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BRASIL

Farmacologia, uma disciplina científica contra fantasias reacionárias

Boris Vargaftig*, de São Paulo, SP

Pintura no Vale do Nilo, datada do Século III aC, que retrata um ritual de “alquimia”

A farmacologia começou com o homem. 

A época primitiva da caça e colheita foi caracterizada pelo necessário deslocamento dos agrupamentos humanos, que teria precedido a sedentarização ligada à invenção da agricultura e à domesticação de animais. Existiam doentes e feridos e medicações naturais e cerimônias religiosas encantatórias. 

As grandes civilizações mesopotâmica, egípcia e demais médio-orientais, da África, do Extremo Oriente e das Américas, utilizavam amplamente drogas de origem natural. Apesar dos progressos da química sintética, opiáceos com atividade analgésica, digitálicos com ação dita inotrópica que fortalecem os batimentos cardíacos, a aspirina e derivados, os antibióticos, muitos agentes quimioterápicos e tantos outros produtos, provém em sua origem de plantas ou assimilados. 

Sua disponibilização foi e é insuficiente para as necessidades humanas. Decocções de plantas, frequentemente associadas a práticas mágicas ou esdrúxulas, como ingestão de órgãos ou sacrifícios animais ou humanos, foram e são ainda indicadas por curandeiros e praticantes dedicados. 

Antes do século 19, com algumas exceções, como a vacina de Jenner contra a varíola, por exemplo, o que dominava eram de fato medicações bizarras. Veja-se a peça teatral de Molière, durante o reinado de Luís XIV na França, onde os médicos da corte são apresentados como personagens ridículos que, contra todas moléstias prescrevem invariavelmente lavagens intestinais ou sangramentos, que supostamente eliminam doenças e suas causas, os chamados miasmas. A cirurgia era considerada medicina inferior, praticada por barbeiros, e não pelos elitistas supostos médicos.

A medicina não nasceu subordinada ao desenvolvimento capitalista, mas foi nutrida por ele que, por sua vez, precisou do desenvolvimento do conhecimento médico e fisiológico, para construir sua base (1). O caso que me parece mais flagrante é o da medicina tropical, nascida do colonialismo. Tratava-se ao mesmo tempo de proteger os agentes coloniais e imigrantes e, quando necessário e na medida do possível (sic), preservar a mão de obra nativa e sobretudo, imigrada. Outro “impulsionador” da medicina, notadamente cirúrgica, foi a crescente importância de guerras longas e custosas, com elevada mortandade.
Um médico segurando a mão de uma paciente em uma cena da peça L’Amour médecin de Molière.
O Amor é o Melhor Médico, peça de Molière, dramaturgo francês do Século XVII

O grande desenvolvimento da química medicinal, que substituiu o charlatanismo, começou com o crescimento do capitalismo, notadamente da indústria química na Europa ocidental. As Bayer, Rhône-Poulenc, BASF e demais gigantes industriais se desenvolveram no século 19, com frequência associadas a indústrias químicas dos Estados Unidos. 

No Brasil, a política da corte, instalada após a invasão napoleônica de Portugal, opôs-se inicialmente a qualquer programa educacional ou de desenvolvimento, excetuando colégios religiosos. Resguardadas as diferenças de época, pregava-se o mesmo que o agronegócio hoje, descrito na televisão aberta em propaganda indecente como “é Pop, é Tudo”. Esta interdição transformava o Brasil em fonte exclusiva de commodities, para impedir a concorrência aos produtos portugueses, política a que se opunha, por suas razões, o imperialismo britânico.

O grande desenvolvimento da química medicinal, que substituiu o charlatanismo, começou com o pleno desenvolvimento do capitalismo, notadamente da indústria química na Europa ocidental.

