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BRASIL

Lays Machado, uma imprescindível, nos deixou!

Roberto “Che” Mansilla*, do Rio de Janeiro, RJ
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons.
Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons.
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda.
Porém há aqueles que luta toda a vida; esses são os imprescindíveis”.
(Bertolt Brecht)

Há dois dias tento escrever uma homenagem a querida amiga e companheira de lutas (e das lutas classe trabalhadora) Lays Machado, falecida no último dia 22 de abril, em decorrência de complicações agravadas por esse terrível Covid-19.

Falar de uma amiga querida que acaba de morrer é sempre difícil. É como se uma parte da gente fosse embora. E sem dúvida foi. De qualquer forma, vou tentar esboçar algumas linhas que justificam por que Lays Machado, foi (e sempre será) uma das IMPRESCINDÍVEIS a que se referia Brecht, no início desse texto.

Conheci Lays Machado no final de novembro de 1997, depois de ter participado de um seminário de 4 dias, no Sindicato dos Marceneiros, no centro de São Paulo. Era mais um momento na sua vida em que se dispunha a criar um novo projeto político que, considerando as diferentes origens e trajetórias dos participante, tinha como necessidade (como ela fazia questão de salientar) “recuperar o marxismo revolucionário em sua totalidade, rompendo com o economicismos” (além dos dogmatismos e autoproclamações, tão comum na nossa esquerda socialista) e “desenvolver uma elaboração e prática que empunhassem efetivamente a luta pelo socialismo como ferramenta de libertação imensa maioria da humanidade”. Essa sua fala ficou registrada no caderno de anotações que até hoje guardo comigo. Enfim, foram dias de profundas discussões e um sentimento de confiança mútua que, ao final daquele encontro, decidimos nos constituir com um pequeno, mas combativo agrupamento (de vida efêmera é verdade) e que guardava o singelo nome de “Fórum de Ação Socialista”, mostrando o que de fato éramos. Mas que não escondia um objetivo grandioso que tínhamos: “avançar positivamente no processo de construção de uma nova organização marxista-revolucionária”.  Não se trata aqui de fazer um balanço daquela experiência. O mais importante é que naquele encontro pude começar minha relação política com Lays Machado. Aliás, ao longo dos anos, percebi que ela se tornou uma relação humana e depois política. Uma relação fortemente identificada por valores.

E assim continuamos uma amizade construída por mais de 20 anos. Mesmo com alguns desencontros, é impossível não admirar as histórias da vida militante de Lays Machado. Quando estava em São Paulo, ficava hospedado na sua casa, e tive a sorte de escutar algumas daquelas ricas narrativas. Ficávamos altas horas da noite “charlando” (como dizem os argentinos), regados a um bom café e às vezes uma cerveja ou vinho (que ela preferia). Concordo com Tiago Coelho, que tais histórias deveriam ter sido registradas (1). De qualquer forma, atrevo-me a, socializar alguns desses relatos, com companheir@s e amig@s, tanto aquel@s que conheceram a Lays, quanto novas gerações de lutador@s. Tem a importância de ser uma experiência coletiva.

Um dos primeiros aprendizados que tive com Lays Machado foi a necessária solidariedade de classe com os de “baixo”. Ela me disse uma vez que “a força dos privilegiados, a rigor, era mais provisória que a capacidade de resistência dos oprimidos. Se algo capaz de perdurar e renascer na história podia ser alcançado pela ação humana, esse algo viria da massa dos pobres”

Desde muito cedo, Lays participou de várias iniciativas de solidariedade às classes populares. Destaco quatro: uma que ela me contou e outras três que testemunhei. A primeira foi seu engajamento no Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, realizado nos dias 28 a 30 de março de 1963, no Sindicato dos Operários da Construção Naval, em Niterói (RJ). Foi uma das primeiras manifestações de internacionalismo por parte da esquerda brasileira e de outras entidades e personalidades progressistas do Brasil. (2)

As outras três iniciativas de solidariedade que Lays participou pude acompanhar in loco. A Campanha de Solidariedade aos Povos da Floresta, iniciada em 1997, por exemplo, foi um empenho político e econômico para garantir a segurança pessoal e o trabalho político de nosso companheiro Osmarino Amâncio Rodrigues (3) na reorganização da Associação XV de Novembro, da Reserva extrativista Chico Mendes, em Brasileia, no Acre, que estava sob ameaça de grupos dominantes da região.

