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Faremos Palmares de novo: os protestos antirracistas e a luta por outro mundo

Malu Nogueira, de São Paulo, SP*,  Gabriel Santos, de Maceió, AL*

Prédio incendiado por manifestantes em Minnesota (EUA), após assassinato de George Floyd

O dedo, desde pequeno geral te aponta o dedo
No olhar da madame eu consigo sentir o medo
‘Cê cresce achando que ‘cê é pior que eles
Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo
Ladrão, então peguemos de volta o que nos foi tirado
Mano, ou você faz isso
Ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado

Gustavo Marques (Djonga)
Hat-Trick

Com a morte de George Floyd, homem negro vítima de violência policial, um levante antirracista incendiou o mundo a partir dos Estados Unidos, no mês de junho de 2020. O Brasil não passou ileso de influências dessas mobilizações e, combinado com casos emblemáticos de violência policial que vitimaram jovens negros como João Pedro Matos, de 14 anos, no Rio de Janeiro, se deparou com a urgência da centralidade do eixo Vidas Negras Importam na luta contra a ameaça fascista.

Na maior parte das cidades, os atos em defesa da democracia tiveram como protagonismo jovens negros, mostrando que estes são linha de frente no combate ao bolsonarismo. Também trouxe o debate que a suposta “normalidade democrática” sempre ocorreu com o genocídio do povo negro.

Por que há diferenças entre a luta antirracista de lá e daqui se é incontestável que, assim como nos EUA, existe racismo no Brasil?

No decorrer do processo, no meio de um honesto e significativo setor do ativismo, não foram raras as comparações entre as mobilizações dos dois países. Então por que há diferenças entre a luta antirracista de lá e daqui se é incontestável que, assim como nos EUA, existe racismo no Brasil?

Se olharmos com cuidado, poderemos compreender que o racismo que aqui se estrutura não se dá exatamente como o de lá. É comum a ambos os países o histórico colonial da escravidão, que os colocam no contexto internacional de desenvolvimento do sistema capitalista a partir da escravização de povos sequestrados de África. Nos EUA, além da diferença entre norte e sul que, entre outros fatores, influencia no proporcional menor contingente de pessoas negras em relação ao Brasil, o contexto do período pós-abolição é marcado por um regime segregacionista. Tal fator é um elemento-chave para compreensão de como se forja a identidade negra lá: essencialmente pela política da “gota de sangue” que torna o indivíduo negro.

O Brasil foi o país das Américas a receber o maior contingente de pessoas escravizadas — pesquisadores estimam um número próximo aos 5 milhões. No contexto do pós-abolição, com essa significativa quantidade de pessoas negras, o racismo aqui se desenvolve para além da histórica violência e eliminação física pelas forças do Estado. Trata-se da sofisticada tecnologia racista que cria e populariza ideias como a da escravização branda; do início da miscigenação por relações amorosas entre senhores de engenho e mulheres escravizadas; ou ainda, da inexistência do racismo no Brasil.

Hoje, nomeamos categoricamente essa tecnologia como mito da democracia racial, que foi, e ainda é, uma ideia difundida na sociedade brasileira. Suas consequências são cruéis. Um significativo exemplo se manifesta, inclusive, na dificuldade de associação automática entre violência policial e questão racial.

Diante da crise se desnudam desigualdades históricas nos Estados Unidos, no Brasil e no mundo todo. Especificamente nesses dois países a letalidade do COVID-19 é, proporcionalmente, maior entre a população negra. Não por aspectos biológicos, mas pelas profundas desigualdades socioeconômicas que impedem essa parcela da população de acessar o básico direito à vida.

As manifestações antirracistas ao redor do mundo, podem ser lidas como gritos pelo direito de respirar. São aqueles que vivem a exploração a partir da opressão racial a linha de frente contra a ofensiva brutal que diz respeito às vidas do conjunto da classe.

A luta antirracista e a construção do anticapitalismo

Quando falamos sobre Brasil, país mais negro fora de África, falamos sobre uma Nação que tem em sua estrutura de funcionamento o racismo como fundante. Seja no passado, com a invasão do continente africano e sequestro dos negros para o trabalho escravo nos grandes latifúndios, seja hoje, com os subempregos e genocídio da população negra. O racismo não é uma mancha na formação social brasileira que pode ser retirada como em uma roupa suja. O racismo é algo que estrutura nossa sociedade e perpassa todas as relações. Ele seria algo como uma linha que costura todo o manto que é nossa sociedade, não um resquício do tempo de escravidão que com o passar do tempo virá a desaparecer. É algo que se reinventa e, portanto, indissociável do funcionamento do capitalismo e do Estado brasileiro.

