Por muito tempo predominou, mesmo entre os marxistas, um entendimento de que o legado teórico de Marx tinha pouco ou nada a oferecer para as reflexões sobre ecologia. Até hoje, teóricos importantes, como Löwy, insistem que há elementos antiecológicos na obra marxiana. Apesar da relativa persistência desse tipo de crítica, ao menos desde meados dos anos 90, importantes obras de John Bellamy Foster e Paul Burkett demonstraram – para além de qualquer dúvida, em meu juízo – que Marx frequentemente exibe uma sensibilidade à frente de seu tempo para questões ecológicas e que a crítica que ele dirige ao capitalismo é povoada de elementos teóricos muito fecundos para a elaboração de uma crítica ecológica da sociedade capitalista.
Foster, especialmente, realiza um trabalho filológico exaustivo e, entre muitos outros apontamentos interessantes, recupera as noções de metabolismo e falha metabólica empregadas por Marx em O Capital e nos Grundrisse. Não tenho dúvidas que essa descoberta tem sido a porta de entrada para gerações de ecossocialistas desde que A ecologia de Marx foi publicada.
A partir dessa obra, Foster passa a alegar que a questão metabólica seria não apenas um insight “perdido” entre muitos outros, mas um componente central da reflexão marxiana a respeito da sociedade do capital. Pessoalmente, essa alegação sempre me pareceu um exagero. Na minha avaliação, Foster não reúne elementos suficientes para sustentar uma afirmação tão contundente. Talvez por isso eu tenha adiado (por um tempo indevidamente excessivo) a leitura do premiado Karl Marx’s ecosocialism; por achar que Saito era uma espécie de Foster 2.0. Grande erro!
Por ocasião da publicação da obra no Brasil, pela Boitempo Editorial, decidi finalmente fazer o que já devia ter feito e ler o livro, sabendo que a tradução brasileira dispararia debates entre nós. O que encontrei foi um esforço monumental de pesquisa que realiza, agora sim, a ambição de Foster. Em minha avaliação, Saito é capaz de demonstrar com rigor, apoio textual e biográfico, que o percurso de investigação e elaboração teórica de Marx esteve, por boa parte de sua vida, norteado por uma clareza de que a destrutibilidade ecológica do sistema capitalista deveria também integrar sua crítica a esta sociedade.
Fetichismo, alienação, estranhamento
Já na Introdução e primeiro capítulo, Saito não se rende à velha partição entre um jovem filosófico e um velho Marx mais científico. Essa periodização, como ele bem aponta, colocou indevidamente tradições inteiras de marxismo seja do lado de uma sobrevalorização da discussão sobre fetichismo, alienação e estranhamento, seja do lado de uma sobrevalorização da obra econômica e da ênfase na exploração. [1] O autor percebe, corretamente, que a compreensão de Marx sobre fetichismo, alienação e estranhamento marca toda sua trajetória intelectual e comparece como fundamento teórico da crítica até suas obras da maturidade.
Ele abre essa discussão recuperando um tema que já havia sido apontado insistentemente por Foster: a unidade entre humanidade e natureza e o rompimento dessa unidade. Porém, enquanto Foster mostrou filologicamente que Marx estava bastante atento para essa questão, Saito é capaz de integrá-la no quadro da compreensão a respeito do caráter fetichista da sociedade capitalista.
É bem conhecida a seção sobre o fetichismo da mercadoria, que fecha o primeiro capítulo de O Capital. Quase todos que já ouviram falar dessa seção, provavelmente já ouviram falar também de um de seus enunciados mais emblemáticos, que afirma que, em uma sociedade de produtores de mercadorias, as pessoas se relacionam por meio de coisas. Para além desse enunciado sintético, Saito sublinha ao menos dois outros pontos cruciais para a reflexão ecológica.
Primeiro, ele mostra como o pressuposto lógico e histórico para uma sociedade de produtores de mercadorias é precisamente a separação entre a humanidade e a natureza. O raciocínio é bastante simples, mas aqui preciso torná-lo ainda mais telegráfico. Conforme Marx nos mostra, a generalização da estrutura mercantil da produção exige a existência, também generalizada, do trabalhador livre. Livre dos laços de dominação que marcam as relações de servidão ou de escravidão, por um lado, e livre dos meios de produção, por outro. O longo processo histórico de apartamento entre os trabalhadores livres e os meios de produção envolveu, especialmente, um profundo processo de separação entre os trabalhadores e a terra. Um processo de conversão de formas de propriedade comunal da terra em formas de propriedade privada. Um processo de êxodo do campo em direção às cidades. E um processo de alienação da própria relação metabólica cotidiana reprodutiva entre seres humanos e a terra. O corolário desse raciocínio não é apenas um quadro de separação entre humanidade e natureza. É a conclusão bastante contundente de que no capitalismo não é possível que essa relação se processe de outra maneira. A separação integra os fundamentos estruturais dessa sociedade.