De ciência, nem se fala; entretanto, mesmo se o conceito e sua importância divergiam, era preciso algum conhecimento em agronomia, geologia, engenharia e arquitetura, geografia e técnicas de navegação (astronomia) e o mínimo de medicina. Com o tempo, instalaram-se as primeiras faculdades e nos primórdios do século 20, outras estruturas.A farmacologia é uma disciplina científica de base, que estuda o modo de ação dos medicamentos e toxinas. Ela interage com a química, para criar novos produtos, cuja concepção deriva de prévios conhecimentos fundamentais. Estas noções constituem a base científica da terapêutica. Um bom exemplo de interação entre as concepções e experimentações de base e sua aplicação prática, é a pesquisa sobre a histamina que, como comentei anteriormente, era (e continua a ser) considerada um mediador importante da alergia. Um cientista britânico, A. K. Black, futuro prêmio Nobel, estudou os receptores da histamina e descobriu que, além dos receptores ditos de tipo H1, diretamente envolvidos na alergia, existem outros, ditos H2, envolvidos na determinação do pH no estômago. Sem esta descoberta, não teriam sido inventadas mais tarde substâncias antagonistas dos receptores H2, que não interagem com H1 e são assim desprovidas dos efeitos anti-alérgico e sedativo, que caracterizam os antagonistas dos receptores H1. Estes anti-H2 se mostraram úteis contra a hiperacidez gástrica, então muito comum, hoje tratada com produtos mais eficientes. Assim, o trabalho básico sobre o modo de ação da histamina revelou receptores até então desconhecidos, cuja descoberta teve uma aplicação terapêutica importante. Para os interessados, recomendo o artigo abaixo (2).

A farmacologia é uma disciplina científica de base, que estuda o modo de ação dos medicamentos e toxinas. Ela interage com a química, para criar novos produtos, cuja concepção deriva de prévios conhecimentos fundamentais. Estas noções constituem a base científica da terapêutica.

Ao desconhecer o modo de ação dos medicamentos, o médico perde a referência científica e guarda somente o empirismo, a noção de que a droga em questão é ou deveria ser eficiente, porque foi-lhe dito. Como um cardiologista poderia tratar uma arritmia cardíaca, pulsações irregulares, ignorando os efeitos do medicamento indicado ou dos medicamentos em curso? Outro exemplo atual: Como pode um médico e, a fortiori, um leigo, prescrever e promover a distribuição da cloroquina ou de um seu derivado para a Covid-19, não somente sem possuir uma formação de base, que é essencial para oferecer alternativas, corrigir erros e prever o que deve se passar, mas também ignorando seus efeitos colaterais? 

Se é lícito ao autoproclamado curandeiro, sem a menor qualificação profissional apropriada, prescrever/recomendar por conta própria um medicamento, notadamente às pessoas que pensam estar doentes, porque então não estender o conceito para a livre prescrição de antibióticos ou de agentes quimioterápicos? Este é um bom exemplo, os ditos antibióticos têm especificidade, o que significa que cada qual pode ter eficiência máxima ou mínima, conforme a moléstia, o território atingido e as bactérias em causa. Assim, se alguém  sarou, quando tratado corretamente por exemplo contra uma dermatite infecciosa com um antibiótico provido de efeitos colaterais se administrado em excesso, o livre direito de prescrição levaria as demais pessoas, supondo bem fazer, a prescreverem o mesmo antibiótico a pessoas com dermatite alérgica, tumores ou parasitoses cutâneas etc. O mesmo, em mais grave, se dará com agentes quimioterápicos. Um de seus próximos foi tratado de um tumor peritoneal com derivados de platina, notoriamente eficientes em casos específicos, mas tóxicos, sobretudo quando ministrados sem controle? Você se sentiria autorizado a recomendar ou mesmo a prescrevê-lo para vizinhos, amigos, inimigos, conhecidos, desconhecidos etc., com a agradável sensação de bem fazer! 

Como diz o ditado, “de médico e de louco, todos têm um pouco”. E no caso, pior quando se trata de pseudo-médico e de real louco…    

Num belo texto (3) o filósofo italiano Domenico di Masi, ressalta que o retrocesso social e político conduz à discussão de temas historicamente ultrapassados, como os debates teológicos e/ou filosóficos sobre o terraplanismo, a resistência às vacinas e às medidas básicas de segurança sanitária, pautas morais etc:

“Quando o país é comandado por pessoas tão tacanhas, a tendência é o rebaixamento geral do nível cognitivo de sua população.” Ele afirma que “… torna-se necessário provar de novo a esfericidade da terra ou demonstrar a eficácia da vacinação” e  “Ou defender, outra vez, a separação entre Igreja e Estado, mais de 230 anos após a Revolução Francesa”. 

Assim, a benzedura e as orações coletivas seriam legitimadas – e porque não perseguir os pretensos agentes do mal, como na Idade Média, com queima dos supostos possuídos por Satan? Estamos diante então de práticas mágicas, aposição de mãos, orações coletivas, concentrações mentais e assim por diante, que são associadas com frequência a perseguições raciais, como aos judeus, aos povos originários, às mulheres supostas feiticeiras, sempre na Idade Média. Daqui a pouco inventarão que as águas potáveis, como os poços no passado, foram envenenadas por movimentos negros ou, se estivéssemos nos Estados Unidos ou na Europa, por muçulmanos ou judeus fanáticos.