Em 2000, Lays participou da criação do Comitê de Solidariedade Permanente de Solidariedade aos Povos Em Luta-SP (CPSPL-SP) que, entre outras iniciativas, realizou, no mesmo ano, um ato denunciando o chamado Plano Colômbia (4). A ideia (ambiciosa é verdade) era entrar com uma faixa dobrada de 30 metros, onde alguns companheiros abririam no Estádio do Morumbi, durante o jogo da Seleção Brasileira X Colômbia, valendo pelas Eliminatórias da Copa de 2002. Mas, infelizmente, a polícia militar descobriu e proibiu a ação. Mesmo assim, ao término da partida, abrimos a grande faixa e fizemos uma boa agitação. 

Por fim, destaco a visita que – juntamente com Lays e outros companheiros –, fizemos a Ocupação do MTST, Carlos Lamarca em Guarulhos. Era a primeira vez que participava desse tipo de luta de ação direta dos oprimidos. Lembro-me que, no carro, quando voltávamos para casa, Lays me dizia que deveríamos militar junto aquele movimento dos sem-teto. Pois ele era formado “por aqueles que pouco ou nada tem a perder e que a perspectiva de ‘ter’ alguma coisa se situa (e deveria se situar) junto a luta pelo socialismo e dentro de uma perspectiva coletiva”. Foi um grande aprendizado que sempre levei comigo.

Lays Machado também era fascinada pela formação política. Dizia que, “sem formação não era possível romper com a primeira forma de alienação: o desconhecimento”. Tinha razão! Particularmente sou muito grato por ela ter me “apresentado” Rosa Luxemburgo, através de uma seleção de textos que organizou sobre a Revolução Alemã de 1919 e 1923, durante a fase do Fórum de Ação Socialista. Também devo a Lays, as primeiras leituras que fiz sobre o tema do feminismo revolucionário. Uma de suas elaborações que mais me marcaram (e que guardo com carinho) foi sobre um 8 de março que participamos, aqui no RJ e em SP no ano de 1999 e que soltamos como panfleto unitário. Levava um título com a sugestiva (e incômoda) indagação: “IGUALDADE OU LIBERTAÇÃO?”. Lays adorava cutucar, subverter a ordem natural (“e chata”, como dizia) das coisas. Estava no seu DNA. E o panfleto dizia em seu primeiro parágrafo:

“Mais uma vez comemoramos o dia Internacional das Mulheres. Geralmente saímos às ruas lutando por igualdade. Mas será que já nos perguntamos se realmente queremos igualdade? O que representa a igualdade para nós? O mesmo direito de sermos exploradas e assumirmos os valores de uma sociedade capitalista, machista, violenta e opressora? Queremos a igualdade para sermos chefes e assediar? Queremos a igualdade de sermos executivas e parte do Estado burguês para administrá-lo para o sistema, explorando, violando e assassinando? Queremos a igualdade de partilhar os privilégios que gozam os homens? Hoje, a igualdade representa o livre acesso ao mundo dos homens sem nenhuma modificação. É isso que queremos? Ou queremos a libertação completa das mulheres e, portanto, da humanidade? (…)

E, de forma a provocar a reflexão crítica, concluía:

Para nós o caminho é o da libertação, por que a libertação apresenta-se como uma alternativa de projeto, alternativa ao projeto capitalista patriarcal e nos permite pensar em um mundo liberada da violência e de todas as chagas desse sistema que propomos destruir. (…)” (5)

Em termos de personalidade, Lays Machado era muito divertida. Lembrava de histórias sempre com uma grande dose de humor. Recordo-me uma delas.  Desde muito cedo, ela vivenciou um ambiente político e militante, em sua família. Lembrava com sua costumaz irreverência as discordâncias que tinha com seu pai, o “velho Machado”, que foi um importante dirigente do PCB, em São Paulo. Dizia que preferia “o socialismo libertário” de sua avó materna Maria, do que o “stalinismo enrijecido e dogmático” de seu pai e de outros dirigentes, como o Diógenes Arruda, que costumava frequentar sua casa, nutrindo por esse, em particular, um enorme carinho. Mesmo assim, Lays não se furtava em se somar nas várias campanhas de solidariedade e de trabalho de base que o Partidão fazia. Aliás esse era um dos principais traços de seu caráter militante: conviver com as diferenças, mesmo com divergências que não escondia.

