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CULTURA

Na minha terra carnaval

Mariana Coimbra, de São Paulo, SP
Sobre foto de Fernando Maia \ Rio Tur / Fotos Públicas

Na minha _terra Carnaval_ as crianças estão amontoadas nas janelas. Elas olham com espanto a rotina atravessada por essa gente girando pelo asfalto, espremidas entre os carros, dançando no meio fio. As crianças naturalmente se entrincheiram e sabem brincar todos os dias. A nós, só resta o carnaval. Por isso mesmo, as crianças suspeitam que sejamos tolos, nós que estamos embriagados e menos propensos a tolerar que o nosso riso e nossa graça sejam abandonados. É breve, vai acabar tão já, mas é carnaval e as crianças nos autorizam: pode passar. As ruas da minha _terra Carnaval_ são as suas testemunhas.

Há nosso suor. Ficaram os automóveis interrompendo o passo, pobres carros, não sabem o que eu sei sobre a purpurina, o álcool e as mãos tatuadas em sua lataria. As ruas da minha _terra Carnaval_ guardam muitos segredos, mas só os sabem os passantes. Estamos debochando de nossas dores e, mal amantes, amamos melhor na sua nudez, no despudor, no cordão e no coro das vozes embargadas pelo restante dos dias. Na minha terra Carnaval se canta e se grita e até se sussurra, tudo para desatar esses nós do corpo perdido.

No mais dos dias nós não estamos, mas na _terra Carnaval_ a gente se acha. A gente pisa com vontade essa rua que nos vira as costas e nos jogamos, porque não, nas calçadas e nos muros que têm donos. Retomamos o comum – ou sua miragem. Encontra-se certa rebeldia, misturam cores, transam pernas, os peitos arfam e se transtornam. O carnaval é trégua.

Na verdade tudo ainda é engano, foi só um lampejo e minha _terra Carnaval_ recai logo em suspeição. Eu a queria em verdadeira liberdade, toda a gente a andar sem fim pelas ladeiras. Poderíamos largar de todos os batentes e ousar como foliões infinitos que desafiam os relógios de fazer dinheiro. Roubando o tempo poderíamos carnavalizar esse nosso ‘caminhozinho’.

Mas ainda estou nas fronteiras da minha terra Carnaval, estou contrariada e um pouco triste, só que aqui ainda é possível se deslumbrar. É possível o céu desabar em água, o corpo estremecer e abraçar a chuva. Abraçar a menina. Com sorte, dançar no temporal que encerra nossa justa fuga. A quarta-feira de cinzas não tarda, mas é longa e dura um ano inteiro.

– II –

( _a quarta-feira de cinzas que não teve fim_ )

Nessa quarta-feira de cinzas sem fim, não terá carnaval. Esse, que julguei poder ser toda uma terra, há muito nos deixou todos estrangeiros. Não há mais o conhecido meio-fio por onde deixaremos os minúsculos brilhos e nossos corpos sentados por questão de segundos.

Estarmos todos expatriados do carnaval – única pátria possível – é a certeza de que desencantamos e estamos à espera de algo indizível. Irrealizáveis, por perecer nosso tempo resistente à dor. Sem esse lampejo, parece maior e muito mais quieta a nossa solidão.

O lamento é não poder sair às ruas e, bem ali onde estarão as caixas de som, encontrar _os meus_, a quem chamo meus amigos, cúmplices daquilo que permitimos ser uma breve alegria. A cada ano, encontrá-los, todos belos de carnaval, significou me encontrar. E aí talvez resida a semente do que nos faz habitantes dessa terra Carnaval perdida: ela só se faz junto.

(O carnaval vive nos olhos dos meus).

E a ele voltaremos.

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