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BRASIL

Venda de vacinas a empresários vai salvar vidas e lucros do andar de cima

Medida vai adiar ainda mais vacinação de desempregados e precarizados, ampliando o peso da desigualdade, do racismo e do machismo na pandemia

Gustavo Sixel, da redação
Reprodução

O Senado aprovou no dia 25/02 o PL 534/21, sobre a compra de vacinas. O texto foi preparado em reuniões entre o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (AL), os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Flavio Bolsonaro (RJ) e o próprio Ministério da Saúde, para garantir cobertura jurídica na compra da vacina da Pfizer, que pressiona para que governos assumam os custos de possíveis processos judiciais. O PL seguiu para a Câmara dos Deputados e foi aprovado nesta terça-feira, 02 de março, o que permitirá que governadores e prefeitos comprem diretamente a vacina, diante do boicote e sabotagem do governo federal.

Mas o projeto também abriu uma grande brecha, permitindo a compra direto por empresas. A emenda que tentou impedir esse tipo de compra, de Jandira Feghali (PCdoB-RJ), recebeu apenas 92 votos. Até que todos os idosos a partir de 60 anos e grupos de risco sejam imunizados, as vacinas adquiridas por empresas teriam que ser doadas ao SUS. Em seguida, poderão ficar com metade das doses que comprarem, sem poder vender ao público.

Apesar da derrubada de emendas que permitiriam a comercialização da vacina ao público e a isenção de 30% do Imposto de Renda para as empresas, a permissão da compra é um grave ataque ao caráter público do SUS e aprofunda a política genocida do governo diante da pandemia, ao aumentar ainda mais desigualdades. “Sou totalmente contra essa venda. A vacina tem que ser para todxs e gratuita, ministrada pelo SUS. E é preciso quebrar as patentes”, afirma Maria Ines Bravo, professora da UERJ e integrante do Fórum Nacional Contra a Privatização da Saúde.

Protegendo os negócios

Desde novembro que grandes empresas e a saúde privada estavam de olho na vacina. Um grupo de empresários chegou a anunciar que estaria voando para a Índia para comprar vacinas, empreitada frustrada pela fortíssima reação negativa. Associação de clínicas e laboratórios atuam há meses fazendo lobbys para aumentarem os lucros na pandemia e vão buscar acordos para a aplicação destas doses em suas unidades, no que foram contemplados no texto.

Até empresários bolsonaristas, que há um ano bradam contra medidas de distanciamento, perceberam a importância da vacina para a economia e seus negócios. Os principais setores da burguesia perceberam que necessitam da vacina, para que possam ampliar a produção e não perder mercado para países onde a imunização está mais avançada.

Ao Valor Econômico, Luciano Hang, da Havan, afirmou que ele e um grupo de 100 empresários estão se preparando para a compra da vacina. Sem pudor, admitem que só farão após os grupos de risco terem sido imunizados, ou seja, nem pensar em doar ao SUS. Mesmo os que vierem a doar o farão segundo estratégias de marketing, abrindo mão de uma pequena parte de seus lucros.

“Furando a fila”

Em números, caso todos os grupos de risco e categorias essenciais (metroviários, professores, rodoviários, policiais)1 venham a ser imunizados, seriam 77,2 milhões de pessoas protegidas, segundo o plano nacional de imunização do Ministério da Saúde. Contando que os empresários tenham paciência até que todos esses se vacinem, restariam ainda 135 milhões de pessoas a espera da vacina, ou cerca de 63% da população.

Poderemos ter em alguns meses um novo capítulo na política de morte. Grandes empresas comprarão lotes para proteger seus executivos e parte de seus funcionários (doando ainda a fornecedores, clientes vips, políticos, acionistas, etc). Terceirizados, entregadores e demais uberizados certamente serão deixados de lado, como descartáveis.

Por que a vida de um trabalhador de uma determinada empresa valeria mais que a de um desempregado, de um trabalhador da limpeza ou a de uma mulher que trabalha em casa, no trabalho doméstico ou no cuidado dos filhos? Qual a justificativa para isso, a não ser os lucros das grandes empresas?

