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MUNDO

Portugal: o movimento negro e antirracista contra-ataca

Manuel Afonso, do Semear o Futuro, Lisboa (Portugal)

Já perdemos a conta aos artigos e notícias que, nesta página e noutras, se iniciam desta malograda forma: “Nos últimos meses vimos uma ascensão dos discurso de ódio racista, das agressões e ameaças a ativistas antirracistas, negros, negras e ciganas, potenciados pelo crescimento do fascismo e a conivências das autoridades”.

Infelizmente, mais uma vez, motivos não faltam para repetir estas linhas. Todo o pretenso debate – que de debate pouco teve – em torno da morte da Marcelino da Mata, repete, com contornos distintos e conteúdo semelhante, o que víramos aquando dos assassinatos de Luís Giovani, Ihor Homeniuk e Bruno Candé. Ou aquando das agressões a Claúdia Simões ou a uma família negra no bairro Jamaica. E aquando do episódio vergonhoso em que um deputado fascista afirmou impunemente que outras deputada, Joacine Katar Moreira, deveria “voltar para a sua terra”. E também quando das sucessivas investidas noturnas de grupos racistas, seja na forma de parada supremacista branca na sede do SOS Racismo, seja nas pichagens fascistas em escolas ou, recentemente, na casa de um candidato negro à liderança do Sindicato de jogadores de futebol. O caso “Marcelino da Mata” voltou a juntar todos os ingredientes. Vimos o branqueamento histórico, na forma de saudosismo colonialista a mostrar as garras. Assistimos à direita conservadora e fascista a concorrer pelo protagonismo na investida fascizante. Constatámos o ataque a um militante negro e antirracista, Mamadou Ba, na forma de uma infame petição que pede a sua deportação. Consternados, mas já não incrédulos, verificamos não só a conivência, mas a colaboração, dos que fazem juras vazias sobre a democracia e a liberdade – quando a maioria dos deputados aprovou um voto de louvor ao criminoso de guerra Marcelino da Mata e o Presidente da República marcou presença na sua homenagem fúnebre. Vimos, ouvimos e lemos a Comunicação Social oficial numa vertigem cacofónica que branqueia o crime, o ódio, o racismo e o fascismo mesmo quando essa não é a intenção de alguns dos seus elementos.

Já o fizemos antes, porém reafirmamos a nossa total, intransigente e incondicional solidariedade com Mamadou Ba. Reforçamos que Mamadou Ba é, mais uma vez, atacado por ser uma as principais vozes contra o racismo sistémico, contra a violência policial e pela descolonização interna – por ser negro e por ser um militante antirracista, socialista e internacionalista. Os representantes mais ferozes do capitalismo português sabem bem que este assenta e assentou sobre o colonialismo e a opressão racial, bases estruturantes do capitalismo racial à portuguesa e cada vez mais recorrem ao ódio para defender esses interesses.

Em Carne e Osso

Há, no entanto, mais do que isso para ser falado. Poucos dias depois de ser notícia a petição racista e criminosa que pedia a deportação de Mamadou Ba, militantes e amigos começaram a organizar a resposta. Foi assim lançada a página Em Carne e Osso com Mamadou Ba. Nesta, ativistas, amigos, deputados, sindicalistas, artistas, militares, académicos ou “simples” cidadãos preocupados, escreveram, filmaram, musicaram ou desenharam mensagens de apoio, Sob o mote “Somos pessoas que não podem ficar caladas face às iniciativas que tentam transformar o antirracismo e ativistas antirracistas em inimigos da democracia”, nomes como Dino d’Santiago, Ana Gomes, Grada Kilomba, Francisco Louçã, Miguel Esteves Cardoso, Carlão e muitas e muitos outros deram a cara. São mais de 240 testemunhos (são cada vez mais!) que, ao contrário das assinaturas mudas na petição fascista, muitas delas certamente falsas ou incautas, dão o corpo ao manifesto. Vale a pena ler, ver e ouvir. Os testemunhos continuam a ser recolhidos e certamente irão crescer.

Sem ilusões, porém sem abdicar da exigência, constatamos que a Comunicação Social praticamente ignorou esta iniciativa, ao contrário da petição on-line que pedia a deportação de Mamadou Ba, largamente noticiada. Da mesma forma, sublinhamos a ausência de qualquer palavra do Governo ou de seus representantes, que aprovaram o voto de louvor a Marcelino da Mata, criminoso da guerra colonial, mas não mostram qualquer solidariedade com um destacado militante antirracista ameaçado. Ainda que poucos se lembrem de endereçar esta exigência a António Costa e aos seus Ministros, uma palavra de solidariedade com Mamadou Ba é o mínimo que se pede a um Governo que se diz de esquerda e que, em dias de festa, afirma querer combater o racismo!

Erradicar o Racismo

Não se fica por aqui a solidariedade militante com Mamadou Ba. Se é essencial cavar trincheiras de apoio ativo com o dirigente do SOS Racismo, igualmente importante é passar ao contra-ataque. A defesa e a construção de um programa, concreto, radical, embasado numa visão de mundo proletária, tem sido uma das principais lutas de Mamadou Ba – precisamente por isso é tão atacado. Por isso, é particularmente importante a iniciativa “É preciso erradicar o racismo – Carta de apoio a Mamadou Ba”. Esta carta aberta, endereçada a António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e a Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, cumpre precisamente esse papel: o de transformar o apoio a Mamadou Ba na enunciação de um programa político para “erradicar o racismo”.

Assinada por mais de uma centena de militantes e por 16 organizações antirracistas, esta iniciativa dá corpo a propostas sucintas, radicais e unificadoras. “A recolha de dados étnico-raciais; a a promoção de políticas anti-segregacionistas (i.e., habitação, cultura e educação); a revisão descolonizadora dos currículos escolares; o garante de uma lei da nacionalidade que consagre o direito de solo e a desburocratização de aquisição de nacionalidade; a instituição inequívoca do racismo como crime público; o combate à brutalidade policial e o fim da discriminação no acesso à justiça; a extinção de organizações políticas e partidárias que promovam o discurso de ódio.” – eis as medidas enunciadas. Não sabemos se os destinatários da carta a lerão, menos ainda se lhe responderão – é pouco provável que o façam. Mas esta carta, subscrita por um crescente “Movimento Negro em Portugal” é tão importante porque cria movimento, faz pontes e junta forças. Fá-lo em torno de ideias radicais e práticas unitárias.

É unânime, entre todas e todos os que combatem o racismo e o fascismo, a necessidade de sair da esfera digital e da enunciação de propósitos para sair à rua, organizar nas bases e confrontar frontalmente o poder – não haverá diferenças nesse terreno. Porém, nem sempre é óbvia a necessidade da articulação de ideias e forças para o poder fazer de forma consequente e eficaz – mesmo quando isso demora mais que a simples marcação de datas simbólicas para protestos pontuais. Estas duas iniciativas – “Em Carne e Osso com Mamadou Ba” e “É Preciso Erradicar o Racismo – Carta de Apoio a Mamadou Ba” – são tão importantes precisamente por ajudaram a estabelecer as bases estratégicas para um combate antirracista amplo, organizado e combativo. A luta não segue dentro de momentos: ela já está a acontecer. Fascistas, racistas e aqueles que com eles são coniventes que se preparem, a mudança está a passar por aqui.