Quem já não ouviu da boca do povo que brasileiro é um povo passivo, aceita tudo, não luta pelos seus direitos? Pois é, é mito. E esse mito foi criado pelas classes dominantes e propagado pelo senso comum em base ao que o olhar médio consegue alcançar. Mas esse olhar é direcionado, cerceado, vendado e construído. Brasileiros e brasileiras nunca foram passivos, nunca aceitaram calados e sentados as injustiças seculares infligidas à eles e elas. Se o francês, “por qualquer coisa queima um carro”, no Brasil, por qualquer manifestação nos arrancam os olhos, nos atiram na cabeça, nos jogam de viadutos, nos atropelam, nos fuzilam e nos massacram o crânio. Os que sobrevivem à truculência do Estado é para aprender que no Brasil, povo calado é o que se exige.
Passando os olhos pelas manifestações do dia 29 de maio de 2021, uma coisa é certa: sair para dizer “Chega”, no meio de uma pandemia e de um governo dos mais letais desse planeta, não é para qualquer povo. Pego emprestadas as palavras de Rosa Maria Cardoso, jurista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro no livro “Ninguém pode se calar”, obra que contém o depoimento do jornalista Pinheiro Salles, preso e torturado brutalmente por nove anos nos porões da ditadura militar.
Nossa história oficial, que insiste na índole pacifica e submissa do povo brasileiro, onde a escravidão, por exemplo, teria sido uma servidão voluntaria e amorosa, terá que abrir suas aspas, como fez para a Inconfidência Mineira, a fim de reconhecer que houve uma heroica oposição. A resistência veio de representantes do povo. Tanto dos que tinham boca para alimentar, mas as deixaram nas mãos da mulher ou parentes fosse no campo ou nas fabricas, como daqueles que abandonaram seus privilégios de classe média para agir em nome dos 90% que viviam na pobreza e na miséria. Os que participaram da luta armada foram representantes do povo, não das elites.
De onde vem a crença de que somos um povo passivo, se o Brasil é o quarto país que mais mata militantes de direitos humanos? Só em 2019 foram 23 ativistas assassinados segundo o relatório anual da Organização Frontline Defenders. O mito é cômodo para a burguesia escravocrata brasileira que se perpetua no poder há séculos, pois, um povo consciente da sua força pode derrubá-la, logo, qualquer manifestação de revolta, indignação, organização popular, deve ser impedida. Até mesmo o sentimento de que estamos lutando deve ser substituído por aquele de que “só estamos olhando”.
O povo foi para as ruas pelas “Diretas já” e o que fez os empresários da mídia? Escondeu do país o desejo e a resistência para forjar um consenso em torno da ditadura. O povo foi às ruas contra a ditadura da direita. E o que fez a mídia? Escondeu cada prisão, mortes, assassinatos e apagou os rastros de pessoas da história. O povo foi às ruas contra o golpe dentro da democracia em 2016. E o que fez a mídia corporativa? Se plantou na avenida paulista às 8 horas da manhã de domingo chamando a classe média branca para o ato em nome da “democracia”. Sim, a Rede Globo fez isso e durante todo o dia foi ela, a militante da burguesia sádica quem incitava o sentimento daquela parcela alienada da população que, orgulhosa de diplomas nas mãos, só conhece Disneylândia, nomes das grandes marcas de roupas e toma como verdade tudo o que ouve da classe dominante. Nos mesmos dias, o povo encheu o Largo do Batata, em São Paulo e outras capitais, com o grito horrorizado de um golpe deslavado e nenhuma nota nos grandes meios de comunicação foi dada. Nenhuma reforma neoliberal passou sem protesto, mas o capitalismo, através de suas instituições cria a ideia de que temos consenso. Sem violência não há capitalismo.
O povo vai às ruas constantemente contra a precarização da educação e é recebido por balas e gás lacrimogênio, quando não perde o olho, um pedaço de carne, porque é assim que o povo brasileiro. E em cada canto desse país tem revolta, os povos indígenas estão protestando, se organizando, os moradores das favelas, a cada morte, desce o morro com cartazes, com seus corpos pretos pedindo justiça num país surdo que tenta invisibilizá-los. Somos um país com diversos movimentos sociais populares, coletivos, fóruns etc., mas o que os ricos escolhem ressaltar é o país do futebol, do samba e do silêncio. O campo não tem paz, cada dia um lutador morre assassinado e outros surgem para continuar a luta.
Quando João Alberto foi brutalmente espancado e assassinado em um supermercado da rede Carrefour o povo foi para a porta do estabelecimento pedir justiça. E o que fizeram com o evento? Transformaram-no num bando de gente à toa que quebra vidraças de empresários bondosos que dão emprego, a quem povo deveria ser grato.
E voltamos ao 29 de maio de 2021. Que dia! Que dia! Em cada canto desse país o povo lotou as ruas, com aquele grito que nunca saiu do peito e que a cada injustiça se renova exigindo “Fora Bolsonaro”, para dar fim à política de extermínio do povo brasileiro. Em Pernambuco, dois homens foram atingidos nos olhos e um deles ficou cego, em Trindade, um professor, Arquidones Bites, foi preso por portar em seu carro uma faixa com a escrita “Bolsonaro Genocida”. Em São Paulo, O arquiteto e ativista Luiz Felipe Bernardes dos Santos, conhecido como Macalé, de 36 anos foi encontrado morto pela PM na noite sucessiva à manifestação, com a explicação duvidosa de que cometera suicídio. Quem manifesta de dia ainda guarda em si um mundo de esperança e dificilmente tiraria a própria vida na calada da noite. Brasil, não somos ingênuos!
O povo brasileiro é um povo guerreiro, que renasce das cinzas, que resiste, que reinventa, mas é também um dos povos mais maltratados do planeta pela sua burguesia canalha e pelo imperialismo encabeçado pelos Estados Unidos.
O problema do povo brasileiro não é a ausência de luta, mas a impunidade no país, são as carteiradas de juízes, o conluio da classe dirigente para manter os próprios privilégios e dos seus descendentes, como a frase do atual presidente “Se eu puder dar o filé mignon para meu filho eu vou dar”. É o capitalismo na sua versão mais selvagem, como aquele da Vale em Minas Gerais, que só deixou crateras, mortos e destruição por onde passou. O povo brasileiro é um povo guerreiro, que renasce das cinzas, que resiste, que reinventa, mas é também um dos povos mais maltratados do planeta pela sua burguesia canalha e pelo imperialismo encabeçado pelos Estados Unidos. Essa burguesia tem as mãos que rouba dentro do país, enquanto gasta lá fora a riqueza tirada do povo. 29 de maio provou que não temos medo de morrer quando é com a morte que estamos lidando diariamente, e ela senta na cadeira do Palácio do Planalto.
A mídia escondeu do povo o que foi aquele dia de luta, assim como escondeu todas as revoltas e revoluções que esse país já viveu. O povo brasileiro foi construído como passivo, mas o povo brasileiro, aquele da realidade, que acorda cedo, que lota os transportes públicos na pandemia e se autodisciplina para não morrer, se faz presente todos os dias. Ah se a burguesia perder o controle sobre a representação do que somos e o povo puder mostrar a sua força para aquela parcela que ainda dorme, não por maldade, mas por acreditar que está todo mundo dormindo também!
*Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia pela Unicamp.
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