã busca ampliar o seu raio de influência, base étnica e social para além da etnia e das tribos pashtun das quais se originou. Segundo Pepe Escobar: “O Talibã de 2021 tem muito pouco em comum com sua encarnação terrorista do pré-guerra de 2001. O movimento evoluiu, de uma insurreição guerrilheira rural, em grande parte pashtun ghilzai, a um acordo mais interétnico, que inclui tajiques, uzbeques e até mesmo hazaras xiitas – este último um grupo impiedosamente perseguido nos anos 1996-2001 pelo Talibã”. (6)
Cabe destacar que os hazaras xiitas são de fala persa, ou seja, de origem iraniana, e, caso novamente hostilizados pelo Talibã, poderão ser apoiados pelo bloco euroasiático que inclui praticamente todos os países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tajiquistão e Quirguistão) que já estão inseridos na Nova Rota da Seda chinesa. Então, não pode ser descartado que os Estados Unidos fiquem por traz do Talibã e a China, Rússia e Irã por trás dos hazaras numa hipotética guerra por procuração e aparência de guerra santa.
Apesar do Talibã ter conquistado as principais cidades do país sem enfrentar praticamente nenhuma resistência armada devido, além dos fatores políticos mencionados acima, à completa implosão das forças armadas nativas organizadas e treinadas pelo imperialismo; já começaram a ocorrer os primeiros atos de resistência, como a manifestação em Jalalabad, no último dia 18, reprimida a tiros que mataram, pelo menos, três pessoas.
No dia seguinte, quando se comemorava a independência do Afeganistão do domínio inglês (1919), ocorreram manifestações em todo o país que podem representar o estopim de uma resistência ativa. Agencias internacionais noticiaram que a manifestação de Cabul, que contou inclusive com a participação de mulheres, foi dispersada a tiros, aparentemente sem vítimas fatais.
Além disso, pelo menos em uma região do país teve início uma resistência armada: A província do vale de Panjshir, a nordeste de Cabul, um território montanhoso de difícil acesso. A liderança política da resistência de Panjshir caberia supostamente ao ex-vice-presidente recém-deposto, Amrullah Saleh, que se encontra na região e conta com o engajamento de Ahmad Massoud – filho do dirigente Mujahidin da Aliança do Norte, Ahmad Shah Massoud, assassinado em 2001 pela Al Qaeda numa emboscada – que convocou o povo afegão a se unir a ele na resistência ao Talibã.
Saleh e Massoud reivindicam o apoio tanto dos principais países europeus quanto dos Estados Unidos, a quem chamam de “países amigos da liberdade”, para combater o Talibã. Obviamente que o imperialismo estadunidense busca com a resistência de Panjshir garantir a chamada “dominação do espectro total”, ou seja, abranger praticamente tudo que pode se tornar uma arma e ameaça no campo de batalha ou na consciência dos atores sociais e políticos, e com isso garantir uma alternativa sobressalente ao possível fracasso dos acordos com o Talibã. (7)
As mulheres sempre estiveram à frente da resistência ao Talibã, desta vez não será diferente
Diante de um regime capitalista bárbaro e fundamentalista, como é o do Talibã, as primeiras coisas a serem extirpadas são os direitos dos oprimidos, as vidas que “valem menos” ou são até mesmo indesejadas. Justamente por isso, procurar responder à situação das mulheres numa perspectiva cultural ou religiosa, seria uma cilada que pode custar muito caro para o feminismo internacionalista e, sobretudo, para as afegãs.
Os anos do primeiro governo Talibã (1996-2001) não deixaram dúvidas de que as meninas e mulheres foram suas maiores vítimas. A aplicação fundamentalista da sharia se expressou num governo misógino, sob o qual o apedrejamento público de mulheres, os casamentos forçados de meninas, a proibição de frequentar escolas, universidades e de trabalhar, a obrigação do uso da burca, os castigos com ácido, a organização de redes de escravidão sexual, entre outras atrocidades, se tornaram regras.
Essa memória fatal ajudará a entender por que, à medida que os talibãs ganhavam terreno nos últimos meses, as mulheres já estivessem entre as primeiras vítimas da sua nova ofensiva. Em 13 de agosto, a agência de refugiados da ONU registrou que, dos quase 250 mil afegãos forçados a fugir desde o final de maio, 80% eram mulheres e crianças.
