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Legalização da prostituição na Nova Zelândia – um balanço inicial

cerca de 30 mulheres posam para foto em uma rua. Elas estão sorridentes e algumas estão com sombrinhas de papel, contra o sol. A maioria usa camisas na cor vermelha.

Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC)

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Em 2003, na Nova Zelândia, foi aprovada a Lei de Reforma da Prostituição (com 51 artigos, 26 páginas) [1] que legalizou a atividade. As consequências são quase inacreditáveis. Em 2009, um policial foi preso após extorquir uma prostituta a partir de uma ameaça de multá-la [2]. Com a criminalização explícita da exploração sexual infantil, a lei facilitou operações de investigação e prisão dos criminosos envolvidos [3]. Em 2014, um evento inédito: uma prostituta processou o dono do bordel por assédio sexual – e ganhou [4].

A elaboração da lei teve início no Fórum de Mulheres da Nova Zelândia em 1997 a partir do Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia e de outros grupos feministas, de direitos humanos e da Fundação de Combate à AIDS da Nova Zelândia. A aprovação foi bem apertada: 60 a 59. Uma virada de última hora: o discurso emocionado de Georgina Beyer, deputada trabalhista, mulher trans e ex-prostituta, conquistou três votos [5].

Apresento um balanço dessa medida sem partir de pressupostos morais, mas sim das condições de vida das trabalhadoras sexuais, principalmente no que diz respeito à sua saúde, segurança, suas condições econômicas e sociais. Utilizarei principalmente o relatório (de mais de 200 páginas) produzido por pesquisadoras da Universidade de Otago, que envolveu uma pesquisa em 2006 com 772 trabalhadoras e trabalhadores do sexo do país [6].

“Você tem que usar camisinha – está na lei”

Qualquer pessoa com um mínimo contato com trabalhadoras do sexo no Brasil sabe como é difícil, para muitas delas, exigir que o cliente use camisinha. Não à toa, a lei neozelandesa exige que todo trabalho sexual seja realizado com medidas de segurança sexual, em particular o uso de camisinhas. Os bordéis são obrigados a garantir o sexo seguro e disponibilizar, em local visível, informações a esse respeito.

Na pesquisa, perguntou-se às trabalhadoras e trabalhadores sobre suas estratégias para lidar com um cliente que se recusa a usar camisinha. 34% exigem o uso da camisinha de antemão, 63% dizem ao cliente que está na lei, 29% dizem que o dono (do local) ou gerente exige e 60% se recusam a prestar o serviço [7]. Entre as que trabalham em bordéis, os percentuais foram 30%, 73%, 39% e 57%, respectivamente.

65% des entrevistades responderam que é mais fácil recusar um cliente após a aprovação da lei. Na pesquisa em Christchurch, em 1999, a proporção das trabalhadoras nas casas de prostituição que recusaram o serviço a algum cliente nos últimos 12 meses foi de 47%. Na pesquisa de 2006, esse número aumentou para 68%.

Uma polícia que não odeia prostitutas?

Entre as prostitutas ao redor de todo o globo, é bastante comum o sentimento de hostilidade dos policiais contra elas (em sua maioria, mulheres imigrantes, negras ou indígenas). A pesquisa na Nova Zelândia, entretanto, apontou que 57% das trabalhadoras do sexo (66% das trabalhadoras de rua) acreditam que as atitudes dos policiais melhoraram após a aprovação da lei.

Entre as trabalhadoras que relataram ter sofrido violência física, ameaça ou de terem sido mantidas presas contra sua vontade, cerca de 20% delas relataram à polícia. Entre as que relataram terem sido estupradas, 32% relataram à polícia (sendo 6% no setor de rua, 35% no setor gerenciado e 72% no setor privado).

Para comparação, no Brasil, apenas 15% dos casos de estupro são relatados a polícia. Portanto, em média, uma prostituta na Nova Zelândia tem mais confiança de relatar à polícia que foi estuprada do que uma mulher (mesmo que não seja prostituta) no Brasil.

Óbvio que, num mundo ideal, 100% das mulheres, de qualquer origem social, teriam confiança de relatar à polícia todas as violências machistas das quais são vítimas. Mas, considerando o mundo atual, os números da Nova Zelândia parecem uma realidade paralela!

As mudanças de setor – por mais autonomia e segurança

O estudo separou as trabalhadoras do sexo em três grupos: as de rua (autônomas que procuram clientes nas ruas), as gerenciadas (que trabalham em bordéis [8] ou através de agentes de acompanhantes) e as privadas (que fazem anúncios em jornais ou páginas de internet).

