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BRASIL

O ímpeto reformista pós-Constituição de 1988

Cacau Pereira

As conquistas populares inscritas na Constituição Federal de 1988 muito cedo começaram a ser atacadas. A força do conservadorismo reinante na política brasileira não tardou a se fazer presente. O governo Collor (1990-1992) vai dar início a um processo de privatizações e mudanças no serviço público. No seu curto governo, foram privatizadas 18 empresas. Sucedido por Itamar Franco (1992-1994), seu vice, as privatizações continuaram, com destaque para a venda da siderúrgica CSN e da Embraer, uma das maiores empresas de aviação do mundo. A adoção do Plano Real em 1994 vai trazer mudanças importantes no terreno da macroeconomia, que se farão sentir por todos os governos seguintes. Consolida-se o tripé liberal macroeconômico que se tornou uma verdadeira “bíblia” de todos os governos desde então: as metas de inflação, o câmbio flutuante e as metas de superávit primário.

A arquitetura das privatizações do governo FHC

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) vai ser marcado pelo mais audacioso plano de desestatização da economia, com a privatização de grandes empresas e áreas econômicas importantes que estavam sob controle estatal. As privatizações foram realizadas com dinheiro público, principalmente via o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

As privatizações foram uma marca dos anos 1990, atingindo diversos setores da economia, dentre eles as telecomunicações, as empresas siderúrgicas, de energia elétrica, químicas, petroquímicas e fertilizantes, de transporte ferroviário, terminais portuários, a indústria de mineração estatal, bancos públicos estaduais etc.

As privatizações foram incentivadas com o saneamento prévio de diversas empresas com recursos públicos, sendo entregues capitalizadas e sem passivo. Os preços das tarifas públicas foram reajustados numa escalada estratosférica. Entre 1991 e 1996, as empresas federais privatizadas fecharam 39.631 postos de trabalho, o que equivalia a 32,6% do total das vagas que mantinham.

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Fruto das lutas anteriores, Constituição de 1988 incorpora diversos direitos sociais

Nas primeiras privatizações aceitou-se o pagamento através de títulos antigos da dívida pública, emitidos pelo governo, com deságio que chegava a 50%, as chamadas “moedas podres”. Muitas vendas foram feitas com uma pequena entrada, com dinheiro subsidiado pelo BNDES e o pagamento parcelado em até 30 anos. Em algumas áreas, admitiu-se a participação de empresas estrangeiras, completando-se um quadro de privatização e desnacionalização da economia, como na área da telefonia. 

Demissões em massa foram realizadas em diversas empresas, aumentando as cifras, já bastante altas, do desemprego no país. Muitas desses trabalhadores tinham direito a planos especiais de aposentadoria via os fundos de pensão mantidos pelas empresas. Em muitos casos o governo assumiu a responsabilidade pelas aposentadorias dos trabalhadores, livrando os compradores desse encargo.

Naquele mesmo período operou-se uma silenciosa sabotagem da Petrobras, avançando a quebra do monopólio estatal na exploração do petróleo.

Mas, uma coisa que pouca gente se atentou, foi que, para além de toda a perda de patrimônio, de tecnologia, de capital humano, de desmonte da infraestrutura estatal construída durante décadas em diversas áreas, as privatizações foram feitas com a poupança dos trabalhadores, através da participação dos fundos de pensão nos leilões. Ou seja, o dinheiro acumulado pelos trabalhadores foi utilizado para entregar ao capital privado as empresas, demitir milhares de colegas, e, em alguns casos, desnacionalizar o patrimônio construído pelo país, com a anuência de representantes eleitos pelos trabalhadores para os conselhos de administração, vários deles oriundos do movimento sindical e da CUT, em particular.

Nos quadros abaixo temos a composição das vendas e a indicação do tipo do investidor:

Tabela 2 - Resultado de vendas por investidor (1995-2002) em US$ milhões. FONTE: BNDES

tabela 3 Principais operações de privatização com participação dos fundos de pensão

Os fundos de pensão tiveram importante participação no processo das privatizações ocorridas naquela década, inaugurando uma nova forma de administração das entidades, cujos patrocinadores agora seriam empregadores privados.

Começa a demolição do direito trabalhista

O governo FHC deu início a um processo brutal de flexibilização das relações de trabalho no Brasil, reconfigurando o perfil da classe trabalhadora vinculada ao setor privado. A Lei das Cooperativas (Lei 8494/94) dá o pontapé para a interposição fraudulenta de mão-de-obra, ao não reconhecer vínculo com os trabalhadores e facilitar a vida das chamadas “coopergatas”.

