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BRASIL

Qual o significado da reforma ministerial de Bolsonaro?

Gibran Jordão*, do Rio de Janeiro, RJ
Montagem com fotos dos cinco ministros nomeados. Eles usam terno e gravata, e da secretaria de Governo, que discursa ao microfone.
Divulgação / G1

Os novos ministros nomeados por Bolsonaro: Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Carlos Alberto Franco França (Relações Exteriores), Walter Braga Netto (Defesa), Anderson Torres (Justiça), André Mendonça (AGU) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo).

Em geral, quando um governo anuncia uma reforma ministerial, na maioria das vezes, representa um momento de ajustar o curso, de acolher novos aliados, se despedir de desafetos e fechar flancos em relação a alguma crise que está gerando desgaste. Em resumo, quando se faz mudanças significativas num time, é porque ele não está ganhando, então é preciso tomar decisões que faça o time marcar gols e melhorar sua defesa, ficar bem com a torcida e interromper crises em curso.

Pois bem, o governo Bolsonaro acaba de fazer uma importante e robusta reforma ministerial, que pode ainda não ter acabado. No intervalo de alguns dias, vários ministérios e cargos de segundo escalão sofreram mudanças. A primeira e mais sensível se deu no ministério da saúde (Como dizem os memes: Sai “General Pesadelo” e entra o cardiologista “Quidroga”). Houve mudanças também nas pastas de Relações Exteriores, Cidadania, Casa Civil, Articulação Política, Ministério da Justiça, AGU, na comunicação interna, Secretaria de Educação Básica (ligada ao MEC) e, por fim, a mais traumática, saída do general Azevedo do Ministério da Defesa, que culminou na queda de todo o comando das forças armadas.

Com tantas modificações na configuração do time que está governando o país, relacionadas com o contexto político e econômico atual, não é difícil perceber que a dinâmica dos últimos meses do governo Bolsonaro é de enfraquecimento e desgaste. E justamente por isso era necessário mexer no time para interromper a dinâmica de crise que se instalou no governo. Se vão conseguir retomar o controle da situação política, ou se a crise vai seguir seu curso, vai depender de muitos elementos, em especial da luta de classes.

Derrota de Trump, vitória de Lulapandemia fora de controle e crise econômica

Desde o inicio da pandemia, marcada pela postura negacionista de Bolsonaro, a aprovação do governo sofreu muitas flutuações. Mas foi a derrota eleitoral de Trump no segundo semestre de 2020 que sinalizou ao mundo um questionamento mais sério da opinião pública sobre o projeto internacional da extrema direita numa pandemia global.

Se somarmos a esse fato o desastroso desempenho do olavista Ernesto Araújo como ministro das Relações Exteriores e as inflexões políticas de esquerda que surgiram na América Latina (Argentina, Chile, Bolívia, Equador e Paraguai), Bolsonaro ficou mais isolado na geopolítica, e isso conta muito, principalmente num país dependente economicamente e da tecnologia de países que estão desenvolvendo vacinas.

O ano de 2020 terminou com o planalto preocupado, mas estavam com a caracterização equivocada de que a pandemia estava chegando ao fim, portanto, havia uma expectativa de dias melhores para o próximo ano, que se fortaleceu com a vitória da aliança Bozo-Centrão na eleição do congresso nacional. Mas foi a ação da nova variante da Covid-19, surgida no Amazonas logo no inicio de 2021, que abriu de fato um curso de forte desgaste do governo e da figura de Bolsonaro.

As imagens do desespero de profissionais de saúde pedindo socorro, denunciando a falta de oxigênio e outros insumos, a elevação brusca do número de mortes, a angústia de familiares e a negligência do governo em relação a compra de vacinas alertou o país de que a pandemia ainda teria muitos capítulos de horror e ainda mais pesados no Brasil. Se estava nítido que as desgraças da pandemia iriam se abater sobre o país por mais tempo, então todo o debate sobre auxilio emergencial, medidas de isolamento e dificuldades econômicas, que para o governo parecia ser uma página virada, voltou com mais força, se chocando novamente com o negacionismo de Bolsonaro e aliados. O tema do genocídio e seus responsáveis passou a ter destaque no debate público.

O clima político do país é marcado pelo agravamento agudo da crise sanitária mais séria que nossa geração já viveu, do crescimento da insatisfação popular com a falta de respostas do governo (ou com respostas equivocadas), com o inicio do colapso de todo sistema de saúde brasileiro e com o empurra-empurra entre Bolsonaro e governadores. É diante desse cenário que Lula retoma seus direitos políticos após uma longa batalha, e consegue impactar efetivamente a disputa eleitoral num país que avançava rapidamente para a marca de 300 mil mortos. Inevitavelmente milhões de pessoas passaram a comparar o Brasil governado por Lula com o que existe hoje no poder, e, por mais que se tenha críticas honestas e legítimas aos governos do PT, inegavelmente o que estamos vivendo hoje é infinitamente pior.