O segundo ponto, creio que ainda mais profundo, diz respeito à dinâmica estranhada do metabolismo social presidido pelo capital. Em termos mais simples, diz respeito ao fato de que aquela estrutura mercantil que é o fundamento objetivo do fetichismo suscita uma dinâmica social que escapa ao nosso controle e que nos subordina. Vejam como Saito conclui essa parte: “Do caráter alheio [alienado] da atividade de trabalho, que é inevitavelmente causado pelo estranhamento da capacidade subjetiva do trabalhador no processo de produção organizado pelo capital, o caráter alheio [alienado] do mundo objetivo também é produzido porque o trabalho só pode produzir os produtos de sua própria realização como uma realidade alheia [alienada]. Os produtores não podem se apropriar do produto do trabalho; sob um domínio reificado, sua própria atividade só se realiza como um poder alheio subjugador. Esse processo de desrealização e empobrecimento, junto com a acumulação de capital, produz um mundo alheio [alienado] em constante crescimento além do controle humano”. [2]
Temos aqui uma compreensão decisiva, capaz de conferir alicerces muito sólidos para a demonstração da inviabilidade ecológica do capitalismo. Se Marx estiver correto e se a leitura que Saito faz estiver correta, temos o seguinte: a conclusão de que o caráter mercantil da sociedade capitalista é gerador de uma dinâmica social autonomizada que escapa ao nosso controle deve vir acompanhada do reconhecimento de que há limites objetivos estreitos para administrar as trajetórias de desenvolvimento dessa sociedade.
Do ponto de vista ecológico, a importância desse reconhecimento é muito clara. Do fato de que se tornou necessário e urgente regular nosso metabolismo com a natureza de maneira consciente e racional (sustentável) não podemos concluir que essa tarefa é realizável ainda nos marcos da sociedade capitalista. Na verdade, Marx nos permite demonstrar que a lógica estranhada do capital bloqueia todos aqueles caminhos que precisamos tomar se pretendermos preservar alguma condição de habitabilidade no planeta.
Aliás, o livro de Saito nos oferece muitos elementos para reforçar essa conclusão. Vejamos alguns deles na sequência.
Forma social, materialidade e metabolismo
Desde o primeiro capítulo de O Capital, Marx nos mostra que a riqueza na sociedade capitalista tem um caráter duplo e contraditório. Ele parte da mercadoria, a “forma elementar” dessa riqueza, e sublinha que ela tem um caráter útil que faz dela um valor de uso. Isso, inclusive, é um aspecto geral (transistórico) da riqueza. A forma mercadoria, porém, traz consigo uma especificidade, ela é riqueza produzida para ser vendida, trocada. A proporção em que ela se troca por outras mercadorias é seu valor de troca. Mas esse fato de as mercadorias igualarem-se em proporções definidas indica que elas compartilham um conteúdo comum, que viabiliza essa igualação. Esse conteúdo comum, diz Marx, é o valor, trabalho humano objetivado. Não qualquer trabalho, mas o conteúdo comum de todos os diversos tipos de trabalho humano, i.e. trabalho reduzido ao mero dispêndio homogêneo de capacidade de trabalho. Marx o denomina trabalho abstrato e, um pouco adiante, afirma que o valor (essa existência da mercadoria como mero trabalho abstrato objetivado) tem uma existência puramente social.
Saito nos faz notar que, sendo esse caráter suprassensível do valor uma especificidade da sociedade capitalista, muitos interpretaram a teoria do valor de Marx como uma teoria apartada da materialidade; como uma teoria que de alguma forma prescindia do mundo material. É inclusive bastante corrente a afirmação de que o capital é indiferente ao valor de uso. Ou seja, de que o capital seria indiferente à materialidade.
Tal acepção não poderia estar mais equivocada. Ora, fosse mesmo o capital indiferente ao mundo material, então estaria ao nosso alcance, digamos, buscar uma materialidade sustentável ainda nos marcos do capitalismo.
Mas o capital é qualquer coisa, menos indiferente. O justo oposto é verdadeiro. E Saito nos mostra claramente que a lógica abstrata do capital imprime sistematicamente no mundo material as formas mais adequadas a si. Se esse mundo material produzido e desenvolvido pelo desenrolar da lógica abstrata do capital é insustentável, ou destrutivo, ou ecocida, aí sim esbarramos na indiferença do capital.