A trajetória militante e orgânica da Lays Machado começou na geração revolucionária que ousou enfrentar e desafiar a ditadura empresarial-militar surgida através do Golpe de 1964. Fez parte da Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares), a qual sempre referia com orgulho e humor como “a mais socialista e feminista de todas as outras organizações” (uma boa pesquisa daria!) e admirava a figura humana e revolucionária do Comandante Ernesto “Che” Guevara. Como muitos de sua época, pagou a ousadia do engajamento na luta contra a ditadura com a prisão e a tortura. Uma vez me confidenciou que, durante esse terrível período, criou uma personagem, “a louca”, para enfrentar/sobreviver a sanha do famigerado Sérgio Paranhos Fleury e de outros agentes do terrorismo de Estado. “Envergavam, mas não me quebraram”, dizia. Foi nas masmorras do DOPS que Lays conheceu seu companheiro de vida de lutas, Cesar Augusto Castiglioni, que pertencia a outra organização revolucionária, a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Ela se orgulhava de jamais ter abandonado e desistido da luta. Mas não fazia nenhuma questão em autocelebração. Nem muito menos “perdoava” seus algozes, como outros fizeram com o tempo. Dizia que “se estivesse frente a frente com esses canalhas não titubearia em no mínimo constrangê-los”. Lays sempre teve lado. Não fazia concessões. Não era sua característica.

No final dos anos 1970, Lays Machado participou da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM-SP), durante as greves metalúrgicas na capital paulista, num momento de retomada da movimentação política pela reconquista das liberdades civis e contra a ditadura. A OSM-SP teve como momento mais avançado de sua história a eleição das Comissões de Fábricas, uma das mais importantes experiências de democracia operária de organização de base da história do sindicalismo brasileiro. (6)

Lays na mesa do 5 Congresso Estadual da CUT. Ao seu lado, cinco homens. Na faixa, acima, está escrito. A história não chegou ao fim. O socialismo vencerá!

Em 1980 ajudou na fundação e legalização do Partido dos Trabalhadores (PT) e, em seguida, da “CUT pela Base”(7). No início dos anos 1990, rompeu com o PT e foi parte do processo de formação da Frente Revolucionária (8) (Lays era militante da Liga (9)) que, em 1993/1994, originou a criação do PSTU, de onde foi parte de sua primeira direção nacional. No final de 1997 ela deixa o PSTU e, juntamente com outros companheiros, funda o Fórum de Ação Socialista (FAS) que, em 1999, depois de uma Conferência Nacional, torna-se Ação Socialista.

Nos anos posteriores Lays se engajou em outras experiências. Já não tínhamos mais um contato cotidiano, é verdade. Soube que participou de iniciativas como o Programa “Pró-Jovem”, criado como ação integrante da Política Nacional de Juventude(10), lançada pelo governo Lula, em 2005. Também realizou uma série de projetos de educação e formação para sindicatos e ministérios. Continuava preocupada com a formação das filhas e filhos da classe trabalhadora. 

Nos últimos anos Lays Machado fez parte do Observatório da Mulher e teve participação ativa no programa da “Rádio Madalena” (11) (ao lado de sua parceira Rachel Moreno) que buscava proporcionar – através de notícias, análises e entrevistas –, assuntos relativos ao universo do gênero feminino e dos direitos da mulher. Foi a última empreitada de Lays. Mesmo com toda a seriedade dos temas discutidos, não deixava de introduzir pitadas de humor (uma de suas marcas) nas formulações voltadas para a conscientização das novas gerações. 

No mesmo dia da partida de Lays Machado (22 de abril), soubemos da morte de outro grande revolucionário, Alípio Freire, que teve uma trajetória parecido com a dela: lutou contra a ditadura empresarial-militar (resistindo igualmente a inúmeras torturas) e participou das grandes lutas de massas do início da década de 1980. Como você, querida Lays, ele também estava hospitalizado e não resistiu ao Covid-19. 

Hoje, em tempos de neofascismo e de um governo genocida (que reivindica os mesmos inimigos que você e o Alípio enfrentaram) precisamos continuar a lutar, a resistir , a “não quebrar” e seguirmos na organização consciente dos “de baixo”, d@s explorad@s e dos oprimid@. Vocês nos ensinaram isso. Não podemos abandonar a luta.

