De memória, inclusive anterior à Stonewall
Junho é o mês do orgulho pelo acontecido na Revolta de Stonewall. Tudo começou com um revide espontâneo a uma batida policial no bar Stonewall Inn, na periferia de Nova Iorque (EUA). Naquela noite de 28 de junho de 1969, as pessoas LGBTI+ marginalizadas pela sociedade se insurgiram. Os protagonistas foram jovens homossexuais, drag queens e mulheres trans; grande parte negros, latinos, profissionais do sexo e pessoas que haviam sido expulsas de casa por sua orientação sexual ou identidade de gênero. O motim atraiu apoio e durou cerca de cinco (5) dias, com focos de protestos nas ruas próximas ao bar.
Mas essa revolta não é onde tudo começou. Pelo menos um século antes, houve importante luta contra a criminalização da homossexualidade, na Alemanha (1), se tornando uma referência para a Europa e, após a revolução russa de 1917, com forte peso no país socialista. A organização política de pessoas homossexuais, contudo, foi impedida. Por um lado, pelo nazifascismo; por outro, pelo stalinismo.
O nazismo, na Alemanha, marcando-os com um triângulo rosa ou preto (2), teria matado, em campos de concentração, entre 5 e 15 mil homossexuais. No fascismo italiano, pessoas homossexuais eram mantidas presas em ilhas e, em alguns casos, submetidas a diversas formas de violência física e psicológica.
Já a antiga URSS foi pioneira mundial na descriminalização da homossexualidade, ainda em 1918, logo após a Revolução de Outubro. Contudo, já no processo de burocratização, sob o comando de Josef Stalin, em 1934, a homossexualidade voltou a ser criminalizada, sendo alvo de campanhas politicas de desmoralização por parte do Estado.
Na América Latina temos exemplos de iniciativas políticas anteriores ou sem relação direta com Stonewall. O Diário de Pernambuco, publicado em 22 de maio de 1968, noticiou a organização de um Congresso dos Enxutos, referindo-se a homossexuais, no temário: a) reconhecimento do 3º sexo; b) permissão para casamento e divórcio entre homossexuais; c) reivindicação de melhor tratamento por parte da sociedade; d) fundação do Clube dos Enxutos (…). A realização do evento foi impedida pela polícia (3). Ainda, poucos meses após a Revolta de Stonewall, sem que haja registros de interação com o ocorrido, foi fundado, em um dos bairros operários de Buenos Aires (Argentina) o agrupamento homossexual chamado El Grupo Nuestro Mundo.
Portanto, ao falarmos da origem do movimento LGBTI+ mundial vale lembrar a forte repressão sofrida por pessoas homossexuais na primeira metade do século XX, que interrompeu o seu processo de organização política. E, também, de outras iniciativas anteriores ou sem ligação com Stonewall. O mais correto seria dizer de um “ressurgimento” da luta homossexual e de identidade de gênero. A originalidade da revolta de Stonewall foi a de ter projetado as lutas gay e lésbica internacionalmente, com um programa radical.
De luta, não de compras
A mercantilização das identidades LGBTI+ foi iniciada logo após a própria Revolta de Stonewall, ainda em 1969, com o início da comercialização das marchas de Christopher Street Gay Liberation Day, nos EUA, conhecidas mundialmente como paradas do orgulho LGBTI+. Naquele ano, o gerente do bar Stonewall Inn, Ed Murphy, já notou o potencial de comercialização das marchas e desfiles e, formando o Comitê do Festival da Rua Christopher, em 1972, para fornecer dinheiro aos proprietários de negócios voltados para guetos gays (4).
Apesar das incidências do mercado sobre o “mês do orgulho”, que torna tudo uma afirmação genérica de amor e felicidade, a nossa memória é de luta radical. A Revolta de Stonewall impulsionou um programa de características anticapitalistas, que defendia que a libertação sexual deveria ser acompanhada de mudanças econômico-sociais no conjunto da sociedade, que rompessem com as desigualdades e injustiças sociais (5). E, associada à mobilização feminista, a luta do orgulho compôs, nos anos 1960 e 1970, um movimento internacional de contestação de ideologias opressoras e medidas sexualmente repressivas adotadas pelos Estados.