É importante frisar que, neste ponto, o autor está lendo cuidadosamente o próprio Marx. Apenas para tomarmos um exemplo mais evidente, lembremos que toda a seção do Livro I dedicada ao mais-valor relativo é um exercício detalhado de demonstração de como o capital precisa revolucionar continuamente sua base técnica de produção para ultrapassar as barreiras impostas à extração de mais-valor. É a lógica abstrata do capital que exige a elevação das forças produtivas, que Marx mapeia nos capítulos sobre a Cooperação, a Manufatura e a Grande Indústria. É a ininterrupta elevação dessas forças produtivas que precisa ser alimentada por volumes exponencialmente crescentes de recursos, que despeja volumes exponencialmente crescentes de resíduos, que leva o intercâmbio entre humanidade e natureza em uma direção inequívoca, o da ruptura e destruição persistentemente crescentes.
Em resumo, a teoria do valor de Marx não apenas é indissociável do mundo material. Ela nos permite sustentar a tese de que a vida presidida pelo valor não pode ser outra coisa se não destrutiva. Além de apoiar diretamente na obra de Marx tal entendimento sobre essa relação entre o abstrato e o material, Saito também nos mostra que o próprio Marx estava vividamente consciente dela.
Centralidade do conceito de metabolismo e o mergulho nas ciências naturais
Quando Foster redescobriu os usos que Marx fez do conceito de metabolismo em O capital e nos Grundrisse, abriu uma via muito fecunda de pensamento ecológico marxista. Como já afirmei, no entanto, sua demonstração de que a questão metabólica ocuparia uma posição de destaque no conjunto do pensamento marxiano não chega a ser convincente. Saito, cotejando um volume de textos ainda maior que o já pesquisado por Foster, é capaz de completar tal demonstração de maneira definitiva.
Tendo apresentado em detalhe a importância da dinâmica autonomizada do capital e a maneira como essa dinâmica imprime (numa direção determinada) transformações no mundo material, Saito nos faz perceber que a falha metabólica, que aparece pela primeira vez no Capítulo 13 do Livro I, não é um comentário à parte. Ao contrário, é um desenvolvimento necessário nesse processo em que o capital vai criando um mundo cada vez mais adequado à sua lógica. Um mundo cada vez mais degradado e hostil, é verdade. Porém, adequado à lógica do capital.
Quando Marx conclui que a separação entre cidade e campo, a ruptura do ciclo nutriente do solo, e a degradação crescente da fertilidade do solo são desdobramentos incontornáveis dessa dinâmica cega, fica evidente para ele a necessidade de compreender mais profundamente as leis que presidem os processos naturais que comparecem como base material ineliminável do metabolismo entre sociedade e natureza.
Saito sustenta essa interpretação com vasto apoio textual em cartas e cadernos de anotação. Mas, especialmente, o autor reinterpreta o mergulho nas ciências da natureza ao qual Marx se dedica a partir de certo momento de sua vida. Isso sempre foi fato conhecido, mas sempre atribuído à ambição totalizante do esforço científico de Marx. Tal leitura não me parece incorreta. Mas Saito dá um passo além e consegue traçar o elo entre esse giro para as ciências da natureza e a questão específica a respeito do metabolismo na qual Marx esbarrara ao longo de seu percurso teórico.
Colocando em outros termos, Saito sustenta de maneira convincente que Marx teria percebido as implicações ecológicas de sua crítica da economia política e buscado ativamente completá-la, procurando inteirar-se das polêmicas na fronteira das ciências do solo, da geologia, da mineralogia etc. Naturalmente, todos sabemos que esse esforço não resultou em uma reflexão autônoma de Marx a respeito das questões ecológicas. Mesmo assim, fica mais nítido que o legado teórico deixado por ele não apenas é um riquíssimo manancial para a crítica ecológica do capitalismo. Fica nítido que ele mesmo chegou a dar os primeiros passos nessa direção. Daí a perfeita adequação do título da obra aqui comentada, O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada da economia política.
*Eduardo Sá Barreto é professor de Economia da UFF, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro “O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas”
NOTAS
[1] Em livro recentemente publicado pela Usina Editorial, há um capítulo primoroso de Bianca Bonente e Hugo Corrêa que revisita esse debate e desfaz essa dicotomia estéril. Cf. Bonente & Corrêa. “Entre o fetichismo e a exploração”, Em: Para que leiam O Capital: interpretações sobre o Livro I, São Paulo: Usina Editorial, 2021.
[2] Saito, K. O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política. São Paulo: Boitempo, 2021, pp. 67-8.
LEIA MAIS
Marx era um ecossocialista? Uma resposta a Kohei Saito, por Daniel Tanuro
Comentários