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OPRESSÕES

O empresário, o prefeito, a justiça e a vítima culpada – uma reflexão sobre a cultura do estupro no Brasil

Em menos de uma semana, Florianópolis mostrou ao Brasil como o poder público trata as vítimas da violência sexual em nosso país.

Fanny Spina França*, de Florianópolis, SC, e Sonara Costa*, do Rio de Janeiro, RJ

Florianópolis tem nos últimos dias sido palco de notícias assustadoras, onde o poder público mais uma vez demonstra sua conivência com a violência física, sexual e psicológica contra as mulheres. A cidade é a quarta capital brasileira com o maior número de estupros e o Estado de Santa Catarina também ocupa esta posição no ranking do país. Os dois casos que vamos falar são exemplos da realidade da dita “Ilha da magia”.

Primeiro temos o caso da jovem Mari Ferrer, blogueira de moda e promoter, na época com 21 anos, estuprada pelo empresário André Aranha em um famoso beach club da cidade, o Café de La Musique. Em dezembro de 2018 a jovem expôs o caso em suas redes sociais, relatando como ela havia sido dopada e estuprada, denunciou também a humilhação que passou ao denunciar a violência sofrida. Ela usou suas redes sociais como forma de pressionar a Justiça, mas em agosto desse ano o Facebook bloqueou seu Instagram devido ao processo judicial. Em 2019 o processo foi aberto, e em setembro deste ano a sentença na primeira instância absolveu André Aranha do crime de estupro de vulnerável, mesmo diante de todas as provas contundentes: as roupas ensanguentadas, o hímem rompido, o DNA e o sêmem do empresário nas roupas e no corpo da jovem e imagens gravadas por uma câmera. Nesta semana o caso voltou a ter repercussão devido a matéria do The Intercept Brasil que mostra Mari Ferrer sendo humilhada durante seu depoimento pelo advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho, as cenas divulgadas são revoltantes, pois mais uma vez Mari Ferrer foi violentada, desta vez pelo Estado. Vale destacar que Gastão é advogado de conhecidas figuras bolsonaristas, como Sarah Winter.

O outro caso foi o vazamento na última quinta-feira (29/10) do Boletim de Ocorrência e de um vídeo prova de uma denúncia de estupro envolvendo o atual prefeito e candidato a reeleição Gean Loureiro. A denúncia partiu de uma funcionária comissionada da Secretaria de Turismo da cidade, que depois de muitas investidas do prefeito, resolveu gravar o ato para que sua palavra tivesse validade. Quando o caso que ocorria em segredo de justiça foi vazado, expondo o corpo e o rosto desta mulher, desacreditada antes mesmo de qualquer investigação, ela foi mais uma vez violentada através das redes, sendo xingada como se tivesse algo a ganhar com a divulgação dessas imagens. Obviamente, como estamos em período eleitoral, o caso está sendo tratado como oportunismo eleitoreiro e sendo varrido para debaixo dos tapetes, enquanto Gean Loureiro se mantém à frente no pleito.

Desta forma, em menos de uma semana, Florianópolis mostrou ao Brasil como o poder público trata as vítimas da violência sexual em nosso país. É como se uma mulher ao denunciar um estupro fosse automaticamente colocado no banco de réu, se questiona mais a vítima do que o estuprador. No Brasil, segundo o 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, em 2018 houve um crescimento de 5% no número de estupros no país, chegando ao número recorde de 66.041 casos, uma média de 180 por dia, os estudos apontam que o número deva ser bem maior, pois como muitas vezes a denúncia se configura em uma segunda violência para as vítimas muitas se calam. Somado a isto o fato de que 54% destes casos são com crianças de até 13 anos, a maioria violentada por alguém de seu círculo de convívio. Essa dupla violência, uma vez pelo agressor, outra pelo Estado, é a razão não só das subnotificações, como também da luta feminista contra a exigência de Boletim de Ocorrência para realização de abortos em caso de estupro.

