Publicado originalmente em Sinditest-PR
Após ter a sua admissibilidade aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJC), a PEC 32 da Reforma Administrativa avançou agora para a fase da Comissão Especial. Formada por 68 parlamentares, com titulares e suplentes em igual número, a Comissão será presidida pelo deputado Fernando Monteiro (PP-PE) e terá como relator o deputado Arthur Maia (DEM-BA). Os dois políticos são do Centrão, agrupamento fisiológico que tem sido base de sustentação de distintos e sucessivos governos, e hoje integra a base do governo Bolsonaro (Sem Partido).
O Regimento prevê a realização de pelo menos quarenta sessões para que seja emitido o parecer sobre a Reforma Administrativa. Já o prazo para apresentação de emendas será de dez sessões, sendo que uma emenda precisa da assinatura de pelo menos 171 deputados, ou seja, um terço dos parlamentares. Na impossibilidade de que essas sessões sejam presenciais, soa como um verdadeiro deboche que a Câmara continue a realizar uma reforma de tamanha envergadura sem participação popular e debates públicos.
Cumprida a fase da Comissão Especial, o texto poderá ir a voto no plenário da Câmara, em dois turnos, que exigem 308 votos dos 513 deputados, o equivalente a três quintos.
Os (des)caminhos da Reforma Administrativa
A atual onda de reformas do estado que estamos vivenciando corresponde a um novo momento do processo de crise e reprodução do capital, aberto com a crise econômica de 2008. As reformas atuais têm o desmonte do serviço público como centro e as instituições multilaterais como as principais elaboradoras, particularmente o Banco Mundial.
Nesse sentido diferem, em alguma medida, das reformas propostas e aprovadas na década de 1990, que afetaram principalmente a infraestrutura do Estado, por meio das privatizações, e iniciaram o processo de flexibilização da legislação trabalhista e previdenciária.
No entanto, foi a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que deu o pontapé inicial para o desmonte das conquistas sociais da Constituição de 1988, atingindo fortemente os serviços públicos, principalmente com a abertura para atuação das Organizações Sociais (OSs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), a quebra da exclusividade do Estado na prestação de alguns serviços, a abertura para terceirizações e a desregulamentação do Regime Jurídico Único (RJU) dos servidores públicos.
As reformas que vêm ocorrendo no Brasil seguem uma orientação internacional: a limitação dos gastos públicos, a execução de contratos de gestão com o setor privado, a quebra de direitos individuais e coletivos dos servidores, como previu, recentemente, a mal chamada PEC Emergencial.
A retomada, com muita força, dessas contrarreformas, se deu com os governos Temer e Bolsonaro, no momento em que as elites econômicas e políticas brasileiras já não aceitaram sequer o reformismo fraco dos governos petistas e lançaram mão de um golpe parlamentar para desalojar a chefe do Executivo e poder implementar, com mais agilidade, as políticas econômicas exigidas pelo mercado.
Como já comentamos em outro artigo dessa série, a PEC 32 reproduz experiências de reformas administrativas aplicadas em outros países, como é o caso de Portugal, que teve na reforma da administração pública um elemento central para superar a crise fiscal da primeira década dos anos 2000.
No país lusitano a reforma teve como aspectos fundamentais o enxugamento das carreiras, a aplicação da regra 2 por 1 nas aposentadorias e contratações – somente um novo contratado para cada dois servidores aposentados – e restrições orçamentárias semelhantes à PEC do fim do mundo (EC 95). Na Espanha, o centro do ajuste foi na saúde pública, com a cessão de equipamentos públicos, parcerias público-privadas e outorga de gestão de equipamentos. Já na França e Grã-Bretanha adotou-se o mecanismo da entrada lateral no serviço público, para cargos mais altos na carreira, semelhante aos cargos de liderança e assessoramento propostos na PEC 32.
O texto que vai à discussão na Comissão Especial da Reforma Administrativa mantém a essência da proposta original. Propõe uma reconfiguração ampla do serviço público, com o fim do RJU; a sua substituição por novos vínculos; a quebra do concurso como entrada no serviço público; a quebra da estabilidade e o fim do estágio probatório; a utilização da avaliação de desempenho como mecanismo de punição e demissão de servidores.
Para a carreira, flexibiliza as regras legislativas para sua alteração e impõe o fim de direitos, como as gratificações e promoção decorrentes de tempo de serviço.
É uma reforma que tem a marca do autoritarismo, com a possibilidade de militarização das escolas e postos de saúde; o desrespeito às comunidades escolares na escolha de diretores e reitores; mudanças por decreto ou lei ordinária de direitos assegurados aos servidores; a exclusividade de ocupação de funções gratificadas e comissionadas pelos cargos de liderança e assessoramento; a avaliação de desempenho discricionária, realizada pela chefia imediata, escolhida por indicação política; e a possibilidade da substituição de grevistas pelos gestores, durante movimentos reivindicatórios, dentre outras mudanças.
A PEC 32 traz, ainda, embutida no corpo do texto, uma minirreforma trabalhista nas empresas estatais, com a extinção de inúmeros direitos e a proibição de cláusula de estabilidade nos acordos e convenções coletivas de categorias profissionais. Impõe ainda, uma alteração arbitrária dos regimes previdenciários dos servidores públicos, que poderá gerar, a médio e longo prazo, o desequilíbrio atuarial nos fundos próprios das categorias.
A reforma não ataca privilégios, mantem a exclusão dos setores que gozam de vantagens (salários acima do teto constitucional, férias em dobro, auxílio moradia etc.) dos seus efeitos e beneficia a entrada por apadrinhamento no serviço público. Afeta, essencialmente, a grande maioria dos servidores de carreira, que não gozam dos privilégios que a grande mídia insiste em alardear.
Essa síntese do relatório encaminhado à Comissão Especial não deixa dúvidas: é absolutamente regressivo o caráter dessa reforma proposta e, por isso, temos a necessidade de uma ampla unidade do funcionalismo público para evitar esses retrocessos.
No mesmo sentido, é urgente incrementar o debate com a sociedade, visando dar o entendimento da real medida que a reforma traz, diminuindo a atuação estatal na oferta de direitos sociais básicos à nossa população, particularmente os segmentos mais pobres e vulneráveis.
*Cacau Pereira é advogado com Especialização em Direito Público, Mestre em Educação e pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps).
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