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“Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”
Bertold Brecht
O mês de Maio de 2021 começou com tristes notícias. Perdemos o camarada José Barrozo no dia 04/05, que com idade avançada, não resistiu às complicações renais.
Neste momento de tantas perdas, tantas desesperanças, em meio a uma pandemia que, devido a negligência de um governo que nega a ciência e que tem causado imensas tristezas à milhares de famílias brasileiras, perder um lutador comunista e revolucionário, tem um significado muito emblemático para todos nós lutadores.
Em 1992 vim transferida de Rondônia onde vivi por 13 anos para Niterói, minha terra natal, para trabalhar na Universidade Federal Fluminense/UFF. Em Rondônia militei muitos anos no PT e na CUT. Fiz parte da Convergência Socialista, corrente interna do PT que combatia a linha conciliatória da majoritária do partido. Bem antes da CS ser expulsa do PT, eu e um grupo de companheiros de Rondônia rompemos com o partido, pois reivindicávamos a construção de um Partido Revolucionário. Por muitos anos militei em comunidades eclesiais de base, onde me aproximei do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), mais tarde no MST e no IDCN (Instituto de Defesa da Cidadania Negra).
Enquanto militava, me tornei mãe de três filhos e ainda consegui me formar como sanitarista. Foi então que comecei a trabalhar em várias comunidades indígenas de Rondônia na prevenção da malária, hanseníase, cólera e outras doenças transmissíveis. Meu trabalho como sanitarista era também uma espécie de militância e assim participei de movimentos e conferências que deram origem ao SUS.
Quando cheguei a Niterói, em 1992, além das experiências militantes, trouxe comigo os três filhos pequenos que precisavam ser criados, alimentados, educados e protegidos. Trouxe marcas de mulher agredida física e emocionalmente pelo ex marido, com condições financeiras bem precárias, mas em nenhum momento podia me dar ao “luxo” de esmorecer.
Em meio ao trabalho na UFF e em seguida concursada como professora da Rede municipal de ensino de Niterói, dediquei a minha vida aos filhos pequenos (uma ainda mamava no peito), dois empregos, militância no Sintuff, na CUT RJ e no Sepe-Niterói. Será que alguém pode imaginar o que significa uma mulher conseguir conciliar tantas tarefas domésticas, de mãe, trabalhar em dois empregos e ainda conseguir participar de reuniões sindicais e de encontros de formação marxista? Pois é, não foi fácil!
É aí que entra o camarada Barrozo, que conheci em 1994 nesse vai e vem da militância na UFF, no Sepe, nas greves dos metalúrgicos e dos correios de Niterói. Foi quando também conheci Homero Maribondo através do meu querido companheiro Zé Lu. Através do Barrozo conheci Ricardo e China (metalúrgicos) que se engajaram na luta da educação e da saúde de Niterói com uma incomparável capacidade de solidariedade de classes. Lutamos juntos em greves da UFF, da educação municipal, metalúrgicos, empregados da limpeza e conservação urbana de Niterói e dos correios.
Nessa época eu morava em um condomínio, cuja subida íngreme fazia qualquer um desistir de me fazer visitas, mas Barrozo, Maribondo e Hermes eram incansáveis. Mesmo com idades avançadas, os camaradas iam semanalmente à minha casa levar textos, panfletos, livros, anotações, jornais e todo tipo de material que pudesse ser lido com objetivo de formar a minha consciência e o meu aprendizado sobre a teoria marxista e a história das revoluções.
Às vezes eu me desesperava e dizia para eles: vocês homens não compreendem o que se passa com uma mulher cheia de filhos pequenos, não percebem que não tenho tempo para ler tantos textos e não tenho com quem deixar as crianças para poder participar das reuniões? Mas eles nunca desistiam de mim. Na semana seguinte, lá estavam eles novamente para me convencerem que só com muitas leituras seria possível ampliar a minha capacidade de compreensão da realidade conjuntural e avançar na minha prática militante.
O Instituto Cultural Karl Marx /ICKM funcionava numa salinha apertada no Edifício Brasília, à Rua da Conceição, 99, bem no centro de Niterói. Era uma salinha empoeirada, mal iluminada, cheia de estantes com livros de Karl Marx, Trotsky, Lênin e inúmeras outras obras relevantes que aqueles velhos camaradas devoravam e se sentiam no dever de socializar as suas leituras e saberes com a juventude militante. Depois o Instituto passou a funcionar na cobertura do mesmo prédio, um espaço mais arejado e mais amplo.
