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CULTURA

Laerte, 70 anos de liberdade

de Lucas Brito*, de Belo Horizonte, MG

Hoje (10) uma das maiores cartunistas e quadrinistas brasileiras faz 70 anos. Laerte Coutinho tem uma vasta obra ligada aos principais acontecimentos políticos e sociais das últimas décadas neste país. Por meio de seus personagens, ora engraçados, ora monstruosos – e na junção entre a graça e o grotesco – Laerte contou e denunciou o Brasil.

Sinistra, engraçada, mordaz, provocante, peralta, paulistana, reveladora. A obra de Laerte cutuca as feridas abertas pelas desigualdades, violências, opressões, hipocrisias moralistas, caretices e tudo o que há de ruim e cafona por aí.

Charge publicada pela Folha de S. Paulo, em 07/02/2021, após Laerte retornar ao jornal, tendo se recuperado da covid-19

Em plena ditadura, Laerte protestou em desenhos contra os carcereiros da liberdade. Para derrotá-los, apostou no amor e na luta. Laerte fez cartões para o exilados, juntou-se ao movimento operário do ABC em sua luta para derrubar o regime, desenhou o João Ferrador, e fundou a Oboré, agência especializada em comunicação sindical – até hoje, todo sindicato tem a cartilha Ilustração Sindical, da Laerte, no fundo de alguma gaveta. (senão, pode fazer o download aqui)

Nos anos 1980, Laerte fez parte da geração que transformou os quadrinhos nacionais, com revistas como a Chiclete com Banana, Circo, Geraldão, Piratas do Tietê (editada por ele), que publicavam desenhos e histórias de Laerte, Glauco, Paulo Caruso e Luis Gê, com quem havia feito a revista Balão, ainda como estudante de comunicação na USP, nos anos 1970. Essa formação reuniu tantos talentos (em um universo quase totalmente masculino, infelizmente), ainda na influência dos quadrinhos underground norte-americano, que riscavam a urgência dos anos 1980 pós-ditadura nos muros e becos da noite paulistana, revelando a vida urbana e suas tribos e também a história de São Paulo, com piratas e bandeirantes.

Laerte seguiu produzindo quadrinhos, charge, cartum. Desenhou para revistas, fez tiras e para a Folha de S. Paulo, onde colabora até hoje, fez humor e TV. Fez literatura infantil. Recentemente, retomando a parceria com Angeli, promoveu a Baiacu, um projeto que reuniu 10 artistas em uma casa, por duas semanas, com liberdade total. O resultado foi um livro experimental, que transita entre as linguagens dos quadrinhos, da fotografia, da pintura e da literatura. Uma experiência, de quem não se cansa de criar.

Com inúmeros personagens, a cartunista sempre entregou ao país uma crítica afiada e de mente aberta. Em tempos de Bolsonaro, suas tiras-charges-poemas têm sido um alento para quem não sabe mais como lidar com o absurdo diário. Entre a raiva e o desespero, há a Laerte.

Suas tiras nos devolvem a sanidade, nos mostram o invisível, o fantástico, e nos fazem ter certeza de que não podemos nos acostumar ao absurdo fascista e a suas provocações. Que a leveza é uma bela forma de resistência. Mas que às vezes, é preciso desenhar as coisas exatamente como são.

E assim segue, aos 70, sempre apostando na diversidade humana. Laerte é trânsito, versatilidade, teimosia em querer ser livre. Por volta dos seus 60 anos, Laerte transitou sua identidade de gênero, mostrando ao mundo que corpo algum pode aprisionar o que somos, o que temos e o que desejamos.

Laerte-se, laertemo-nos, laertai-vos. Viva ela!

 

*Colaborou Gustavo Sixel, da redação.