Embora alguns dos porta-vozes do Talibã insistam que haveria uma mudança da sua prática opressora, particularmente em relação às mulheres, o que verificamos é que isso não corresponde à realidade. As mulheres já não estão atuando como apresentadoras de TV, fotos com modelos sem véu e maquiadas pelas vitrines da capital foram cobertas de tinta, professoras se despedem das alunas nas escolas, há notícias de que os combatentes talibãs já exigem uma lista com nomes de meninas e mulheres entre 15 e 45 anos que serão submetidas a casamentos forçados. Não há futuro para as meninas e mulheres sob o regime do Talibã.
A realidade das meninas e mulheres, no entanto, não foi sempre assim no Afeganistão. A partir da vitória da Revolução de Saur, em 1978, estabeleceu-se a igualdade entre os sexos, garantiu-se a participação das mulheres na vida política do país e conquistou-se inúmeros direitos civis. Fruto desse processo, em 1989, quando o Talibã surgiu, as mulheres eram 70% da categoria docente, 50% do funcionalismo público e dos estudantes universitários, 15% do Poder Legislativo, tinham direito ao voto e podiam decidir se usariam ou não a burca.
Foi a partir da década de 1990, quando da derrota soviética e da, cada vez maior, interferência imperialista estadunidense, os direitos civis e humanos básicos foram retirados das mulheres afegãs. Depois, com a ocupação direta do Afeganistão pelo imperialismo em 2001, a situação das mulheres, ainda que não estivessem mais submetidas à interpretação da sharia pelo Talibã, continuou sob condições muito difíceis. Dados de 2013 apontam que, de 10 milhões das meninas afegãs, apenas 4 milhões frequentavam a escola. Somente 1% das mulheres tinha acesso ou frequentava a universidade – a pior estatística do mundo naquele momento. Enquanto Malala denunciava, legitimamente, o Talibã, 80 crianças foram assassinadas pelas tropas de ocupação. A polícia treinada pelo exército ianque foi várias vezes denunciada pela onda de violência sexual contra mulheres policiais afegãs. Essa mesma polícia permitia o estupro de crianças pelas milícias aliadas.
Portanto, é um enorme equívoco associar a libertação feminina, ou do próprio povo afegão, à intervenção estadunidense no país ou lamentar o fim dessa intervenção, como se ela fosse a solução para libertar as mulheres e o povo afegão do Talibã. As tropas estrangeiras de ocupação que se instalaram no Afeganistão levantando a bandeira de proteção às mulheres frente à misoginia dos talibãs, foram as mesmas que abandonaram essas mulheres, diante da retomada do poder pelo grupo fundamentalista.
É evidente que seria também um erro colocar um sinal de igual, de forma geral, entre o regime do Talibã e a intervenção militar estadunidense, visto que a segunda não aplica uma interpretação fundamentalista da sharia. Há uma grande diferença, sem dúvida, entre escolher usar a burca, ou ser obrigada a usá-la, sob pena de ser espancada ou mesmo assassinada. Mas isso não autoriza a ninguém minimizar os efeitos nefastos da ocupação imperialista sobre as vidas das meninas e mulheres afegãs.
A grande tragédia na vida das meninas e mulheres afegãs hoje não é o uso da burca, como equivocadamente muitas feministas no Brasil têm levantado. O que está dramaticamente em questão, mais uma vez, é a perda de direitos civis conquistados sob condições dificílimas ao longo da história e, sobretudo, a ameaça à integridade física e à vida das meninas e mulheres afegãs diante de um regime fundamentalista e misógino.
Durante os anos de regime Talibã (1996-2001), as mulheres foram as que mais lutaram e resistiram. Por uma vida digna, por direitos, por democracia, pela liberdade. Elas, inclusive, deram exemplo forjando distintas formas auto-organização para sobreviver, lutar e resistir. Na atual retomada do Talibã, a primeira manifestação de protesto foi uma marcha de mulheres que, com toda razão, não confiam na aparente moderação anunciada pelos fundamentalistas.
Existe uma poderosa auto-organização de mulheres em diferentes regiões da Ásia e Oriente Médio, como as bravas feministas do Curdistão, que estão se levantando em solidariedade às afegãs. No Brasil, para fortalecer essa rede feminista internacional, organizada em torno do apoio aos refugiados, precisamos escutar o que dizem e pedem as mulheres afegãs, dando visibilidade às suas reivindicações e forjando todas as formas possíveis de solidariedade.
A transição para uma nova estratégia geopolítica contra China e Rússia
Mesmo que os Estados Unidos tenham resolvido se retirar unilateralmente do Afeganistão, sem considerar a opinião de seus aliados do G7 e da União Europeia (UE), no último dia 19, uma reunião virtual dos ministros das Relações Exteriores do G7 debateu a crise após a retomada do poder pelo Talibã, expressando preocupação com “os relatos de represálias violentas”.