Eu e a companheira Geiza (PCB) inicialmente éramos as únicas mulheres. Mais tarde veio a Rogéria da CLIN, Mariá e Dora da saúde, Liz Beth professora, pois Barrozo fazia questão da presença feminina nas reuniões e para que eu pudesse participar ele sempre dizia: traga os filhos! E lá ia eu carregada com as crianças, bolsas, biscoitos, papéis, canetinhas, brinquedos e muita coragem.
Durante a semana Barrozo preparava filipetas com dia, hora, endereço e temas das palestras e debates. Aos sábados ele e o Hermes, andavam pela cidade com aquelas filipetas a visitarem militantes e estudantes convidando a todos para a próxima palestra. Não era uma mera entrega de filipetas! Barrozo conversava, insistia na importância dos estudos marxistas e quase nos “intimava” a comparecermos. E ai de nós se não fôssemos! Na visita seguinte, levávamos um “pito” do Barrozo!
Como Mestre nosso camarada Barrozo era duro, mas tinha um coração generoso, um jeito fraterno com todos nós, por isso era muito difícil não admirar aquela figura “carrancuda” e ao mesmo tempo sempre tão presente e gentil.
Nas reuniões do ICKM, Barrozo, Maribondo e Pedro Tórtima tomavam a palavra e expressavam com firmeza o pensamento e a teoria marxista, convictos de que era realizavam um trabalho que em nenhum outro espaço partidário e sindical era concretizado. Era notório o semblante de satisfação que Barrozo fazia quando a sala estava cheia. Ele recebia e cumprimentava um a um saudando, cheio de orgulho a nossa presença. Nós éramos muito atentos e disciplinados nas verdadeiras aulas ministradas a cada palestra no ICKM.
A pedagogia, devo dizer era dura. Não se admitia conversas paralelas e muito menos desrespeito àquele “ritual revolucionário”. Cada um de nós fazia os seus apontamentos e a palavra só era facultada no final de toda a exposição, sem interrupções para perguntas. Só no final havia inscrições com tempo definido para que cada um falasse sobre o conteúdo e de que forma o tema do dia poderia ser aplicado na prática cotidiana da nossa militância.
Lembro que uma vez me rebelei, pois como pedagoga reivindicava um “ensino menos bancário” inclusive sob o ponto de vista da composição da mesa dos palestrantes e da disposição das cadeiras na plateia. Até que um dia Barrozo anunciou: vamos fazer um círculo, Lilian Moura tem razão! Achamos engraçadíssimo e muitas vezes esse gesto foi motivo de piadas entre nós no Instituto, pois dizíamos que Barrozo por um dia tinha se “convertido” à teoria freireana.
Foi no Instituto que em 1994 conheci companheiros como Hermes, Homero Marimbondo, Pedro Paulo, Ricardo Metalúrgico, Leonardo Cunha, Vasconcelos, Walter, Marlene Barrozo, China Metalúrgico, Pedro Tórtima e Roberto Che, um jovem de cabelos negros bem compridos, usava uma boina preta e era extremamente aplicado no seu curso de História da UFF. Muito cedo Roberto Che mostrou a sua veia revolucionária e logo foi convidado por Barrozo para também falar como palestrante. Eu e Roberto Che construímos uma relação de muito companheirismo que dura até hoje. Às vezes eu até me sinto meio avó dos filhos do Che e me encho de orgulho de ver o militante e professor brilhante que ele se tornou. Conheci também estudantes universitários e secundaristas, como Gustavo Sixel, Tiago Fernandes, Tiago Coelho, Dirley e muitos outros estudantes que na época militavam no PSTU. Convivi com Cyro Garcia, Heitor Fernandes e outros dirigentes do Partido, pois em 1994 Barrozo, eu, Pedro Tortima, Hermes, Ricardo Metalúrgico, China Metalúrgico, Roberto Che e Marlene Barrozo chegamos a ingressar e militar no recém fundado PSTU. Foi também no ICKM que convivi com militantes históricos do PCB de Niterói (Geiza, Oswaldo, Alcione), Jorge Gomes e José Ricardo da saúde, Luiz Carlos Barba, professor e sua companheira Marcia, todos militantes do PT.
Barrozo foi o primeiro presidente municipal do Partido tendo participado ativamente da construção do Diretório Regional do PSTU em Niterói e São Gonçalo, juntamente com outros militantes sindicais e populares que também reivindicavam o PSTU. Importante lembrar dos camaradas Cuíca e Rogéria trabalhadores da limpeza urbana de Niterói que atuavam aguerridamente no Sindicato da sua categoria, sempre tentando dar um viés classista, combativo e independente dos patrões. Esses bravos companheiros também frequentavam as reuniões do Instituto Cultural Karl Marx, fizeram história nas lutas e na formação do Fórum das Entidades Sindicais de Niterói, cujo local de reuniões era sempre nos espaços do DCE da UFF. Barrozo nunca faltava às reuniões do Fórum e quando se inscrevia para as análises conjunturais, dava verdadeiras aulas de lucidez e de conteúdo programático.