O efeito Lula foi tão avassalador para os cálculos políticos dos estrategistas do governo Bolsonaro, que, se havia alguma dúvida de que era necessário fazer mudanças no time, essa duvida acabou. Tanto que a máscara se tornou um artigo imprescindível para Bolsonaro e sua equipe, já no dia seguinte da coletiva de imprensa em que Lula discursou e respondeu à perguntas, se apresentando com uma postura de estadista e candidato à presidência em 2022.

Destaca-se ainda entre os principais elementos do desgaste de Bolsonaro, a forte crise econômica que afeta a maioria da população pobre, os pequenos negócios da classe media e até mesmo os investimentos do grande capital. Com a lotação até de hospitais privados de luxo por conta da Covid-19, a maioria da burguesia se convenceu finalmente que somente a vacinação em massa, aliada com medidas restritivas sérias de combate à pandemia podem ter um efeito de curto prazo para a retomada econômica. Assim, os estranhamentos entre a política das frações neofascistas do governo com setores da própria elite burguesa liberal que apoiou esse projeto chegaram num patamar insustentável; Se o extremismo radical seguir dando a linha no governo, até os negócios da alta burguesia da Av. Faria Lima estariam ameaçados. A nota assinada por centenas de economistas e banqueiros expõe a crise, tensiona o congresso nacional e obriga Arthur Lira a anunciar que ligou o “sinal amarelo”.

A relação entre Bolsonaro e as forças armadas avançou ou retrocedeu?

Dentre as principais mudanças que foram operadas na reforma ministerial, a que chamou mais atenção foi a crise com a cúpula das forças armadas. Muito se especula, Bolsonaro estaria irritado pelo fato dos comandantes não se manifestarem politicamente em seu apoio, ou por diferenças em relação ao combate à pandemia. Há até aqueles que defendem a tese que Bolsonaro quer as forças armadas alinhadas num projeto de autogolpe, e que os comandantes foram trocados por se insurgirem contra essa estratégia.

Não vamos saber com exatidão o que ocorre na relação entre o governo e a cúpula das forças armadas. Mas já temos elementos suficientes para perceber que há crise com pelo menos boa parte da cúpula e das frações militares influentes. Se não vejamos:

Em março de 2020, ainda no início da Pandemia no Brasil, o então comandante do Exército, Leal Pujol, utilizou as redes oficiais do exército para dar declarações muito diferentes das do presidente Bolsonaro. Chegou a dizer que o exército estava diante “do maior desafio da sua geração”, estimulou protocolos sanitários internos nos quartéis, alinhados com a OMS, e colocou o exército à disposição do combate à doença. Nenhuma palavra contra vacinas, contra o isolamento social, nenhum apoio velado ao governo e nenhuma declaração negacionista foi expressa durante a sua gestão à frente do comando do exército. Em Maio de 2020, foi amplamente divulgado pela imprensa o encontro de Bolsonaro com Pujol, no qual o último estendeu o cotovelo para cumprimentar o presidente que estendia a mão desdenhando, como sempre, dos protocolos sanitários.

Em novembro de 2020, outra declaração do comandante Pujol deixou claro a sua postura de não borrar as fronteiras entre as forças armadas como instituição de Estado. Disse Pujol: “Não queremos fazer parte da política governamental ou política do congresso nacional e muitos menos queremos que a política entre no nosso quartel, dentro dos nossos quartéis. O fato de, eventualmente, militares serem chamados a assumir cargos no governo, é decisão exclusiva da administração do Executivo”.

Após essa fala, Bolsonaro ainda deu uma declaração de que “poderia usar pólvora quando acabasse a saliva”, em relação ao tema da Amazônia e o governo Biden. Foi publicada no dia 14 de novembro uma nota oficial do ministro da Defesa em conjunto com os comandantes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, que reafirmava a separação entre as forças armadas e a política. Tal crise se acumulou e teve um agravamento na medida que a pandemia saía do controle, e. pouco mais de três meses depois, justamente os assinantes da nota que citamos acima, foram todos substituídos por Bolsonaro.

Reparem que a crise entre o Governo e a cúpula das forças armadas apresenta ainda outros desdobramentos, após outras crises com figuras influentes entre os generais. O general Santos Cruz, que compôs o governo Bolsonaro no seu início, e, por diferenças foi exonerado, agora tem dado entrevistas repletas de críticas ao governo e à gestão da pandemia. Como também a carta de saída do ex porta-voz do governo, general Otávio do Rego Barros, que, sem citar especificamente o presidente, tece críticas pesadas e alerta sobre as ambições golpistas instaladas no planalto. Nesse 31/03, mais uma vez o ex porta-voz vem à público em nota e diz: “O chefe do Poder Executivo, por vezes, intenta estabelecer uma ligação emocional entre as suas deliberações e a instituição de Estado: Forças Armadas”. Em outro trecho da mesma nota complementa: “O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes – não esteve presente em sua trajetória”.