E qual foi a conclusão da reunião? Simplesmente fazer exigências tímidas, enfatizando a “importância de o Talibã cumprir seu compromisso em garantir a proteção dos civis”, “garantir uma passagem segura” aos estrangeiros e, a cereja do bolo, “concordaram que o Talibã deve garantir que o Afeganistão não se torne um ‘host’ para uma ameaça terrorista à segurança internacional” (8). Na esteira do G7, o presidente da Turquia, Recep Erdogan, também declarou que está disposto a cooperar com a suposta estabilização do Afeganistão sob o comando do Talibã. (9)
Apesar da gritaria do presidente francês, Emmanuel Macron, e de vários representantes da UE, ainda que não reconheçam formalmente o novo governo do Talibã, o resultado da reunião dos ministros das Relações Exteriores do G7 está em perfeita sintonia com retirada das tropas de ocupação do Afeganistão, dando ao imperialismo estadunidense uma enorme margem de manobra.
Essa grande mudança de paradigma significa, portanto, redefinir prioridades estratégicas, militares, políticas e econômicas. E isto custa tempo e dinheiro, implicará economizar bilhões, senão trilhões de dólares nos próximos anos para concentrar gastos na reorganização da economia dos Estados Unidos e no financiamento da sua nova estratégia geopolítica. Portanto, o que está em jogo são questões econômicas e tecnológicas, como a disputa em torno da próxima geração da rede de internet móvel (5G); bem como militares, como a disputa do Mar do Sul da China e a influência sobre o futuro do Iraque, que hoje possui uma forte presença iraniana.
Por outro lado, o imperialismo espera transformar possivelmente o Afeganistão no centro desestabilizador de guerras islâmicas em toda a região. Conta com os talibãs para apoiar uma suposta insurgência islâmica na Ásia Central, particularmente nas fronteiras do oeste da China e sul da Rússia. Isso envolveria outros povos islâmicos que poderiam obter a ajuda do Talibã e, inclusive, da Arábia Saudita, aliado histórico do imperialismo na Eurásia.
Da sua parte, China e Rússia viram como inevitável o triunfo dos talibãs com a saída das tropas iaques do Afeganistão e se anteciparam à manobra, buscando iniciar um acordo com o novo governo fundamentalista, antes mesmo dele se instalar oficialmente em Cabul.
Trata-se, portanto, de uma disputa capitalista entre China e Rússia contra os Estados Unidos para tentar dissuadir o Talibã de possíveis intentonas islâmicas nos países fronteiriços, bem como atraí-lo para acordos econômicos em torno da nova Rota da Seda: Em 2019, o governo chinês anunciou o One Belt One Road (“um cinturão, uma rota”, em inglês), o maior plano de investimentos da história. Ele inclui uma quantidade astronômica de dinheiro: nada menos do que 5 trilhões de dólares. Isso é três vezes o PIB do Brasil, e quase 40 vezes o valor atualizado do Plano Marshall, que os EUA criaram para reconstruir a Europa após a 2ª Guerra Mundial. (10)
A nova Rota da Seda está avançando rapidamente por toda a Eurásia, particularmente na Ásia Central, com acordos econômicos bilionários com Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tajiquistão, Quirguistão e, inclusive, com o Paquistão. É isto que está em jogo. Este será o grande problema estratégico a ser combatido pela geopolítica do imperialismo estadunidense nos próximos anos.
Breves conclusões estratégicas
Quais seriam as conclusões estratégias que a esquerda socialista deveria tirar de todos esses complexos acontecimentos? Não temos a ambição aqui de propor uma política detalhada para a nova situação do Afeganistão. Mas, a partir das análises e caracterizações anteriores, gostaríamos de propor algumas definições estratégicas.
Em primeiro lugar, o que houve no Afeganistão foi um rearranjo da política contrarrevolucionária do imperialismo estadunidense que resolveu unilateralmente, diante do fracasso do governo fantoche do presidente Ashraf Ghani e da implosão das forças armadas treinadas pelas tropas ianques, substituir a ocupação militar direta por um acordo com a única força beligerante em condições de garantir um governo nacional: O Talibã. Trata-se, portanto, de uma manobra muito perigosa e arriscada, mas esta foi a única saída encontrada pelo imperialismo para se ver livre do atoleiro em que havia se metido e dar os primeiros passos em sua nova estratégia geopolítica.
Em segundo lugar, pelo exposto acima, a esquerda socialista de todo o mundo não pode saudar o Talibã como se ele houvesse expulsado as tropas imperialistas do Afeganistão numa guerra quente. O que houve foi um acordo construído durante anos de negociações, fechado por Trump e agora executado por Biden. O Talibã não é nem nunca foi o depositário da luta pela libertação nacional do povo afegão!