Em 1996, o governo denuncia a Convenção 158 da OIT por meio do Decreto 2100/96, deixando o Brasil de ser signatário do documento que estabelece a autonomia e liberdade sindical para os trabalhadores. Diversas outras leis vieram regular as relações de trabalho, como a Lei 9601/98, que define o trabalho por tempo determinado; o banco de horas (Lei 9601/98); o trabalho a tempo parcial e o contrato temporário de trabalho, ambos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O incentivo à remuneração variável veio com a Participação nos Lucros e Resultados (Lei 10.101/2000) e o processo trabalhista começa a ser alterado com as Comissões de Conciliação Prévia (Lei 9958/2000).

A reforma administrativa de FHC/Bresser

A reforma administrativa tem início em 1995. O Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), sob o comando do Ministro Bresser Pereira, foi o artífice das modificações. Em 1998 foi promulgada a Emenda Constitucional 19/1998, que alterou o regime jurídico único dos servidores públicos, permitindo a contratação pelas regras da CLT e criou ainda o chamado contrato de gestão. 

A alteração no regime da administração pública produziu uma drástica mudança, possibilitando, a partir daí, a redução do quadro de servidores; a contenção dos gastos públicos em virtude da crise fiscal; introduziu o mecanismo da demissão voluntária; limitou as despesas com pessoal e ampliou as condições para a contratação temporária. 

Esta nova legislação abriu a possibilidade de demissão do servidor por insuficiência de desempenho ou excesso de quadros, promoveu mudanças no regime previdenciário e abriu a possibilidade de contratação de Organizações Sociais, as chamadas OSs, para a realização das atividades públicas antes exclusivas dos servidores de carreira.

Essa legislação se consolidaria com a Lei 9.637/1998 – que criou as Organizações Sociais – e a Lei 9.790/1999, que criou as OSCIP’s – Organizações das Sociedade Civil de Interesse Público -, que executariam os contratos pactuados com a administração pública.

A reforma administrativa empreendida pela EC 19/1998 marca a transição da administração tradicional (burocrática) brasileira para um modelo de administração gerencial, nos moldes das ideias neoliberais em voga. A inclusão do princípio da “eficiência” como norteador do serviço público é simbólica dessa mudança paradigmática. 

O Estado brasileiro, do ponto de vista da prestação dos serviços públicos, vai ser redesenhado, numa reengenharia que previa um núcleo estratégico, limitado às atividades das quais o Estado não poderia se afastar (forças armadas, diplomacia, prestação jurisdicional, emissão de moeda, fiscalização fazendária etc.); outro com as atividades não exclusivas delegadas ao setor privado, assim tratadas como serviços, e envolvendo quase tudo, como a educação, saúde, assistência social, por exemplo; e as áreas privatizáveis, que incluíram a maior parte das empresas estatais, bancos, telefonia, setor elétrico, siderurgia,  mineração etc.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) seria o coroamento desse processo, estabelecendo normas de finanças públicas para todos os entes da federação e empresas públicas, fixando metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições (renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito etc.)

No ano 2000, o Fundo de Estabilização Fiscal foi transformado na Desvinculação de Receitas da União (DRU), alargando o caminho para o desvio dos recursos públicos das áreas sociais.

A reforma da Previdência 

A Emenda Constitucional 20/1998 estabeleceu mudanças importantes, reduziu o teto do valor dos benefícios e instituiu, com status constitucional, o regime de previdência privada complementar. Novas regras também passaram a valer para os regimes próprios dos servidores, como o estabelecimento de idade mínima para aposentar e tempo de contribuição, unificação das regras aplicáveis aos servidores de todos os níveis, adoção do teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) para a aposentadoria dos novos servidores, desde que fosse criada a previdência complementar para eles.

A reforma previdenciária, para os abrangidos pelo RGPS, não aprovou uma idade mínima para a aposentadoria. A proposta original pretendia ampliar o período de contribuição para o cálculo do benefício e introduzir uma fórmula de cálculo desse benefício, que considerasse a idade de quem requisita a aposentadoria e a expectativa de vida segundo cálculos do IBGE. Essa proposta correspondeu à Lei 9876/1999, aprovada posteriormente, e que estabeleceu o fator previdenciário.

