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BRASIL

José Barrozo, uma grande referência marxista de Niterói, nos deixou

Roberto “Che” Mansilla*, de Niterói, RJ

Nesse dia 04 de maio, mais um grande companheiro de lutas nos deixou. Ele não resistiu as complicações renais. Em tempos de grandes perdas humanas e de referências políticas que se vão, José Barrozo é sem dúvida mais um que fará falta. Foi um histórico marxista de Niterói, de tantas pelejas, contribuições teóricas e lutas políticas. Podemos dizer que o “velho Barrozo” viveu muito e participou de outros tantos acontecimentos que, nessa nota, só será possível apresentar um breve panorama, já que são 70 anos dedicados a militância da esquerda socialista!

José Barrozo nasceu em 1927, no Bairro do Fonseca, em Niterói. Foi criado numa família católica tradicional. Sua militância política de esquerda, iniciou-se, no final da década de 1940, quando ingressou no curso de economia pela antiga Faculdade de Ciências Econômicas de Niterói (atual UFF), concluído em 1951. 

Nesse contexto, Barrozo entrou no PCB e participou de atividades em Niterói, mesmo num momento em que o partido estava num novo período de ilegalidade política. Mas, mesmo na clandestinidade, o “Barrozinho” como era conhecido pela militância comunista, não deixava de cumprir as tarefas destinadas. Cito duas que tiveram uma amplitude nacional. Em 1950, Barrozo participou da “Campanha pela Paz”(1), organizada pelo PCB e que, na cidade de Niterói se concentrou no Sindicato dos Operários da Construção Naval. Também fez parte da construção da campanha “O petróleo é nosso!” que defendia a estatização do petróleo e que culminou com a criação da Petrobrás, em 1954.  

A partir de 1956, teve início no interior do movimento comunista internacional uma profunda crise advinda do informe “secreto”(2) feito por Nikita Kruschev, Secretário Geral do PCUS que denunciava os crimes de Stalin. Esse debate foi imediatamente cerceado pelos principais dirigentes do PCB, Prestes e Diógenes de Arruda Câmara. Mas logo depois chegou com força nas páginas dos principais jornais do partido, Voz Operária e Imprensa Popular. E é nesse contexto de crítica à Stalin que José Barrozo, deixa o PCB, ainda no final de 1956. Barrozo fazia questão de lembrar o “culto à personalidade” e o “autoritarismo” eram um dos principais erros dos comunistas, mas que permanecia em outros agrupamentos.

Depois de romper com o PCB ele formou com Homero Marimbondo o CIM (Centro Independente Marxista). Eles atuaram em vários sindicatos e Barrozo já tinha uma orientação trotskista. Como lembra Arthur Augusto Barrozo (seu primeiro neto), “uma vez meu avô me contou que Prestes perseguiu o grupo dele aqui em Niterói e até briga de rua com stalinistas ele travou”.(3)

Também em 1956 José Barrozo conheceu Marlene com quem se casaria seis anos depois, sendo o grande amor de sua vida. Sobre o episódio desse encontro, diz Marlene Barroso, em seu diário:

“Estava na Juventude Comunista, na sede do Jornal Imprensa Popular do PCB. Era uma sala simples na sobreloja de um prédio comercial na Rua Visconde Uruguai, no Centro de Niterói. […] Barrozo fazia parte desse grupo disperso e informal dos chamados dissidentes e o encontrei, nesta data, na sala, em meio a uns quinze companheiros que entabularam uma grande discussão (…). Eu era a única mulher em meio aquele grupo”.(4)

Ao contrário da família católica de Barrozo, Marlene vinha de vinha de uma família com tradição militante que a levava desde cedo a comícios políticos. O pai era sindicalista marítimo e também foi do PCB e sua mãe atuou na Associação Feminina Fluminense.  

No começo da década de 1960, Barrozo entrou para a ORM-POLOP (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária) que reunia militantes de várias regiões do país oriunda de variadas tradições (luxemburguistas, alguns trotskistas e, no Rio de Janeiro, dissidentes do PCB) e que não aceitavam as propostas do PCB que afirmava que revolução no Brasil tinha um caráter “etapista” e “democrático-burguês”. Ao contrário, os militantes da POLOP consideravam que o caráter da revolução era, desde seu início socialista. (5) Em junho de 1965, Barrozo é preso no DOPS do Rio de Janeiro, acusado de pertencer a uma tal “Frente da Revolução Brasileira”.