Em terceiro lugar, os Estados Unidos, como inúmeras vezes fizeram na história do século XX, ao retirarem suas tropas de ocupação deixaram o povo afegão à mercê de um governo totalitário e, além disso, com um absurdo componente fundamentalista religioso. E essa manobra sórdida no Afeganistão foi realizada com o apoio tácito e a cumplicidade da UE e do G7, que também estão dispostos a negociar com o governo do Talibã.
Em quarto lugar, não podemos esquecer do papel de China e Rússia nessa disputa. O que já vem se desenhando há meses é que ambas estão intervindo com o objetivo de dar um drible no imperialismo estadunidense e neutralizar o Talibã, oferecendo uma vantajosa participação nos negócios trilionários da Nova Rota da Seda e dos oleodutos e gasodutos que passam pela Ásia Central. Por esse motivo, não entrarão em choque com o Talibã para defender o povo e as mulheres afegãs do seu regime político bárbaro e fundamentalista.
Por tudo isso, a posição estratégica da esquerda socialista, diante da nova ascensão do Talibã ao poder no Afeganistão, deverá partir de quatro pontos muito simples:
* Denúncia implacável do governo capitalista bárbaro e fundamentalista do Talibã;
* Denúncia implacável dos acordos capitaneados pelos Estados Unidos, UE e G7, que podem levar inclusive ao reconhecimento do governo do Talibã;
* Denúncia implacável da postura covarde de China e Rússia, que visam comprar o Talibã com o pote de ouro da Nova Rota da Seda e ventilam o reconhecimento do seu governo;
* Solidariedade internacional de todos os trabalhadores e povos do mundo com as lutas de resistência do povo e das mulheres afegãs contra o regime capitalista bárbaro e fundamentalista do Talibã.
Referências
1. https://www.youtube.com/watch?v=v3RwINNweyk – Sobre a produção de ópio no Afeganistão.
2. https://www.aljazeera.com/economy/2021/8/16/the-us-spent-2-trillion-in-afghanistan-and-for-what
5. https://www.youtube.com/watch?v=Xh6ru7Rj8-A – Sobre a diferença entre os Mujahidin e o Talibã.
6. https://asiatimes.com/2021/07/say-hello-to-the-diplo-taliban/ – Artigo original publicado em inglês no portal Asia Times, traduzido e reproduzido em português em: https://www.brasil247.com/blog/digam-alo-ao-diplo-taliba
7. https://segundaopiniao.jor.br/o-espectro-total/
8. https://www.infomoney.com.br/economia/g7-expressa-preocupacao-com-retaliacao-violenta-no-afeganistao/
9. https://youtu.be/p47v9sZaDCo – Turquia diz que vai cooperar com o Talibã.
10. https://super.abril.com.br/sociedade/a-nova-rota-da-seda/
Fontes
https://www.aljazeera.com/economy/2021/8/16/the-us-spent-2-trillion-in-afghanistan-and-for-what
https://newleftreview.org/sidecar/posts/debacle-in-afghanistan
https://asiatimes.com/2021/07/say-hello-to-the-diplo-taliban/
https://dossiersul.com.br/o-estrondoso-retorno-do-emirado-islamico-do-afeganistao-pepe-escobar/
https://www.hispantv.com/noticias/afganistan/497410/ghani-eeuu-talibanes-kabul
https://www.hispantv.com/noticias/politica/497426/iran-raisi-afganistan-paz-taliban-eeuu
https://www.hispantv.com/noticias/politica/497264/iran-seguridad-fronteras-afganistan
https://www.infomoney.com.br/economia/g7-expressa-preocupacao-com-retaliacao-violenta-no-afeganistao/
https://exame.com/mundo/ex-vice-presidente-do-afeganistao-promete-resistir-aos-talibas/
https://revistaopera.com.br/2021/08/16/a-queda-de-cabul-e-o-segundo-governo-taliba/
https://aterraeredonda.com.br/o-fracasso-dos-eua-no-afeganistao/
https://segundaopiniao.jor.br/o-espectro-total/
https://aterraeredonda.com.br/a-nova-rota-da-seda/
https://super.abril.com.br/sociedade/a-nova-rota-da-seda/
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/eua-china-duas-estrategias-na-luta-pela-hegemonia/
https://youtu.be/t1pbZdSt__s
https://youtu.be/zANkKjGSC7M
https://youtu.be/7dc3g2t5O0g
https://youtu.be/p47v9sZaDCo
https://www.youtube.com/watch?v=Xh6ru7Rj8-A
https://youtu.be/_VudZKsYZ0M
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