O pano de fundo para as características anticapitalistas originais do movimento é o processo de múltiplas contestações, sejam econômicas, políticas, sociais ou sexuais, ocorridas no período histórico do qual fizeram parte os anos 1960 e 1970. Esses anos foram atravessados por grandes conflitos abertos na luta de classes, no auge de uma etapa revolucionária mundial, aberta após Maio de 1968, e que se desenvolveu nos marcos da Revolução Socialista Mundial, em curso após 1917.
De coletividade anticapitalista, não de brilho individual
Junho, portanto, compõe a nossa memória como um levante coletivo para além de nós LGBTI+, mas dos povos oprimidos e explorados de todo o mundo, pois esse é o contexto da sua irrupção.
Da década de 1980 em diante, o capitalismo se tornou aparentemente compatível com a homossexualidade e gêneros variados. Especialmente nas duas primeiras décadas dos anos 2000, emergiu internacionalmente uma política sexual capitalista moderna, que assimila arranjos familiares homoafetivos e aceita formas dissidentes do binarismo de gênero. Isso ocorre principalmente no mercado, de modo individual, onde a visibilidade LGBTI+ alcançou patamares inéditos, ocupados especialmente por homens cisgêneros gays brancos, heteronormativos, de classe média e de países centrais do capitalismo. É assim na indústria fonográfica, no cinema e no mercado da moda, para citar alguns exemplos.
Ao invés de libertação, o neoliberalismo manteve altos níveis de repressão sexual. E para frear as demandas sexuais, a burguesia aplicou um programa de “reinvenção das necessidades”, com foco na atuação do mercado sobre indivíduos, ofuscando as estruturas repressivas por meio da reificação da sexualidade e do desejo, além da fetichização de identidades.
No neoliberalismo, exige-se polivalência dos trabalhadores, colocando-os a se dedicarem cada vez mais ao trabalho, o que, em dinâmica, impede a possibilidade de descanso. Na lógica neoliberal, o tempo é cada vez mais consumido pelo trabalho estranhado.
Somos, cada vez mais, uma geração do mais trabalho e menos sexo. Hoje em dia, fala-se sobre e vê-se muito mais sexo do que há 50 anos. Mas, a despeito da grande oferta de possibilidades para encontros sexuais, como as promovidas por aplicativos de relacionamento, os jovens de hoje têm feito menos sexo que os da geração dos seus pais (6).
Dois problemas, um programa
Temos dois grandes problemas estratégicos a enfrentar.
Por um lado, é necessário arrancar do Estado a proteção social e os direitos que nos são devidos. Chega de violências, exclusão do mercado de trabalho, da educação ou a invisibilização na saúde. Queremos, além do direito ao casamento, a proteção necessária para vivermos e sermos felizes nessa sociedade tão hostil a nós. Lembramos que o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas LGBTI+ em todo o mundo e a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos.
Além disso, é chegada a hora de resgatar uma política sexual proletária, que tensione as relações sociais de gênero e sexualidade do conjunto da sociedade, que enfrente a repressão sexual simulada de ampla liberdade, que exija condições concretas, segurança e autonomia para a livre experiência da nossa sexualidade, com tempo livre e de qualidade.
E essas duas coisas nos marcos do enfrentamento ao recrudescimento de iniciativas de extrema direita conservadoras, como Bolsonaro, que se apoiam na LGBTIfobia para sua estratégia autoritária.
O sentido é luta e resistência
Em todas as últimas manifestações e lutas no Brasil, nós estivemos lá. Com nossas bandeiras coloridas, nós LGBTI+ somos parte da vanguarda da resistência brasileira. Depois de um tempo desarticulados, não é chegada a hora de voltar a termos iniciativa própria, com ações e manifestações convocadas por nossos grupos, com o protagonismo das nossas cores?
Arrisco dizer que sim.
*Militante da Resistência/PSOL
Comentários