Nunca vou esquecer das verdadeiras “romarias” que Barrozo fazia pela cidade de Niterói sempre em busca de novos e velhos militantes para as discussões sobre a obra de Marx. Além de ir de casa em casa, ele ainda telefonava para relembrar o dia das reuniões (quinzenais) dizendo firmemente para cada um de nós: “vê se não se atrasa!”, independente inclusive de levar em conta que eu, com três crianças dificilmente seria a mais pontual.
Foram naquelas reuniões que meus filhos ouviram e aprenderam a pedir “inscrição” e “esclarecimentos”. Em casa nas brincadeiras com os primos e colegas, havia sempre encenações das “reuniões de Barrozo”. Um dos meninos imitava o Barrozo sempre a ralhar com quem se dispersasse. Sim, até hoje as minhas filhas lembram daquelas reuniões do ICKM. Uma delas chegou a me culpar dizendo que não se deve levar crianças para as reuniões políticas. Então eu respiro fundo, reconheço que foi um período muito difícil, mas digo que se assim não fizesse, jamais teria a chance de participar de nenhuma formação e militância. Lá como toda criança, de tanto ouvirem, elas aprenderam desde cedo a cantar o Hino da Internacional Comunista. Muitas pessoas diziam: mas como é que crianças sabem repetir o refrão deste hino? Tudo isso acontecia sem que houvesse da minha parte nenhuma interferência ou mesmo incentivo para tentar “formar filhos militantes”. Contudo, eu descobri desde cedo que as crianças aprendem com exemplos. As minhas cresceram vendo aquele velho camarada nos visitar levando sempre muitos papéis. As reuniões e as visitas de Barrozo semearam “sem querer” nas nossas vidas conceitos de “mais-valia”, “classes sociais” justiça, opressão, exploração, socialismo e revolução. Na cabecinha das minhas crianças esses conceitos ainda que totalmente “aleatórios”, fizeram toda a diferença para os adultos que os meus três filhos se tornaram.
Por tudo isso, eu nunca vou esquecer do tempo das reuniões do Instituto Cultural Karl Marx e da convivência com meu velho camarada Barrozo.
Ter estudado no Instituto me fez ser uma mulher mais corajosa e cada vez mais consciente do papel que eu deveria exercer na luta anticapitalista. Nos sindicatos a tarefa nunca mais poderia deixar de ser o combate ao que Barrozo chamava de veneno mortal da burocracia e da política de conciliação de classes. Claro que isso me valeu e me vale até hoje desafetos e muitos dissabores, afinal, não é fácil combater os desvios dentro da própria esquerda.
Até hoje quando penso nas aulas do Instituto Cultural Karl Marx, onde eu e vários companheiros ainda jovens aprendemos com aqueles militantes mais velhos e com uma história militante tão rica e importante, sinto que vivenciamos um tempo historicamente importante para a recuperação dos traços da cultura comunista.
Fomos formados para o enfrentamento com a burocracia e o combate aos traidores da classe. Aprendemos a combater com assertividade e firmeza a “erva daninha” do populismo, da burocracia, do uso da máquina sindical e partidária para a ascensão de projetos pessoais e eleitoreiros. Aprendemos também a debater as divergências na base do respeito à democracia operária, aprendemos o conceito e a prática da solidariedade de classes, firmando sempre o compromisso de que jamais entregaríamos um companheiro ao inimigo e jamais aceitaríamos que um aparelho construído e mantido pelos trabalhadores fosse usado por “personalistas de esquerda”. Aprendemos a acolher um companheiro e seus familiares nos momentos de dor, de angústias e de desesperanças. No ICKM também aprendemos a amorosidade entre companheiros.
Por isso digo o quanto sou grata por ter feito parte de uma geração de militantes que conheceu e conviveu com verdadeiros mestres revolucionários. Digo que sou uma militante privilegiada, pois tive um mestre como José Barrozo. Foram aprendizados para toda a vida, por isso hei de honrar para sempre os seus ensinamentos.
Camarada Barrozo, PRESENTE! SEMENTE!
*Lilian Silva é professora da rede municipal de ensino de Niterói, servidora aposentada da UFF, parte da direção Colegiada do Sepe-Niterói
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