Os períodos de regressão social induzem a conversão ao conservadorismo das massas desapontadas pelo fracasso dos reformismos (PS e PC na Alemanha ou Itália (4), PT no Brasil), quando essas pessoas estão temerosas e/ou desesperadas diante do futuro. 

La Boétie, pensador renascentista do século 16, comentou no livro “Submissão Voluntária” (5) a extraordinária tendência de subordinação a toda e qualquer autoridade, o que inclui a apologia de medicamentos arbitrários, que têm para a extrema-direita a vantagem suplementar de permitir uma demagogia anticapitalista. E, completo, um belo lucro! As teses de La Boétie da submissão voluntária, evidentemente num contexto social e político totalmente diferente do de hoje, guardam enorme relevância e merecem ser conhecidas.

Livro Discurso da Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie
 

De volta à farmacologia, fala-se muito em ciência básica e em ciência aplicada. 

Um exemplo muito ilustrativo mostra como um estudo inicialmente desligado de aplicação prática pode evoluir, por saltos quantitativos e sobretudo qualitativos, com mudança de paradigma, para revoluções terapêuticas. Ao estudarem nos anos 1940, por exemplo, os efeitos da peçonha da serpente Bothrops jararaca em cães, Rocha e Silva e colaboradores descobriram a bradicinina, um novo mediador da inflamação. Com isto, a USP, naquele momento influenciada por um posicionamento extremamente conservador, que se recusava a ver a realidade do mundo capitalista , nem pensava no que capitalistas mais espertos poderiam empreender, ou seja, garantir seu direito de propriedade para negociá-lo mais tarde. 

Vigarices ou semi-vigarices ocorrem com frequência. Na segunda categoria podemos incluir certamente a homeopatia ou a recente invenção que deveria revolucionar o tratamento do câncer, a fosfoetanolamina. Acrescentem-se “invenções” literais, caricaturas de verdadeira invenção, como a recente promoção da cloroquina e da hidroxicloroquina, a serem administradas logo no início da Covid-19. Aqui a única “prova” é constituída por dois pequenos artigos do grupo marselhês de Didier Raoult, médico guru de um grupo negacionista. Didier Raoult publicou uma curta carta, com um título ambíguo, que deixa a entender que a cloroquina é ou não eficaz, conforme a leitura que se faça. A frase final desta “Carta ao leitor” declara, entretanto, que seu trabalho confirma a atividade preventiva da cloroquina (6). Não se trata portanto de uma retratação, como foi afirmado, mas de uma confirmação de sua pretensão.

Não existe suporte sério para o uso da cloroquina e de seus derivados contra o Covid. Seu uso persistente é espantoso, revela a duplicidade da extrema-direita, que não hesita em promover o absurdo, para se autopromover.

Não existe suporte sério para o uso da cloroquina e de seus derivados contra o Covid. Seu uso persistente é espantoso, revela a duplicidade da extrema-direita, que não hesita em promover o absurdo, para se autopromover. Para tanto, ela se baseia num aparelhamento ideológico arbitrário, nutrido pelo ressentimento irracional de médicos pouco leitores e pouco letrados, em geral influenciados pela propaganda fascisante. 

É desolador que médicos propaguem, contra o bom senso, teorias conspiratórias sobre a eficiência da cloroquina contra o Covid-19. Mais grave ainda, é que entidades que supostamente estão a serviço da medicina e do público, como alguns CRMs e o CFM, se abstenham de denunciar a campanha negacionista e promocional de um produto que, administrado fora do controle médico, pode ser muito prejudicial. Tão passivos que são, nem se manifestaram até o presente momento a  respeito da tentativa do governo federal de introduzir arbitrariamente o uso da cloroquina contra Convid-19 na bula do medicamento. Este pedido não só é absurdo, pois contradiz a realidade, como ignora completamente os procedimentos habituais na profissão, quando é o fabricante que solicita à autoridade competente, no caso presente, a ANVISA, quaisquer modificações da bula. 

Não me surpreende que nem o Conselho Estadual (SP) nem o Conselho Federal de Medicina tenham se manifestado a respeito. Associar o desejado “tratamento precoce” ao uso de cloroquina e derivados é desonestidade intelectual com consequências desastrosas. O tratamento dito precoce poderá ser alcançado através de estudos inovadores sérios, e não pela publicidade em curso. 

