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Especiais

Uma cidade para os 99%: democratização do poder e orçamento público

Editorial programático especial

Em função de sua natureza e de suas responsabilidades, o poder político municipal incide de forma muito direta no cotidiano da população, organizando algumas das condições mais básicas da vida social, como educação, saúde, saneamento, transporte e habitação, dentre outras. Com frequência, a concretude assumida por tais questões é manejada com o intuito de dissimular o seu caráter político. Resultam daí programas que se limitam a propor formas de mero gerenciamento da realidade já existente, afirmando um ideal tecnocrático que apaga os conflitos sociais e políticos. Nessa linha, mesmo forças da esquerda adotam perspectivas como a de construir “cidades para todos”.

Do ponto de vista de um projeto socialista, ao contrário, se as contradições que caracterizam o capitalismo aparecem de forma particularmente concreta no nível municipal, nosso papel não deve ser escondê-las, mas torná-las cada vez mais visíveis. Não se trata, portanto, de uma questão de gestão ou de eficiência. O poder municipal deve ser encarado como uma arena importante da luta de classes em suas múltiplas manifestações: também aí, afirmar os interesses da classe trabalhadora e oprimida significa, necessariamente, combater os interesses da burguesia. Garantir o acesso universal à habitação implica corroer as bases do capital imobiliário, oferecer saúde e educação gratuitas e de qualidade implica reduzir o mercado potencial para os empresários desse setor e assim sucessivamente. A cidade que queremos é a cidade para a maioria trabalhadora, e não para a minoria exploradora dominante.

Implementar tais medidas no interior de uma sociedade capitalista, entretanto, não constitui tarefa simples. Para além da mobilização das próprias forças burguesas em prol de seus interesses, o Estado, também em nível municipal, é dotado de diversos mecanismos que buscam limitar o alcance das transformações possíveis.

As armadilhas da política estatal nas democracias liberais

A principal forma de institucionalização da política nos regimes democráticos liberais é a dos mandatos eletivos. Nesse sistema, uma vez eleitos, os detentores dos mandatos deixam de ter qualquer laço formal com o seu próprio eleitorado. Sendo assim, na ausência de elementos que exerçam pressão no sentido oposto, a tendência é que os eleitos passem a responder cada vez mais às dinâmicas internas aos próprios espaços de exercício de poder, ou seja, as prefeituras e as câmaras de vereadores.

Tais espaços, longe de serem constituídos de forma neutra ou igualmente acessível a todos os setores da população, apresentam uma configuração totalmente favorável à ação das classes dominantes. Em primeiro lugar, são essas classes que, via de regra, conseguem eleger a maior parte dos prefeitos e vereadores, como resultado da concentração de recursos financeiros, midiáticos e políticos em suas mãos. A correlação de forças nesses espaços tende, portanto, a ser desfavorável.

Em segundo lugar, são também as organizações criadas e mantidas pelas classes dominantes no âmbito da sociedade civil (os seus aparelhos privados de hegemonia) que dispõem de maiores condições de se fazerem presentes e ouvidas nos espaços estatais. Sob a forma de consultorias, assessorias, lobbies, propaganda, etc. conseguem revestir os interesses dominantes de um verniz de legitimidade técnico-científica. Dessa maneira, projetos diretamente articulados por frações da burguesia se apresentam como “opiniões técnicas” e moldam a ação do aparelho de Estado.

Em terceiro lugar, o próprio corpo estatal de funcionários não constitui um agente neutro. Seja pela formação e pelo hábito adquiridos no exercício de suas funções, seja por conta do peso que as ideologias dominantes possuem no conjunto da sociedade, a burocracia tende a atuar no sentido da preservação da existência das atuais instituições e relações sociais.

A captura do orçamento público pelo grande capital

Para além desses entraves de ordem imediatamente política, uma segunda trincheira de defesa dos interesses burgueses se ergue em torno dos orçamentos públicos municipais. Nessa área, o elemento fundamental é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar No 101/2000). Sendo um pilar da estruturação do Estado brasileiro segundo os marcos do neoliberalismo, a LRF trata, sobretudo, da responsabilidade com a remuneração do capital financeiro e com o pagamento das empresas privadas que mantém negócios com o poder público em seus diferentes níveis.

Por meio de suas disposições, são estabelecidos estritos limites aos recursos que podem ser destinados a políticas públicas de interesse da maioria trabalhadora, liberando aqueles voltados para a remuneração do capital. A LRF, em suma, subordina o orçamento público aos interesses da burguesia.

Note-se, ainda, que mesmo a parcela dos recursos públicos que escapa às barreiras da LRF e pode ser efetivamente destinada aos serviços públicos é frequentemente capturada pelo capital privado. Para isso, existem mecanismos como as diversas modalidades de parcerias público-privadas, com destaque para a contratação de empresas privadas disfarçadas em “sem fins lucrativos”, mas operando pela lógica da corrupção generalizada, sob a denominação de Organizações Sociais (OS). Ao inserirem a lógica privada diretamente no funcionamento estatal, as PPPs tendem a degradar os serviços públicos como forma de gerar o maior lucro possível, oficialmente ou por meio da corrupção.