É claro que há generais e outros dirigentes militares que estão mais próximos de Bolsonaro, mas há também alas e frações militares com forte base social nas forças armadas que não possuem uma concepção neofascista, que não estão a favor de apoiar aventuras golpistas e que estão, nesse momento, em luta interna contra influência do bolsonarismo nas tropas. O que já é, por si só, uma relação com zonas de conflitos explosivas, principalmente quando a caracterização das consequências da pandemia no Brasil são profundamente distintas entre presidente e os generais quatro estrelas.

Lutar pelo impeachment ou apostar tudo em 2022?

Coincidência ou não, a cerimônia de posse dos novos comandantes das forças armadas aconteceu nesse dia 31/03, quando os mesmos comemoram o golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil em 1964. O evento teve a fala do novo ministro da Defesa, general Braga Neto, que durou menos de cinco minutos, e o próprio encerrou a solenidade imediatamente. Estranhamente, nenhum general que estava tomando posse como comandantes do exército, marinha e aeronáutica deram alguma declaração sequer e não responderam nenhuma pergunta da imprensa.

Está evidente que o governo está tentando operar à duras penas uma reforma ministerial para interromper o curso de uma crise, e, no decorrer desse processo, outras crises acabam surgindo ou sendo potencializadas. Não é possível ter a dimensão do tamanho da hemorragia interna que estão tentando estancar, assim o mais prudente no momento é considerar alguns cenários. O primeiro é que a dinâmica de crise e desgaste que vive o governo poderá evoluir para um possível afastamento de Bolsonaro, ou ainda poderá ser estancada e Bolsonaro, mesmo com muito desgaste, vai para a disputa eleitoral de 2022. Por fim, menos provável, mas não impossível, a crise atual pode ser completamente superada.

Mas o tempo já não é mais um aliado de Bolsonaro. Se tudo correr bem, isto é, mesmo se não surgirem outras variantes da Covid-19, e a campanha de vacinação não sofrer retrocessos ainda maiores, sobretudo nos centros urbanos, ainda sim, teremos pelo menos mais alguns meses de horror nos hospitais, e podemos chegar rapidamente em 500 mil mortos no Brasil, um número que entraria para sempre na história do país, sob o comando da extrema direita, numa aliança com militares.

O que Bolsonaro vai poder apresentar ao país como legado para convencer a população de sua reeleição num processo eleitoral que já será no próximo ano? Há tempo para uma recuperação sanitária e econômica que encante a maioria do povo brasileiro e retome um cenário próximo do que foi em 2018? Diante do atual cenário, quando olhamos para o horizonte e tentamos responder a essas perguntas, é muito improvável a hipótese de uma recuperação rápida que retome a confiança da maioria do povo no atual governo. Isso significa que o mais provável é que a dinâmica de crise e desgaste vai seguir em frente…

Desgraçadamente, a pandemia que segue em total descontrole no país, também é um obstáculo para grandes manifestações de rua com força suficiente para acelerar o processo de crise, e quem sabe até desencadear um impeachment. Já há insatisfação suficientemente acumulada para milhares tomarem as ruas hoje, mas não é sensato propor ações dessa natureza, num momento em que já estamos chegando num recorde de 4 mil mortes diárias, com toda a rede pública colapsada, e com a perspectiva de um salto na crise sanitária, uma vez que a superlotação está sendo agora repassada aos cemitérios.

Mas isso não significa que a aposta principal é esperar 2022 para que a “festa da democracia” seja o único momento no qual todas as insatisfações com o atual governo poderão ter um acerto de contas. Mesmo com todas as dificuldades e complexidades que estamos inseridos nesse momento, é preciso lutar com todos os recursos possíveis para abrir caminhos para o impeachment. Ainda que haja diferenças e conflitos entre Bolsonaro e frações da classe dominante, crise com as forças armadas e/ou com outros poderes e mais deserções nesse governo… Sem o elemento da mobilização popular de massas, dificilmente Bolsonaro será afastado.

Mesmo que para o imediato não seja possível grandes ações de massas, é possível prepará-las para que se levantem em breve. Isso se faz com uma unidade que acumule forças em torno de uma frente única, com amplo trabalho de base, campanhas de solidariedade que dialogue com o povo pobre, ações simbólicas que chamem atenção para as nossas pautas e com forte agitação e propaganda nas redes sociais. É um processo de pavimentação dos caminhos para uma explosão de lutas sociais de rua quando houver condições sanitárias mais seguras. Nesse sentido, o ultimo trimestre de 2021 pode ser um momento de imensas mobilizações que estão hoje represadas. Pela atual situação política do país, essa hipótese não é um devaneio, é uma possibilidade concreta e é nessa chance que devemos fazer a nossa principal aposta.

 

* Integrante da Coordenação Nacional do Travessia Coletivo Sindical e Popular.