Um dos apoiadores do “tratamento precoce” é o virologista e professor da USP Paolo Zanotto, colega do ICB, que defende abertamente esta invenção. O professor Zanotto, cuja competência técnica é ilustrada pelas suas publicações em seu ramo de conhecimento, deveria aplicar o mesmo critério para a Covid: só têm valor científico e prático as publicações em revistas científicas respeitáveis e sujeitas à crítica colegiada e que empreguem métodos científicos. 

Na farmacologia as histórias de fadas não valem! 

Para desviar nossa atenção das carências da defesa do uso da cloroquina, foi afirmado por um Dr. Ebenezer Maurilio Nogueira da Silva, professor de música da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista à Folha de São Paulo, disse que “O professor Zanotto é um grande pesquisador, que sofre um caso clássico de perseguição. O Brasil tem um grande problema de não reconhecer as pessoas…”(7). Desminto formalmente o dito professor: P. Zanotto é reconhecido pelos virologistas bem informados pelas suas contribuições à sua disciplina, o que não lhe dá competência e autoridade para apoiar sandices. Seus argumentos são repetições de outros, nada trazem de novo. O que pode ser novo, é sua associação “educada” à extrema direita, que se manifesta pelo apoio repetido à política bolsonarista, da qual a comunidade uspiana deveria se dissociar com alto e bom tom. 

Já o caso da fosfoetanolamina é mais convencional e não me parece, até prova em contrário, ter uma origem política de extrema-direita, como no caso do mal indicado uso da cloroquina. Mais espantoso foi a ingenuidade do químico que fez pronunciamentos absurdos, pretendendo que os grupos farmacêuticos se opusessem à sua “descoberta”, porque tornaria inúteis os medicamentos anticancerosos disponíveis e caros. A cobertura mediática e, sobretudo, a atitude permissiva do STF, deram credibilidade à pseudo-descoberta. Assim, a USP, embora descrente dessas bobagens, foi obrigada a engajar pessoal e financiamento para explorar tal fantasia e sintetizar a droga recomendada pelos sábios pais da pátria, que de tudo devem entender, inclusive de farmacologia e terapêutica. 

Mesmo sem parecer fazer parte de um projeto de poder de caráter fascista, como é o caso da cloroquina, os apoiadores da atividade antitumoral da fosfoetanolamina reforçaram a credulidade e a credibilidade do irracionalismo da extrema-direita, mas isto não parece ter sido planejado como uma operação política, embora possa serví-la. 

Estas discussões revelaram um irracionalismo “moderado” ao lado do “exaltado”, fascisante. A ciência, que se desenvolve conforme as necessidades da sociedade precisa de total liberdade. Quando políticos defensores de tratamentos absurdos contra a Covid se sentem autorizados a atacar e punir por exclusão médicos de bom senso, é que as coisas vão mal… 

Este artigo serve de base ao capítulo sobre farmacologia que constará de meu livro de memórias, em finalização. Inspirou-se em parte em artigo publicado em Esquerda Online em 05/07/2021.

*Bernardo Boris Vargaftig é um pesquisador brasileiro, titular da Academia Brasileira de Ciências na área de Ciências Biomédicas desde 1997. É professor aposentado do departamento de farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

NOTAS

(1) Cliford D. Connor, Histoire Populaire des Sciences, Éditions l’Echappée, Montreuil, France, 2001 (original: A people’s History of Science: Miners, Midwives, and “Low Mechanicks”, Nation Books, New York, 2005).
(2) Criado PR, Criado RH, Maruta CW, Machado Filho CA. Histamina, receptores de histamina e anti-histamínicos: novos conceitos. An Bras Dermatol. 2010;85(2):195-210
(3) https://www.brasil247.com/mundo/neste-momento-voces-estao-nas-maos-de-um-ditador-diz-domenico-de-masi-sobre-o-brasil
(4) E. Pachukanis, Fascismo, Boitempo, São Paulo, 2009.
(5) Etienne de La Boétie, Discurso sobre a Servidão Voluntária, LGE Editora, Brasília, Brasil, 2009; Marilena Chauí, Cultura e Democracia, Cortez Editora, São Paulo, Brasil, 2014.
(6) Response to the use of hydroxychloroquine in combination with azithromycin for patients with Covid-19 is not supported by recent literature, Int. J. Antimicrobial Agents, 57, 1006241, 2021, Ph. Gautret, Van Thuan Hoang, Stéphane Honoré, Yanis Roussel, Matthieu Million, Jean-Christophe Lagier, Didier Raoult.
(7) Folha de São Paulo, 24/06/2021