No final da Ditadura, novos tempos se abriam. José Barrozo se filiou ao PDT de Brizola. Mas, dois anos depois, desincompatibilizou-se com a “postura populista” do PDT e foi para o PT.

Em 1988, Barrozo foi candidato pelo PT à Prefeitura de Niterói. Como lembra Fátima Lacerda, amiga e vice da chapa naquela disputa, os debates ocorridos no período pré-eleitoral foram tensos pois parte da Direção do PT criticava Barrozo “alegando que tinha posições muito radicais”. Mas, para Fátima, “Barrozo era o mais preparado e com o melhor conteúdo”. E numa convenção com quase mil pessoas, talvez a mais disputada da História do PT na cidade, numa “vitória apertadíssima por quatro ou cinco votos da base sobre a liderança”, a chapa Barrozo-Fátima venceu. Vale dizer que a maioria dos líderes petistas defendia a aliança com o PDT. Mesmo com a vitória assegurada na Convenção partidária, uma grande parte da direção do PT não abraçou a campanha. Ela foi feita “no peito e na raça” sem recurso, mas com uma militância muito aguerria, como lembra o amigo Leonardo Cunha, candidato a vereador em 1988, e que acompanhou Barrozo por vários bairros da cidade, sobretudo os mais populares como Fonseca e Barreto. “Subimos ainda o Morro da Chácara onde falávamos para o povão sobre o programa da campanha”, lembra o amigo.

Eram tempos de esperança. Havia uma crença que o trabalho político junto às comunidades e aos setores populares e dos trabalhadores de Niterói poderia trazer algum fruto. Vale lembrar que no ano seguinte, em 1989, ocorreu a primeira eleição presidencial por voto direto após 29 anos. A cidade, como o restante do país, ansiava por mudanças políticas. Havia uma forte concorrência pela hegemonia nas forças que estavam no campo “das esquerdas” da época: PDT de Leonel Brizola e PT de Lula. E em Niterói, a disputa entre essas duas legendas era bem clara.

No início da década de 1990, conheci José Barrozo. Mais exatamente em agosto de 1994, quando, pela primeira vez participei do Instituto Cultural Karl Marx (ICKM), numa sala que ficava na Rua da Conceição, no centro de Niterói. Lembro-me que Barrozo sempre fazia questão de ligar para as pessoas, lembrando do dia das reuniões (inicialmente quinzenais) e dizendo para “não se atrasarem”. Foram naqueles saudosos encontros (muito mais do curso que de História que havia ingressado na UFF) que tive contato com as primeiras categorias do marxismo, como “materialismo histórico e dialético”, “alienação”, “mais-valia”, “classes sociais” etc. Foi um grande aprendizado para muitos que puderam participar das palestras, cursos – muitos oferecidos com maestria pelo próprio Barrozo – e também pelo historiador Pedro Tórtima e o Jamil, militante da Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST). Também gostaria de lembrar das valiosas contribuições dos companheiros Hermes, Homero Marimbondo, Pedro Paulo, Lilian Moura, Ricardo, Leonardo Cunha, Vasconcelos e Walter. 

Além dos cursos dedicados à formação política, no Instituto Cultural Karl Marx, também ocorreriam reuniões políticas e sindicais com variados partidos de esquerda de Niterói e mesmo de outros lugares. Uma vez trouxemos um companheiro da Colômbia para falar da terrível situação de repressão estatal que os militantes sociais daquele país sofriam. Numa outra oportunidade, fizemos um debate com um companheiro estadunidense sobre Mumia Abu-Jamal (6) militante negro que pertenceu aos Panteras Negras e foi condenado à pena de morte, por um crime que não cometeu. Tudo isso fez com que o Instituto fosse reconhecido por parte importante do ativismo de esquerda niteroiense. 