Isso é fruto de uma cultura do estupro que é enraizada em nossa sociedade, onde muitos acreditam que homens tem “passe-livre” para o corpo das mulheres. Muito se diz que isso acontece se a mulher não se cuida, depende sempre da sua roupa, a hora que estava fora de casa, se tinha consumido bebidas alcóolicas. Isso é reproduzido constantemente nas músicas, filmes, novelas, notícias, entre outras, naturalizando a objetificação das mulheres e o estupro, afinal o homem tem o desejo sexual incontrolável e se uma mulher não quer passar por isso ela que “se dê respeito”. Sendo assim, constrói-se a ideia de que a vítima na verdade é a grande culpada por ter sido violentada.

Falar sobre a cultura do estupro é também compreender como a nossa sociedade foi constituída através do estupro, a própria miscigenação brasileira é fruto dessa violência contra mulheres indígenas e negras, Estes são eventos que parecem estar anos de distância da gente, mas que tem um profundo impacto em nossa consciência Essa concepção não fica apenas na consciências das pessoas, ela é alimentada também nas delegacias, tribunais, Ministério Público, procuradorias etc, e por isso podemos ver que muitos casos acontece uma demora para serem encaminhados, a investigação é praticamente nula e por fim a falta de estrutura profissionais especializados com sensibilidade para lidar com esses casos. Mas também devemos ressaltar nestes casos a seletividade da justiça, pois quando se tratam de homens ricos, poderosos e na maioria dos casos brancos, são mobilizadas todas as forças para atrasar ao máximo o processo e/ou inocentar o acusado. Quanto tempo se demorou para investigar e julgar o médico Roger Abdelmassih? Quantas mulheres mais vão ter que denunciar João de Deus para que seja condenado? E o filho do dono da RBS? Quantos jogadores de futebol perderam o prestígio após provas cabais de seus estupros?  Esses casos levam anos para serem concluídos e, em muitos casos, quando concluídos absolvem os acusados.

Os exemplos dados servem para denunciarmos como o nosso sistema penal e judiciário de fato escolhe quem pune pelo critério de raça e classe, pois ao mesmo tempo em que anda a passos de tartaruga para investigar um empresário e por fim o absolve mesmo com todas as provas contundentes, porém tem um incrível rapidez ao condenar e prender um homem negro como Rafael Braga por estar com um pinho sol na mochila. Não é possível que isso seja naturalizado. Defendemos uma justiça que esteja ao lado das mulheres e que não se apoie em um sistema punitivo explicitamente racista.

Este debate também serve para apresentarmos uma demanda muito importante do movimento feminista que é a educação sexual nas escolas. Infelizmente a direita conservadora tem deturpado este tema para dizer que seria ensinar “sacanagens” e obscenidades em sala de aula. A proposta de educação sexual serve para que possibilitemos que jovens possam entender o seu processo biológico individual, a diversidade biológica e sexual, ensinar o respeito e também os limites a serem estabelecidos no contato com outra pessoa baseado no consenso, como diz o ditado: “ensinar as meninas a não temerem e os homens a respeitar”. Hoje a maior parte de jovens e adolescentes tem o primeiro contato com o tema da sexualidade através da pornografia que reforça os padrões de objetificação, de não respeito ao consentimento e de violência.

É preciso combater o avanço das ideias conservadoras, largamente propagandeadas pelo bolsonarismo e que tem penetrado tão profundamente em nossa sociedade. Um presidente que cotidianamente ofende e violenta mulheres repórteres, que já disse que uma mulher não merecia ser estuprada por ser feia, e cujo Ministério da Mulher zera as verbas de combate a violência não pode governar. Para fazermos justiça por Mari Ferrer precisamos responsabilizar seu agressor, o Juiz que permitiu sua dupla violência, e pelo fim da cultura do estupro gritar bem alto: Fora Bolsonaro!

 

* Fanny Spina França e Sonara Costa fazem parte da Resistência Feminista.