Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?”
(Carlos Drummond de Andrade)
Manifestantes nas ruas de Praga em confronto com o exército soviético
Dizem que o ano de 1968 é um ano que não acabou. Claro que essa referência não é cronológica e sim política. Este foi o ano que ficou conhecido como aquele que abalou o mundo, com acontecimentos políticos, sociais e culturais que mudaram a história do século XX.
Mas, assim como foi o ano de muitas lutas e revoluções, também foi de muitas derrotas, e por isso “não terminou”, já que adiou as esperanças de mudanças revolucionárias, “do povo no poder”, como no Maio francês, na Primavera de Praga, nos levantes pelos direitos civis nos EUA, no assassinato de Martin Luther King, na ofensiva americana no Vietnã (como o massacre de 504 civis em My Lay), no massacre de estudantes em Tatlelolco, (1) no México, e na luta contra a ditadura no Brasil.
Antes da passeata: aumento das lutas operárias e estudantis
No Brasil, desde o golpe militar de 1964, havia lutas de estudantes e trabalhadores contra a ditadura, principalmente contra a crescente escalada de repressão às manifestações organizadas por estudantes, intelectuais e operários.
No dia 28 de março, os estudantes organizaram uma manifestação contra a elevação dos preços das refeições no Restaurante Calabouço. O local foi invadido pela tropa da PM, e o secundarista Edson Luís de Lima Souto, foi assassinado com um tiro à queima-roupa, no peito.
Esse fato foi o estopim que comoveu todo o País. As manifestações contra a morte de Edson Luís se intensificaram e a repressão às mobilizações também. No dia 4 de abril, durante a missa de 7º dia de Edson Luís, soldados a cavalo investiram contra a multidão que acompanhava a missa fora da Igreja da Candelária.
O movimento estudantil seguiu com as mobilizações, e em junho as manifestações se intensificaram, e a partir de maio já contavam com a adesão de outros setores de trabalhadores da cidade. No dia 18, uma passeata, que terminou no Palácio da Cultura (antiga sede do MEC no Rio), resultou na prisão do líder estudantil, Jean Marc von der Weid. No dia 19, enquanto os estudantes se reuniam na UFRJ para organizar novos protestos e pedir a libertação dos estudantes presos no dia anterior, a universidade foi invadida e 300 estudantes foram presos.
No dia 21 de junho, foi realizada nova manifestação estudantil em frente à sede do Jornal do Brasil que foi duramente reprimida, terminou com três mortos, segundo dados oficiais, mas os hospitais do Rio relataram 40 mortes, dezenas de feridos e mais de mil prisões. Este dia ficou conhecido como “Sexta-feira sangrenta“.
Em 22 de abril os metalúrgicos de Contagem (MG) entram em greve pedindo um aumento de 25% nos salários. A paralisação envolveu cerca de 7 mil metalúrgicos, e foi a primeira greve de trabalhadores desde o golpe militar de 1964. Depois de três dias de greve os operários voltaram ao trabalho, ameaçados pela Lei de Segurança Nacional, e conseguiram um aumento de 10% nos salários, abrindo uma brecha na política salarial da ditadura de aumento zero.
Com a repercussão negativa da violenta repressão militar à manifestação do dia 21, a ditadura foi obrigada a permitir a passeata convocada pelos estudantes no dia 26 de junho.
A passeata do dia 26 leva 100 mil às ruas contra a ditadura
Vladimir Palmeira discursa na Candelária (RJ) para 100 mil pessoas
A manifestação foi convocada para a Cinelândia, no Centro do Rio, até hoje o local onde terminam ou começam a maioria das mobilizações na cidade. Às 14h, 50 mil pessoas participavam da passeata. Uma hora depois, já eram 100 mil.
Tendo a frente uma faixa com os dizeres: “Abaixo a Ditadura. O Povo no poder”, estudantes, artistas, intelectuais, políticos e muitas pessoas da população se juntaram à passeata, fazendo com que esta fosse uma das maiores manifestações populares contra a Ditadura, e da República brasileira, até aquela data.
A organização e o comando geral da marcha couberam à cúpula estudantil centralizada em Vladimir Palmeira e assessorada pelos comandos de intelectuais, de religiosos, de trabalhadores e de mães. Cada categoria contava com um chefe-geral e era dividida em setores. Por exemplo, os intelectuais — liderados pelo psicanalista Hélio Pelegrino — dividiam-se em setores de artes plásticas, cinema, teatro, música e jornalismo, cada um com seu respectivo chefe; o clero tinha um chefe para os lazaristas, um para os dominicanos, um para os jesuítas etc. As várias faculdades de uma mesma universidade obedeciam a um superior. Por sua vez, cada setor dividia-se nos chamados “grupos dos dez”, copiados dos estudantes franceses.( http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/passeata-dos-cem-mil)
Freiras católicas durante a passeata dos 100 mil
A marcha durou mais de três horas e fechou o centro do Rio durante todo o dia. Durante a passeata se ouviam palavras de ordem como “Abaixo a Ditadura”, “Só o povo armado derruba a Ditadura”, “Libertem nossos presos” e muitos outros. Um fato interessante é que durante a passeata, os comerciantes do centro começaram a fechar suas lojas com medo de depredação. Imediatamente os estudantes começaram a pedir: “Abram suas portas; quem quebra é a polícia”. Muitos comerciantes atenderam aos apelos, e eram saudados com aplausos pela passeata. Não se tem notícia de qualquer incidente neste dia.
