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O governo brasileiro é mesmo o pior do mundo no combate à pandemia?

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

No início de janeiro, foi divulgada uma pesquisa produzida pelo Lowy Institute (um instituto australiano de perfil conservador), que apontou o Brasil na última colocação entre 98 países em termos de políticas públicas de enfrentamento à pandemia. Outra pesquisa, produzida pelo Conectas Brasil em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da USP, comprovou que Bolsonaro executou uma estratégia institucional voltada à propagação da Covid-19.
 

O resultado destas pesquisas confirma o que muitos já percebem empiricamente há meses, e que reafirma uma avaliação que já viemos discutindo há tempos.[2] Na citada pesquisa pelo Lowy Institute, o Brasil é o 98º em 98 países, com atingindo 4.3 pontos em 100, enquanto a Nova Zelância desponta no extremo oposto com 94.4 pontos. A mediana ficou em 47.4 pontos (Nigéria, em 49º lugar).[3] A pesquisa levou em consideração número de casos, de óbitos, de casos por milhão, de óbitos por milhão, de testes realizados por caso confirmado e de testes por mil habitantes.

Dentre as objeções levantadas pelos bolsonaristas a ambas pesquisas e à responsabilização de Bolsonaro pela tragédia brasileira em curso, a mais recorrente argumenta que o Brasil é “apenas” o 26º no mundo em mortes por milhão de habitantes, e que portanto não pode ter a pior política. De fato, esta é a posição do país no quadro do wordometes (26º, com 1.141 mortes por milhão, entre 219 países e territórios considerados[4]). Antes de seguir, é imprescindível lembrar que mesmo que fôssemos “apenas” o 26º pior, já seria uma péssima posição, o que fica ainda mais evidente quando observamos que temos um índice 3.6 vezes superior à média mundial (314.5 morte por milhão, na mesma data). Mas cabem considerar três fatores que demonstram efetivamente temos o pior governo do mundo também no trato da Pandemia:

  1. O Brasil tem uma subnotificação muito superior à média mundial. Somando-se aos 243.457 óbitos oficializados, os 79.114 óbitos em investigação ou registrados como Síndrome Respiratória Aguda Grave não especificada até 8 de fevereiro,[5] teríamos já 322.631 óbitos, ou 1.510 óbitos. Esta cifra seria suficiente para colocar o país entre os 11 piores.
  2. Os dez países ou territórios que tem os piores índices (os quais ainda estariam acima do Brasil mesmo se contássemos os óbitos por SRAG não especificada) se situam no Hemisfério Norte e já atravessaram dois invernos desde o início da Pandemia, o que implica uma fator de sazonalidade muito mais desfavorável. Dentre os 25 países com piores índices, apenas um (o Peru) situa-se no Hemisfério Sul.
  3. Considerando-se ainda o grupo de 27 países e territórios com os piores índices de óbitos por milhão – dentre os quais situam-se alguns com população muito reduzida (Gibraltar, San Marino, Andorra, Liechtenstein), a grande maioria tem um percentual da população com mais de 80 anos muito superior ao do Brasil –6,6% em Portugal, 6.2% na França, 6.2% na Espanha, 5,3%  na Eslovênia, 5.1% no Reino Unido, 5,2% na Suécia, 4,8% na Bulgária, 4% na República Checa, 3,9% nos Estados Unidos, e apenas 1.8% no Brasil. [6] Como se sabe, é nesta faixa etária que há a maior letalidade por Covid. É esperado que havendo uma incidência análoga em dois países, a letalidade será maior naquele que tiver o mais alto percentual de idosos. Se comparamos os estratos acima de 70 anos, ou mesmo os estratos acima de 60 anos, igualmente temos no Brasil percentuais mais baixos que todos os países citados. Isto significa que a letalidade por faixa etária é mais elevada no Brasil, ainda que isto não se expresse inteiramente na letalidade global em virtude da diferente composição populacional. Em outras palavras, enquanto percentual de idosos no Brasil é muito menor, o índice de letalidade global é semelhante ou levemente menor.

Dentre todos os 26 países com piores índices de óbitos por milhão, apenas México (0,8%) e Peru (0,8%) tem percentual da população acima de 80 anos próximo ao do Brasil. Mas no caso destes dois países, para além de políticas públicas igualmente desastrosas[7], há outro fator que os distingue radicalmente do Brasil: nenhum deles conta com um sistema público de saúde com condições análogas às que o Sistema Único de Saúde possui. Portanto, alcançaram resultados semelhantes, mas não se pode desconsiderar o fato de que o Brasil conta com instrumentos e recursos fundamentais ausentes naqueles países.

Para além dos índices objetivos considerados pelo Lowy Institute, poderíamos elencar inúmeros outros fatores fundamentais da abordagem bolsonaristas que, se fossem considerados, reforçariam ainda mais a condição de pior política pública para o Brasil: a propagação de medicamentos comprovadamente ineficazes, o estímulo a aglomerações, o desestímulo ao uso de máscaras, a relativização do conhecimento científico, para não falarmos na propagação de fake news pelas redes sociais. E, além disso, como registra o historiador francês Henri Vignaud, Bolsonaro é o único líder político que desencorajou a vacinação estando no governo nos últimos 200 anos.[8] Portanto, é possível afirmar sem qualquer dúvida que o governo Bolsonaro tem o pior desempenho mundial frente à Pandemia.

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html

[2] Ver a respeito CALIL, Gilberto. Negacionismo e guerra de informações na construção da tragédia brasileira sob a pandemia. Revista Marx e o Marxismo, n. 14, 2020, disponível em http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/372; e CALIL, Gilberto. O governo Jair Bolsonaro e a expansão da Covid-19: uma política deliberada de expansão da Pandemia. In: ACUÑA, John et alii (orgs). Cartografias de la Pandemia en tempos de crisis civilizatória. Acapulco: Ediciones de la Biblioteca, 2020. Disponível em https://drive.google.com/drive/folders/1CFAShAjx3U9UWiyoS4Jz1Ux9CI-i1GxB

[3] https://interactives.lowyinstitute.org/features/covid-performance/#rankings

[4] Estes e todos os índices considerados aqui são até o final do dia 18/2/2021.

[5] https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/fevereiro/11/boletim_epidemiologico_covid_49_11fev21_19h37.pdf; e https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/janeiro/07/boletim_epidemiologico_covid_44.pdf

[6] https://www.populationpyramid.net/pt/brasil/2019/

[7] Na classificação do Lowy Institute, o México é o penúltimo (97º), com pontuação de 6.5, e o Peru não entrou no grupo dos 98 países analisados.

[8] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55939354

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