Andar de cima

O privilégio da elite branca do país será aprofundado, salvando ainda mais as vidas do andar de cima, enquanto a população negra e periférica seguirá aguardando a vez. Os 14 milhões de desempregados serão duplamente penalizados, com o dinheiro das empresas fazendo milhares de trabalhadores empregados terem prioridade.

A espera de milhões de pessoas pode ser ainda mais demorada. Com a Faria Lima e Vieira Souto imunizadas, a pandemia perderá destaque. As mortes por covid-19 ganhará o mesmo tratamento que o genocídio do povo negro nas favelas. A grande mídia dedicará cada menos páginas para a pandemia e ainda colocará articulistas para justificar porque os gastos para vacinas e auxílio emergencial devem ser reduzidos, para conter o orçamento público e garantir o teto de gastos.

Esse aprofundamento da desigualdade ocorrerá em um momento no qual o vírus mata cada vez mais pessoas fora dos “grupos de risco”, por conta das variantes. Em Rondônia, mais da metade dos que morreram tinham menos de 50 anos e 44% dos que perderam a vida não tinham nenhum tipo de comorbidade. Ou seja, a ampla maioria da população se encaixa nesse perfil.

É preciso dizer não a esta política de morte, na qual o lucro manda mais do que a vida. Esta parte do projeto precisa ser derrubada, garantindo que toda a vacinação ocorra através do SUS, de forma gratuita.

Também é preciso aprovar a quebra das patentes, para que países inteiros, em especial os mais pobres, da África e da América Latina, não fiquem reféns de chantagens das farmacêuticas, como a Pfizer. Principalmente em períodos de emergência social e sanitária, o controle sobre as vidas não pode estar na mão de grandes corporações que atuar segundo a lógica do lucro. É preciso quebrar as patentes já e garantir a produção no país, através das instituições públicas como a Fiocruz e o Butantã.

As grandes empresas, em especial do setor financeiro, acumularam lucros ao longo da pandemia. Os milionários ficaram ainda mais ricos. Em vez de liberar a compra, por que não taxar os lucros destas grandes empresas, para financiar a produção em massa das vacinas, os custos com o auxílio emergencial e com o combate à pandemia?

 

Atualizado em 03 de março, às 10h.


NOTAS

1  Estimativa populacional para a Campanha Nacional de Vacinação contra a covid-19 – 2021*
Pessoas com 60 anos ou mais institucionalizadas (156.878), Pessoas com Deficiência Institucionalizadas (6.472), Povos indígenas Vivendo em Terras Indígenas (410.197), Trabalhadores de Saúde (6.649.307), Pessoas de 80 anos ou mais (4.441.046), Pessoas de 75 a 79 anos (3.614.384), Povos e Comunidades tradicionais Ribeirinhas (286.833), Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas (1.133.106), Pessoas de 70 a 74 anos (5.408.657), Pessoas de 65 a 69 anos (7.349.241), Pessoas de 60 a 64 anos (9.383.724), Comorbidades (17.796.450), Pessoas com Deficiência Permanente Grave (7.744.445), Pessoas em Situação de Rua (66.963), População Privada de Liberdade (753.966), Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade (108.949), Trabalhadores da Educação do Ensino Básico (creche, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio, profissionalizantes e EJA (2.707.200), Trabalhadores da Educação do Ensino Superior (719.818), Forças de Segurança e Salvamento (584.256), Forças Armadas (364.036), Trabalhadores de Transporte Coletivo Rodoviário de Passageiros (678.264), Trabalhadores de Transporte Metroviário e Ferroviário (73.504), Trabalhadores de Transporte Aéreo (64.299), Trabalhadores de Transporte Aquaviário (41.515), Caminhoneiros (1.241.061), Trabalhadores Portuários (111.397), Trabalhadores Industriais (5.323.291). Total (77.219.259) Fonte: CGPNI/DEVIT/SVS/MS
Plano Nacional de Vacinação. Disponível aqui