Quando os adultos tomam decisões, eles devem pensar em como suas decisões afetarão as crianças. Todos os adultos devem fazer o que é melhor para as crianças. Os governos devem garantir que as crianças sejam protegidas e cuidadas pelos pais, ou por outras pessoas quando isso for necessário. Os governos devem garantir que as pessoas e os locais responsáveis por cuidar das crianças estejam fazendo um bom trabalho.
Convenção Internacional dos Direitos da Criança
Há violação dos direitos quando a máscara facial de uma criança é retirada
Aprendemos na literatura marxista que homens e mulheres, crianças e adolescentes, para fazer história, para poder viver, precisam antes de tudo comer, vestir, ter habitação, ter roupas apropriadas e outras coisas mais, como o acesso à escola, os cuidados familiares e, nesse momento de pandemia, sobretudo se precisam sair de casa e em casos inevitáveis de aglomeração, a utilização dos meios de proteção individual, como as máscaras faciais. Mas tudo isso tem sido dificultado, não apenas pelos efeitos econômicos da crise sanitária, mas pelo negacionismo e pela incapacidade de determinadas gestões governamentais no atual contexto.
Ultimamente, têm sido realizadas muitas análises científicas e reflexões políticas em publicações de artigos, em debates de telejornais e na infinidade de lives que são promovidas. E nelas, são enfatizadas, além da negligência dos governos com amplos segmentos populacionais, na mais grave crise sanitária do século XXI, as perniciosas relações entre políticos e criminosos envolvidos com milícias, o flerte explícito de pessoas ligadas aos governos com ideais fascistas, a crítica à entrega do patrimônio público aos setores que só visam os lucros e o desrespeito às diferenças. Porém, depois de o presidente da República, em cumprimento de agenda política no estado do Rio Grande do Norte, em plena pandemia, retirar a máscara facial de um menino potiguar, na cidade de Pau dos Ferros, e, em uma atividade em Jucurutu, pedir para uma menina retirar a máscara antes de declamar uns versos, Bolsonaro não tem mais como esconder a face genocida de seu governo. Além de violar direitos humanos, ao desproteger essas crianças, e de colocar uma nação inteira em risco, por ação e omissão, o impeachment precisa entrar em pauta com urgência. E se muitos de nós ainda estamos céticos, diante da blindagem de Bolsonaro, a indignação e a revolta com tal atitude devem servir para nos mobilizar politicamente.
Definitivamente, estou convencido, por influência de valorosas companheiras da militância na área da infância, de que não devemos ficar calados ao se deparar como mais um abuso de poder. Nossa tarefa é a de preservar vidas e denunciar não apenas as violações dos direitos de crianças e adolescentes. Nessa situação, o presidente da República infringiu os dispositivos da Convenção Sobre os Direitos das Crianças (um dos instrumentos de direitos humanos mais conhecidos no mundo, ratificado por 196 países); negou as recomendações de especialistas do Sistema Único de Saúde (como a adoção de máscara facial como medida de proteção ao contágio do novo coronavírus) e atropelou a redação do ECA, em seu art. 7º e 5º, que preconizam respectivamente que: “a criança e o adolescente têm o direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” ou que nenhuma delas será objeto de “qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
A autoridade máxima do país, que deveria servir de exemplo, vem negando a adoção dos protocolos preventivos e ao retirar a máscara facial, num total desrespeito à criança e passando por cima das precauções adotadas pela família, lança mão de expedientes autoritários que demonstram práticas adultocêntricas presentes não apenas em suas ações, mas no conjunto de relações sociais e que os defensores do ECA, ao longo das três últimas décadas, vem tentando superar.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SPB), pautada em resultados científicos, vem produzindo materiais importantes de orientação à população e fez uma corajosa moção de repúdio (que de certa forma também questiona alguns posicionamentos Conselho Federal de Medicina) recomendando que as autoridades precisam agir de forma consciente, principalmente em espaços públicos, sobretudo porque seu comportamento tem repercussão junto à população. Atitudes lamentáveis, como as presenciadas no episódio do Rio Grande do Norte, não são pontuais e contribuem para confundir a população e agravar a crise sanitária do país, que recentemente ultrapassou 513 mil mortes por Covid.
Sabemos das dificuldades e do ataques que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) vem atravessando, por uma correlação de forças desfavorável, porém os Conselhos de Direitos, estaduais e municipais, os centros de defesa, as associações de conselheiros e conselheiras tutelares, os conselhos profissionais, os sindicatos, as universidades e todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes devem mostrar a sua força e se manifestar cobrando das autoridades competentes as providências legais.
Crianças e adolescentes: sujeitos de direitos
No dia 13 de julho de 2021, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completará 31 anos e, em meio à crise sanitária mais grave deste século, temos pouco a comemorar. As desigualdades sociais e o racismo continuam a se expressar de várias maneiras, por meio de operações policiais que matam inocentes em territórios populares; pela fome que atinge os segmentos pauperizados da classe trabalhadora; pela alteração do valor e da abrangência do auxílio emergencial que destituiu os segmentos populacionais dos direitos de cidadania e os tornaram alvos de ações de solidariedade da sociedade civil; pela suspensão da merenda escolar, em vários municípios, mesmo com a manutenção do ensino remoto; pela exposição precoce de estudantes, profissionais de educação e familiares com a retomada do ensino presencial e pelos reduzidos os orçamentos das políticas sociais que influenciam em medidas de prevenção à tortura, à exploração do trabalho infantil, à violência física ou sexual dentre outras violações de direitos humanos.