Vale lembrar que Barrozo, nesse mesmo ano de 1994, estava no PSTU. E lembro que algumas semanas antes de me convidar para o Instituto Cultural Karl Marx, ele participou da primeira apresentação pública do PSTU, na cidade, num evento realizado na Câmara Municipal. Por causa do Barrozo e de sua capacidade de convencimento que também entrei no PSTU de Niterói, juntamente com outros companheiros que também participavam dos eventos do Instituto, como a professora e ativista sindical Lilian Moura e o metalúrgico Ricardo que já militava antes na Convergência Socialista. 

Nos últimos anos, com a perda do espaço, o Instituto Cultural Karl Marx chegou a se reunir algumas vezes no MODECON (Movimento em Defesa da Economia Nacional), no 6º andar do prédio da ABI, no centro do Rio de Janeiro. Foi um convite do professor Lincoln de Abreu Pena que também era presidente daquele movimento. 

Os limites da idade, começavam a pesar sobre o “velho Barrozo”. Apresentou uma perda considerável de sua audição. Mesmo assim, continuava a ler, escrever e algumas vezes realizava encontros, na sua última casa, no Fonseca, com os velhos camaradas do Instituto para “avaliar a conjuntura”. Ele demostrava uma enorme lucidez e trazia dados estatísticos que enriqueciam a discussão. Barrozo, sempre iniciava suas exposições com as análises das movimentações do capital a nível internacional. Era uma característica muito forte de sua formação militante. Foi assim que, com menos frequência, acompanhei os últimos momentos de vida desse inestimável camarada. 

Mas Barrozo ainda seria capaz nos surpreender. E assim fez. Lançou em 2017, um livro denominado O populismo de direita e a crise do Capitalismo. Parece que já estava antevendo um dos principais e terríveis cenários da política nacional (e internacional) do atual momento: o fortalecimento do neofascismo, como corrente ideológica e de governo. Impressionante sua percepção em enxergar, antes de muitos camaradas, os perigos que estariam por vir e a necessária “análise científica” (como dizia) que precisaríamos fazer para responder àquelas ameaças.

Niterói perde uma grande referência do marxismo. Barrozo era um incansável “inconformado” que repetia constantemente que o “capitalismo estava em sua crise inexorável” e que “única saída era a revolução socialista sob a direção dos trabalhadores conscientes”. Esse aprendizado do “velho Barrozo” continua sendo inestimável e atual.

Camarada José Barrozo, presente, agora e sempre!

*Professor de História da rede municipal do RJ e militante da Resistência/PSOL

 

NOTAS

(1) Campanha pela Proibição das Armas Atômicas, foi dotada pelo PCB no ano de 1950. Seguindo a linha pacifista da União Soviética, dirigida a todos os partidos comunistas, a campanha consistia no recolhimento, pelos militantes comunistas, de assinaturas a um apelo pela proibição da utilização das armas atômicas por qualquer país e pela eliminação dos arsenais atômicos existentes até aquele momento. Os comunistas brasileiros, mesmo na ilegalidade, articularam-se e obtiveram o apoio de diferentes grupos sociais à campanha.

(2) Apesar de inicialmente reservado a uma plateia seleta em Moscou, o informe do secretário geral do PCUS foi logo revelado pela grande imprensa mundial. O jornal O Estado de S. Paulo o publicou na versão integral em 07.07.1956, em seu “Caderno Especial”, pp. 2-11.

(3) Agradeço a Arthur Augusto Barrozo pelas informações e por ceder as fotos pessoais do arquivo da família que acompanham o presente artigo.  

(4) Marlene Barrozo era assistente social. Nascida em 1940, faleceu no do dia 14 de julho de 2018. Foi uma militante histórica da primeira geração do PDT na cidade e permaneceu no partido até seus últimos dias. Agradeço, mais uma vez, a Arthur Barrozo por me passar o “Diário pessoal de Marlene Barrozo”.

(5) Para maiores detalhes da trajetória da Polop, ver o artigo de Marcelo Badaró Mattos. “Em busca da revolução socialista: a trajetória da POLOP (1961-1967) in RIDENTE, Marcelo e REIS FILHO, Daniel Aarão (orgs.). História do marxismo no Brasil (Vol. V – Partidos e organizações dos anos 20 aos 60). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, p. 185-212.

(6) https://esquerdaonline.com.br/2021/04/03/mumia-abu-jamal-apos-casos-de-covid-19-cresce-campanha-pela-libertacao-de-ex-panteras-negras-presos-nos-eua-covid/

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