Governos Lula e Dilma não reverteram as tendências privatizantes e neoliberais

O governo Lula (2003-2010) realiza uma nova reforma da previdência em 2003, por meio da Emenda Constitucional 41. Essa reforma alterou, fundamentalmente, o regime próprio de previdência dos servidores, acabando com a integralidade e paridade dos vencimentos entre servidores ativos e aposentados, estabeleceu regras de transição para os que já estavam no serviço público, estabeleceu a contribuição para os inativos e normatizou a previdência privada complementar para os servidores.

Consideramos – pela abrangência das modificações legislativas impostas – os governos FHC e o primeiro ano da gestão de Lula como um quarto período de reformas do Estado de relevância histórica para a sociedade brasileira. 

A partir de 2004, o Brasil voltou a viver um período de crescimento econômico, alcançando uma relativa diminuição da pobreza e o impacto das reformas foi menor do que nos períodos anteriores. Não é um período de grandes mudanças, mas de manutenção da legislação herdada e aprofundamento em alguns aspectos, como as parcerias público-privadas, concessões e outorga às OSs de diversos serviços públicos, ampliação das terceirizações, continuidade dos leiloes do petróleo, ainda que sob outro modelo etc.

No entanto, embora essas mudanças não tenham tido a abrangência das reformas empreendidas nos governos FHC, não são de menor importância o impacto que tiveram na vida dos trabalhadores e da população. Os governos Lula e Dilma, não só não reverteram as políticas anteriores, como deram nova roupagem a velhos instrumentos utilizados contra o povo.

Ainda na área previdenciária, tivemos a Emenda Constitucional 47/2005 (PEC paralela), que promoveu alterações de forma a corrigir “falhas” técnicas da Emenda 20 (regras de transição), definiu novas regras diferenciados para as pessoas com deficiência e criou a figura do contribuinte de baixa renda.

Em 2010, o Congresso Nacional extinguiu o fator previdenciário, mas o projeto foi vetado pelo presidente Lula, causando indignação entre os trabalhadores, por toda a simbologia que essa atitude revelou. 

Já no governo Dilma, tivemos a edição da Lei 12.550/2011, que criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), da Lei 12.618/2012, que regulamentou a previdência complementar dos servidores públicos (Funpresp) e da Lei 13.183/2015, que criou o fator 85/95 para o cálculo das aposentadorias, numa resposta do governo às centrais sindicais que o sustentavam. 

A conturbada reeleição de Dilma levou a que a presidenta fizesse acenos ao mercado e, além da vinda de Joaquim Levy, ex-presidente do Bradesco, para o ministério, Dilma apresentou duas MPs, que tinham o significado de minirreformas da previdência e trabalhista. A MP 664 se converteria na Lei 13.135/2015, reduzindo o acesso à pensão por morte e ao auxílio-doença, em nova mexida nos direitos previdenciários dos trabalhadores.

Manutenção do ideário liberal e abertura da economia 

No governo Lula também foi dado seguimento à abertura da economia, principalmente pela via das concessões públicas e parcerias público-privadas (PPPs) por meio da Lei 11.076/2004. As concessões à iniciativa privada alcançaram aeroportos, rodovias, hidrovias, hidrelétricas, portos etc. Ainda que em ritmo menor, as privatizações seguiram, com a venda de bancos, como o BEC (Banco do Estado do Ceará) e o BEM (Banco do Estado do Maranhão) em 2005, além da Gaspetro no governo Dilma (2015). Os leilões do petróleo continuaram, sob o regime de partilha e a cessão onerosa dos blocos de exploração. A ampliação da terceirização no serviço público foi notória.

As reformas trabalhistas tiveram continuidade, ainda que com baixo impacto, através do Programa do primeiro emprego (Lei 10.748/2003), e também com a Lei 11.196/2002, que ficou conhecida como a lei da “pejotização”. A reformulação da Lei de Falências prejudicou os trabalhadores, alterando a preferência para o pagamento dos créditos trabalhistas e a Lei do Super Simples (LC 123/2006), previa a desoneração tributária de um seguimento de empresas, com impacto na arrecadação da Seguridade Social. O governo Dilma também alterou dispositivos da legislação trabalhista (seguro desemprego e PIS, dentre outros), por meio da MP 665, convertida em lei, posteriormente.

Os governos petistas não ousaram tocar em qualquer dos pilares herdados dos governos anteriores e, ainda que em algumas áreas tenham realizado políticas que, pontualmente, tenham sido benéficas à população (cotas nas universidades, ampliação dos institutos federais, aumento da base de proteção da assistência social, por exemplo) não romperam os limites de uma administração que deu seguimento à concentração do capital no país e aos benefícios do sistema financeiro.