O adultocentrismo está baseado numa espécie de consentimento social implícito, muito presente na cultura familiar brasileira, que subjuga e oprime crianças e adolescentes e é reiterado subjetivamente e por práticas violentas
Mesmo antes da promulgação do ECA, em 1990, profissionais, especialistas e militantes da área já problematizavam, dentre outras coisas, o adultocentrismo, ou seja, a centralidade do “poder dos adultos” e os seus privilégios na socialização dos segmentos infantis e adolescentes. O adultocentrismo está baseado numa espécie de consentimento social implícito, muito presente na cultura familiar brasileira, que subjuga e oprime crianças e adolescentes e é reiterado subjetivamente e por práticas violentas advindas desde o processo de acumulação primitiva, passando pelo cristianismo, pelo processo de escravização e da sociedade patriarcal. Termina por justificar o injustificável, uma concepção conservadora de educação que visa perpetuar a intolerância e as ações violentas de homens e de mulheres no trato cotidiano de crianças e adolescentes, muitas vezes vistas como “menores”, “menos importantes”, “meros objetos” e não sujeitos de direitos.
Cabe ressaltar que, ao contrário do que se ouve nos programas sensacionalistas ou nos discursos de quem desconhece a filosofia subjacente à lei, devemos levar em consideração, na interpretação do ECA, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar de crianças e do adolescentes como pessoas em desenvolvimento. Outro aspecto a ser mencionado é que as mudanças promovidas ao longo desses anos não foram feitas para acabar com o poder dos pais, das mães, dos professores ou tampouco enfraquecer a autoridade socialmente conferida ao “chefe de família”, mas para proteger e, em linhas gerais, questionar uma sociedade desigual e antidemocrática, calcada em relações profundamente hierarquizadas, bem como problematizar atitudes autoritárias dos adultos e “práticas educativas” supostamente inofensivas que banalizam o papel do cuidado, naturalizam e disseminam comportamentos violentos (é importante atentar para as contradições das mudanças operadas na lei, no período pós-golpe de 2016).
É de conhecimento de todas as pessoas que trabalham na área da infância, com exceção daqueles segmentos que buscam a manutenção dos seus interesses individualistas, sob o falso discurso da democracia, que o governo utraneoliberal de Jair Bolsonaro é contrário aos pressupostos do ECA e vem implementando ataques sistemáticos às políticas de saúde, educação e assistência social. Além de deixar de imunizar, mais da metade da população brasileira, algo fundamental para garantir, por exemplo, a retomada das aulas de maneira segura, os membros e apoiadores do governo federal contribuíram para uma confusão organizada ao disseminar, por meio de redes sociais virtuais, as chamadas fake news e ao promover uma ação seletiva perversa, uma espécie de darwinismo social, onde somente os mais fortes, do ponto de vista físico e biológico, poderiam sair vivos. Submeter crianças e adolescentes a esses riscos e deixar a população desprotegida propositalmente são indícios de práticas criminosas.
Diante da negação das medidas de prevenção e contenção do avanço da pandemia da Covid-19, como, por exemplo, evitar aglomeração, garantir o distanciamento físico, o uso de máscaras faciais e a higienização das mãos, as discussões políticas aumentaram, nas últimas semanas, com a CPI da Covid-19 e a constatação de que o governo colocou em descrédito a eficácia da vacinação, se omitiu em relação à compra de vacinas ofertadas com exclusividade, orientou a sua ação para produzir uma suposta “imunidade de rebanho”, disseminada por uma ampla rede de desinformação que apregoou mentiras como a efetividade do “tratamento precoce”. O trabalho da CPI já reúne indícios e provas que demonstram a incapacidade governamental para enfrentar a crise sanitária, algo que coloca em xeque a credibilidade do chefe do Poder Executivo Federal. E se ainda havia alguma dúvida, para pessoas “masoquistas” que relutam em enxergar o óbvio, a máscara do presidente começou a cair.
Por fim, “quem é você? Adivinha se gosta de mim…”
Parece que não gostam de nós, mas nós vamos resistir, e então, que busquemos inspiração nas canções de Chico Buarque e façamos uma grande “marcha dos mascarados”, algo que se some à luta contra o ambiente tenebroso instaurado com a política omissa e genocida de Jair Bolsonaro que, como presidente, tem se mostrado muito mais nocivo ao país do que a existência do novo coronavírus. Nesse sentido, para proteger crianças e adolescentes é fundamental fortalecer as recomendações dos especialistas em saúde para prevenção do contágio e as campanhas em defesa da vacina no braço e de comida no prato. E é tarefa de todas as pessoas que defendem o ECA se engajarem nas mobilizações em defesa da vida e pelo impeachment. Fora Bolsonaro!
Paródia da Noite dos Mascarados
Rodrigo Lima
Quem é você?
Que retira essa máscara assim
Presidente é um irresponsável
Se tivesse dignidade
Anunciava o seu fim
Quem é você? Bolsonaro
Um autoritário imaturo
Não quero morrer no seu governo
Nem quero ouvir destempero
Flerta com fascismo, genocida, um horror
O meu tempo inteiro tristeza e dor
Na minha lembrança
Bozo era um palhaço
Havia esperança
No riso e no abraço
Mas o ex militar que não tem compaixão
Viola os direitos, causa confusão
O Brasil inteiro
Quer a proteção
Pra todas as crianças
De nossa nação
Mas é pandemia e já sei muito bem de você
Até tudo voltar ao normal
A vacina é pra já
Máscara pra proteger
Não pode confiar
Nesse governo
Como você outrora aprendeu
O ECA ele feriu, extrapolou!
Isso tem que acabar
Nós queremos viver
Nós temos que lutar
Para vencer você!
*Rodrigo Lima é educador social, assistente social, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro associado do CEDECA Rio e coordenador do NUDISS UFF.
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