Em nosso país o modo de produção capitalista foi uma imposição de potências estrangeiras, não um desenvolvimento das contradições de estruturas pré-capitalistas. O capitalismo brasileiro surge inserido no mercado mundial, com nosso país sendo exportador de matéria prima e riqueza para a Europa. Ele surge graças ao trabalho no campo, e não na cidade, e tendo a força de trabalho escravo dos negros, vinda do outro lado do Atlântico, de maneira forçada. A República em nosso país escravocrata surge mantendo a estrutura de Poder do período anterior e excluindo de direitos sociais a população negra.

Na história, ao olharmos para o passado, mais importante do que vermos como era determinada situação é ver aquilo que se mantém e como se transforma ao longo dos anos. Algo que todo o período histórico de nosso país tem em comum é o sangue e suor negro sendo derramado em nosso solo. Se a Independência ocorreu ainda com a escravidão e a República foi proclamada pelas elites sem uma participação popular, temos um Estado Democrático de Direito que se realiza em um processo excludente no qual a democracia não atinge aqueles de pele negra. O colonialismo que fundou o Brasil se modificou, mas se mantém presente. Hoje os negros brasileiros sofrem com o processo de exclusão social, falta de direitos básicos, apagamento de sua história coletiva e individual, criminalização de sua cultura e criminalização de seus corpos que se materializa no genocídio negro e ocupação policial das periferias e favelas Brasil a fora.

O governo Bolsonaro confirma o ditado popular que diz que “tudo que está ruim pode piorar”. O fascismo brasileiro tem no racismo uma de suas pautas centrais. Quando o bolsonarismo aponta que “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” e que a “esquerda só protege vagabundo” está falando de corpos negros construídos através da ótica racista como vagabundos e bandidos. Podemos dizer que o discurso contra a esquerda é fundamentado a partir dessa ideia, pois a esquerda “protegeria” estes negros criminosos que seriam o que o Brasil tem de pior. Esse discurso bolsonarista é a intensificação da criminalização dos corpos negros, dos territórios periféricos e de genocídio.

Ao falarmos que Vidas Negras importam, portanto, estamos dizendo que esta pauta deve ser linha de frente nas lutas sociais, pelas liberdades democráticas e na construção de um projeto anticapitalista. Combater o mito da democracia racial é desmoronar a suposta harmonia entre senhores e escravizados. É desmascarar as faces que cobrem as desigualdades sociais em todo nosso território. O antirracismo como fundamento tem o potencial de combater todo o edifício que se estrutura através do racismo.

Sem o antirracismo como centralidade é impossível construir uma prática verdadeiramente anticapitalista.

É preciso que a pauta antirracista perpasse o programa, os métodos, ações práticas e interpretações da realidade das organizações que se propõe a construir um mundo diferente. Mais do que apenas subir hashtags ou palavras de ordem, é preciso ter compromisso real com esta pauta. Sem o antirracismo como centralidade é impossível construir uma prática verdadeiramente anticapitalista.

Lélia Gonzalez afirmava que a única tentativa de efetivação de uma verdadeira democracia em nosso país só ocorreu nos Quilombos, pois estes foram em seu tempo a construção de uma sociedade oposta ao Brasil colonial e seu capitalismo nascente. Foi na República de Palmares que vimos uma sociedade que não se baseou na discriminação racial e que tinha um funcionamento de direitos iguais e uso social do solo.

Se o passado serve como uma lamparina para iluminar estes tempos sombrios, precisamos olhar para as lutas dos de baixo e para as rebeliões da senzala. É preciso se aquilombar e fazer novamente Palmares, com a rebeldia da juventude, o violeta do feminismo, o arco-íris das LGBTQI+, com o futuro do ecossocialismo, com o punho erguido de negras e negros brasileiros e seus antepassados para, assim, avançar na construção deste mundo novo.

Por fim, é preciso dizer que um antirracismo que não seja anticapitalista é frágil. E um anticapitalismo só merece ser chamado por este nome se for essencialmente antirracista. As vidas negras importam, a de fascistas não.

Axé.

*Malu e Gabriel são militantes do Afronte!.

Marcado como:
Revista Afronte