Depois da passeata: aumento da repressão e promulgação do AI-5
Metalúrgicos de Osasco (SP) são reprimidos pela ditadura
Alguns dias depois, pressionado pela força da gigantesca manifestação do dia 26, e intermediada pela igreja católica, o general presidente Costa e Silva marcou uma reunião com os representantes da passeata para o dia 2 de julho, que levaram as seguintes reivindicações do movimento: libertação dos estudantes e trabalhadores presos, fim da censura e a volta das liberdades democráticas. O ditador não aceitou nenhuma das reivindicações e outra passeata foi realizada uma semana depois, reunindo 50 mil pessoas.
Embora o Rio de Janeiro fosse o centro das mobilizações daquele ano, nos outros estados também aconteciam muitos protestos estudantis, e o nível de mobilização e organização dos estudantes crescia. Mas, na medida em que aumentavam as mobilizações contra a ditadura, também crescia a repressão militar:
– No dia 2 de agosto, Vladimir Palmeira foi preso e em seguida 650 estudantes foram presos;
– Em Goiás, quatro estudantes foram baleados pela polícia durante uma manifestação;
– Em São Paulo, 300 alunos são detidos no dia 4 de agosto;
– Em 5 de julho, a ditadura lança um decreto proibindo qualquer tipo de manifestação no País;
– Em meados de julho começa a greve dos operários de Osasco (SP). Três mil metalúrgicos entram em greve e ocupam as fábricas. Para derrotar o movimento o sindicato sofre intervenção, 60 grevistas são presos e mais de 600 operários são demitidos depois que a greve é suspensa, sem que os trabalhadores vejam suas reivindicações atendidas;
– Em 21 de agosto, o Congresso rejeitou o projeto que daria anistia aos estudantes e operários presos;
– Em 30 de agosto a Universidade Federal de Minas Gerais é fechada pela polícia e a Universidade de Brasília é invadida pela PM;
– No dia 2 de outubro, depois de um mês de setembro com poucas mobilizações, os alunos da Faculdade de Filosofia da USP entra em choque com os estudantes da Universidade Mackenzie, dirigidos por membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A luta entre as duas universidades durou dois dias e terminou com a morte do secundarista José Guimarães, por balas disparadas do prédio do Mackenzie;
– Em 12 de outubro, mais de 700 estudantes foram detidos em Ibiúna (SP) tentando realizar de forma clandestina o congresso da UNE. Entre os estudantes presos estavam as principais lideranças do movimento — Vladimir Palmeira (libertado no Rio pouco antes), José Dirceu, Luís Travassos, Franklin Martins e Jean Marc Van Der Weid, que foram condenados pelo regime militar a vários meses de prisão.
– Em 22 e 23 de outubro ocorrem novas manifestações no Rio de Janeiro, e pelo menos um estudante e dois operários são mortos.
As lutas estudantis prosseguiram até dezembro de 1968, mas já no marco de um refluxo depois que o Congresso da UNE foi impedido de se realizar e que as principais lideranças do movimento se encontravam presas.
No dia 13 de dezembro de 1968 o governo militar decreta o AI-5 (Ato Institucional nº 5), que acaba com todo e qualquer traço de democracia que ainda existia no País. Após o AI-5, em fevereiro de 1969, surge o Decreto-Lei 477 que proibia qualquer tipo de manifestação política dentro das universidades brasileiras.
Os estudantes e trabalhadores só retomariam as mobilizações a partir de 1977, pedindo a liberdade dos presos políticos, a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita (1979), até que em 1984 gigantescas manifestações tomam conta de todo o País (no Rio um comício na Candelária reúne 1 milhão de pessoas), exigindo o fim da ditadura que cai finalmente em 1985, através da eleição indireta de Tancredo Neves no Congresso Nacional.
NOTAS
1 – Massacre de Tlatelolco (México) Apenas dez dias antes dos Jogos Olímpicos do México um protesto de estudantes em Tlatelolco, no centro da capital do país, foi brutalmente reprimido pelo Exército mexicano. O presidente Gustavo Díaz Ordaz Bolaños buscava sufocar o movimento estudantil — acusado por ele de influência externa comunista — antes da abertura do evento. Os jovens pediam mais liberdades civis e a punição de casos de repressão policial. Até hoje, o número de mortos no massacre é incerto. O número oficial 40 mortos é questionado: algumas fontes falam em mais de mil mortes na noite de 2 de outubro de 1968. (Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2018/01/04/nos-50-anos-de-1968-relembre-11-fatos-que-abalaram-o-mundo)
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