A democratização do poder municipal

Para ultrapassar esse conjunto de barreiras, apenas a vitória eleitoral não é suficiente, sendo fundamental avançar no sentido da democratização do poder político municipal. A criação e o fortalecimento dos mecanismos de participação direta e efetiva do conjunto dos explorados e oprimidos na definição dos rumos dos municípios constitui um requisito inescapável para a implementação de profundas transformações na ordem social. Um programa radical e a ação política coletiva constituem duas faces de uma mesma moeda, posto que forma e conteúdo são indissociáveis no projeto socialista.

Nesse sentido, os conselhos setoriais (de saúde, educação, etc.) já existentes devem ser fortalecidos. Entretanto, é preciso avaliar criticamente e superar os limites encontrados na experiência concreta dos conselhos ao longo das últimas décadas. Em especial, deve-se atentar para as maneiras pelas quais os mesmos foram esvaziados ou instrumentalizados em favor de interesses das classes dominantes. Os conselhos, ao contrário, devem ser espaços de expressão das necessidades e reivindicações dos explorados e oprimidos – trabalhadores e usuários dos serviços públicos, essencialmente –, e não daqueles que buscam extrair lucros às custas da qualidade dos serviços públicos.

Um passo ainda mais ousado do que o fortalecimento dos conselhos seria a realização de um Congresso da Cidade para os 99%. Esse congresso definiria as linhas estratégicas para todas as áreas de atuação da prefeitura, a começar pelo orçamento até a prestação de contas e fiscalização das medidas implementadas. Sua composição deveria ser estruturada a partir de plenárias de base em toda a cidade, garantindo a representação de delegados dos bairros e comunidades; dos movimentos de moradia, de mulheres, negros, LGBTQI+, ambientais e culturais; e dos sindicatos atuantes na cidade.

Essa estrutura congressual deveria, ainda, ser replicada em menor escala no âmbito das secretarias municipais e das administrações regionais. Usuários dos serviços, trabalhadores e moradores locais elegeriam os delegados aos congressos temáticos ou locais, definindo as prioridades e fiscalizando o seu cumprimento. Em paralelo, os secretários e administradores regionais também seriam eleitos pela população, sendo os seus mandatos revogáveis a qualquer momento.

A transformação da lógica orçamentária

Um programa municipal formulado pelos explorados e oprimidos em um congresso democrático fatalmente entrará em choque com a estrutura orçamentária dos municípios, articulada para privilegiar a remuneração do capital em detrimento do oferecimento de serviços públicos de qualidade. Assim, a mobilização fomentada pelo processo de democratização do poder precisa ser permanente, ultrapassando o momento dos congressos da cidade e sustentado uma luta permanente pela transformação dessa estrutura orçamentária.

Uma primeira medida fundamental seria a radical inversão da lógica de arrecadação dos impostos municipais. Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) e Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) precisam incidir de forma progressiva, onerando proporcionalmente mais o 1% mais rico e menos os 99% explorados e oprimidos. A partir dessa incidência progressiva em nível municipal, seria possível, inclusive, influenciar o debate nacional em torno da reforma tributária, indicando a necessidade de inverter a lógica perversa de predomínio dos impostos indiretos (sobre consumo, por exemplo), priorizando impostos altamente progressivos sobre heranças, grandes fortunas e lucros das empresas e bancos privados.

Uma estrutura de arrecadação mais justa, entretanto, terá uma eficácia limitada se a distribuição dos recursos públicos continuar submetida à lógica da Lei de Responsabilidade Fiscal e à emenda Constitucional 95, que instituiu o teto de gastos. Assim, a mobilização municipal precisa, também, ser um ponto de apoio para a luta contra a LRF em favor da instituição de uma Lei de Responsabilidade Social (LRS). A LRS deve organizar os orçamentos públicos (municipais, estaduais e federal) de forma a garantir o atendimento das necessidades dos 99% explorados e oprimidos, abandonando a priorização da remuneração do capital.

A cidade para os 99% e a luta de classes hoje

A democratização do poder municipal e a inversão da lógica orçamentária constituem os dois pilares básicos para a construção de uma cidade para os 99% explorados e oprimidos. Esses dois elementos possibilitam, respectivamente, a formulação democrática dos programas de governo e as condições objetivas para a sua implementação.

Evidentemente, esses processos encontrarão grande oposição por parte das classes dominantes, que não aceitarão perder o controle político nem mesmo ao nível municipal. Em um momento histórico de avanço de forças neofascistas, essa oposição tende a assumir contornos particularmente brutais. Nesse sentido, vale lembrar que os principais braços do aparato repressivo estatal não respondem aos governos municipais, havendo ainda uma ampla difusão de um aparato ilegal de coerção sob a forma de milícias.

Esse cenário intensifica ainda mais a necessidade da conformação de uma frente única dos explorados e oprimidos. Seus partidos políticos, movimentos sociais e entidades organizativas devem estar articulados em defesa da construção de uma cidade para os 99%, sob pena de que o poder municipal se torne, cada vez mais, um espaço de reprodução local da dominação de classes.