Nas cinco áreas abrangidas pela pesquisa (Auckland, Christchurch, Wellington, Hawks Bay e Nelson), entre fevereiro de março de 2006, foram contabilizadas 2396 prostitutas (nas regiões, 1513, 392, 377, 74 e 40, respectivamente), sendo 252 (11%) trabalhadoras de rua, 1293 (54%) gerenciadas e 850 (36%) privadas. Entre junho e outubro de 2007, foi feita uma recontagem que chegou ao número total de 2332, onde 395 (17%) eram de rua, 1206 (52%) gerenciadas e 731 (31%) privadas.

Uma estimativa com método semelhante de contagem foi realizada em 1999, em Christchurch. A contagem em 2006, 392, é semelhante à de 1999, 375. Mas a mudança mais significativa é em relação aos setores: em 1999, 62,1% das trabalhadoras eram gerenciadas e, em 2006, 51,5%. Já a proporção de trabalhadoras privadas subiu de 9,6% para 23,0%. O outro setor, de rua, reduziu ligeiramente: de 28,3% em 1999 para 25,5% em 2006.

Isso é consistente com os dados relativos à movimentação entre setores. Entre as trabalhadoras privadas, 11,5% iniciaram a trabalhar na rua e 49,3%, no setor gerenciado. Entre as trabalhadoras de rua, 18,4% iniciaram no setor gerenciado e 2,8%, no privado. Já entre as gerenciadas, 3,9% vieram do setor de rua e 3,8%, do privado.

Assim, a maior movimentação entre setores for do setor gerenciado para o privado, e, em menor medida, do gerenciado para a rua e da rua para o privado. Em outras palavras, após a lei, a tendência foi de redução do número de trabalhadores do sexo em bordéis ou agências de acompanhantes.

As justificativas mais citadas para a mudança de setor foram o maior controle sobre o método de trabalho, a escolha dos clientes e um ambiente mais seguro.

Tirem o programa de “fim da prostituição” das mãos da polícia

No relatório, ficam evidentes a existência de inúmeros problemas enfrentados pelas trabalhadoras sexuais, particularmente as que procuram clientes nas ruas, que estão mais suscetíveis a várias formas de violência. Entretanto, o relatório (assim como outros estudos) indicam uma melhora significativa das condições de vida das prostitutas. As notícias reforçam esse dado, apontando, por exemplo, que foram aplicadas multas a bordéis em condições irregulares, assim como casos de violência e exploração sexual infantil que terminaram em prisões dos responsáveis.

A lei neozelandesa alcançou esses resultados por aplicar, a nível nacional, um programa para a prostituição que não criminaliza, direta ou indiretamente, as trabalhadoras sexuais adultas, inclusive as de rua. A regulamentação da prostituição nos Países Baixos, por exemplo, criminaliza a prostituição de rua, o que teve consequências ruins [9]. 

Outros países (Suécia, Noruega, Islândia, França, EUA, etc) aprovaram a criminalização indireta da prostituição, o que se concretizou em operações policiais fortemente financiadas pelo Estado e por multinacionais. Isso é extremamente violento às prostitutas por uma razão óbvia: o programa de “fim da prostituição” sempre cai no colo da polícia.

Os fins não justificam os meios. A lei neozelandesa, mesmo que imperfeita, aponta que é possível outro caminho. Tirem o programa de ““fim da prostituição”” (entre muitas aspas) das mãos da polícia! Isso nunca vai dar certo em lugar nenhum do mundo.

Notas

[1] http://www.legislation.govt.nz/act/public/2003/0028/latest/whole.html 

[2] https://www.stuff.co.nz/national/crime/3170820/Sex-extortion-ex-policeman-jailed 

[3] https://web.archive.org/web/20090226174844/http://www.state.gov/g/drl/rls/hrrpt/2008/eap/119051.htm 

[4] https://mundoinvisivel.org/nova-zelandia-tribunal-confirma-que-trabalhadoras-sexuais-tem-os-mesmos-direitos-que-qualquer-um/ 

[5] https://www.nzherald.co.nz/trailblazers/news/trailblazers-georgina-beyer/BPF7DS2A5K2VK562AZB4XEII74/ 

[6] Abel, G., Fitzgerald, L. and Brunton, C. (2007), ‘The impact of the Prostitution Reform Act on the health and safety practices of sex workers’, Report to the Prostitution Law Review Committee, University of Otago, Christchurch. Disponível em: https://www.otago.ac.nz/christchurch/otago018607.pdf 

[7] Outras respostas foram: 41% fazem um serviço manual [hand job], 6% oral e 6% cobram mais pelo programa.

[8] A lei classifica as “casas de massagem” como bordéis.

[9] https://www.dw.com/en/amsterdam-sex-workers-protest-closing-window-brothels/a-18372902

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