Uma última lembrança da Lays Machado. Certa vez ela me disse que “no Brasil tudo acaba em música”. Dessa maneira finalizo essa homenagem a tua memória companheira, com uma canção argentina. Como você era uma internacionalista, esse mero detalhe não tem nenhum problema né?  Refiro-me a composição musical “Como la Cigarra”, de María Elena Wash, lançada em 1972 e, que numa determinada passagem, me fez (e agora me fará) lembrar de você, Lays:

Tantas veces me mataron,
Tantas veces me morí,
Sin embargo estoy aqui,
Resucitando.
Gracias doy a la desgracia
Y la mano que mato tan mal
Y seguí cantando…
Cantando al sol,
Como la cigarra,
Después de un año
Bajo la tierra,
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra”.

Lays Machado, você é como a cigarra que nunca deixará de viver em nossos corações e mentes. Nos fará relembrar da sua alegria contagiante pela vida e de seguir lutando pel@s explorad@s e oprimid@s. Afinal, você praticava o lema das Madres da Plaza de Mayo, de que “a única luta que se perde é a que se abandona”.   

Vá em paz querida amiga, querida companheira, querida dirigente Lays Machado (afinal também desempenho esse papel na minha militância). O mundo fica menor sem você por aqui!

Lays Machado presente, agora e sempre!

 *Professor de História da rede municipal do RJ e militante da Resistência/PSOL

NOTAS

1 – Tiago Coelho é um grande amigo que também conviveu com Lays Machado. Fez um emocionante depoimento sobre nossa querida amiga em comum. Ver https://coelhotiago.medium.com/para-lays-machado-bc40fc3a4947 (Consultado em 23.04.2021)

2 – Sobre a História do Congresso Continental de Solidariedade a Cuba com imagens e artigos de época ver https://stbnobrasil.com/pt/cuba-nao-esta-so (Consultado em 24.04.2021)

3 – Osmarino Amâncio vem da mesma tradição de luta e auto-organização das primeiras lideranças políticas seringueiras do Acre que teve Wilson Pinheiro (assassinado em 1975) e Chico Mendes (assassinado em 1988) seus mais destacados dirigentes.

4 – Assinado em 1999 entre os presidentes da Colômbia Andrés Pastrana e Bill Clinton, o “Plano Colômbia” foi anunciado como uma “cooperação” e parceria militar entre os dois países, na qual os EUA ajudariam com bilhões de dólares para supostamente “acabar com o narcotráfico”. Mas, na realidade, se tratava de mais uma ingerência do imperialismo estadunidense para combater a insurgência armada existente naquele país e também garantir a presença dos EUA em parte da Amazônia brasileira.

5 – “Igualdade ou Libertação”. Fórum de Ação Socialista, 08 de março de 1999 (Arquivo pessoal)

6 – Ver ALMEIDA, Ivan Antônio. “Construindo a identidade operária, a história da Comissão de Fábrica da ASAMA”. Dissertação de Mestrado, PUC, 1992. Ver também a Revista dos 30 anos da Comissão de Fábrica da ASAMA, realizada pelo Projeto Memória (Oposição Metalúrgica) e projeto gráfico do NPC (Núcleo Piratininga de Comunicação). São Paulo, 2012.

7 – Tendência da esquerda da CUT, que reagrupava mandelistas e outras correntes trotskistas, luxemburguistas e independentes.

8 – A Frente Revolucionária precedeu a formação do PSTU e que reagrupava a Convergência Socialista (seção da LIT-QI), a Liga Socialista, o Partido da Frente Socialista (cisão do PCB) e também agrupamentos da esquerda revolucionária de caráter regional.

9 – A Liga era uma organização formada a partir da fusão de militantes sindicais da “CUT pela base”, independentes e militantes que moviam de forma autônoma do PT no movimento.

10 – Tratava-se de um Programa Nacional de inclusão de jovens através de três vetores: educação, qualificação e ação comunitária. Era voltado especificamente para o segmento juvenil mais vulnerável e menos contemplado por políticas públicas então vigentes: jovens de 18 a 24 anos, que haviam terminado a então 4ª. Série, mas não concluído a 8ª série do ensino fundamental.

11 – Ver https://radiomadalena.com.br/observatorio_da_mulher/. Lays Machado começou a participar do 2º programa até o de número 60. No programa 38 “Justiça com transição”; sobre o tema da anistia, ela foi âncora.

 

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