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BRASIL

Fruto das lutas anteriores, Constituição de 1988 incorpora diversos direitos sociais

Com este artigo, estamos retomando a série do EOL sobre as reformas administrativas e as reformas de Estado no Brasil. Nele, damos continuidade à análise histórica que estamos empreendendo, já tendo examinado a República Velha, o primeiro período dos governos Vargas (1930-1945) e a ditadura militar (1964-1985).

Cacau Pereira*, do IBEPS

Neste texto vamos tratar da Constituição de 1988, como o terceiro período de reformas importantes no Estado brasileiro, em tempos de república e capitalismo, com destaque para os capítulos da Educação e da Seguridade Social no texto constitucional.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, fecha o ciclo autoritário anterior. Seu texto foi resultado de grandes embates na sociedade e acabou bastante modificado, principalmente no segundo turno das votações, em vários aspectos importantes. A formação do grupo de parlamentares conhecido como “Centrão” foi um elemento importante e decisivo para os retrocessos.

A Constituição incorporou uma série de direitos políticos, econômicos e sociais à lei maior do país, num ensaio de construção de um modelo de estado social de direito, logicamente com os limites históricos e a desigualdade tão marcante entre as classes sociais em nosso país. Essas conquistas foram resultado da luta de diversos atores sociais nas décadas anteriores e, em particular, no processo de redemocratização e derrubada da ditadura militar (1964-1985).

Destaca-se a constitucionalização de inúmeros direitos sociais e trabalhistas, individuais e coletivos. Já o capítulo da Seguridade Social, abrangendo a previdência, o regime geral e os regimes próprios dos servidores públicos, a assistência social e a saúde pública através do SUS (Sistema Único de Saúde) deu um novo e inédito formato a essas políticas públicas.

Apesar de bastante modificado no segundo turno das votações, o tema educacional figurou com relevo no texto final votado, sendo a educação estabelecida como direito social (art. 6.º), dever do Estado e vinculado à dignidade da pessoa humana. Foram definidos os princípios que regem o direito à educação, incluindo a igualdade de condições de acesso e permanência; a liberdade de pensamento; o pluralismo; a gratuidade nos estabelecimentos oficiais; a gestão democrática, uma inovação importante; e a valorização dos profissionais da educação. Foi mantida, como nos textos anteriores, a previsão do ensino religioso facultativo nas escolas públicas.

Já os servidores públicos tiveram a definição de um regime jurídico próprio, no qual se destacam o ingresso por concurso e o direito à estabilidade no emprego. Também se consolidou o direito de organização sindical. Embora previsto, o direito de greve ficou para regulamentação posterior. Mas ficou ausente do texto constitucional, diferentemente dos trabalhadores da iniciativa privada, o direito à negociação e à contratação coletiva para os servidores do Estado.

Foram mantidas as mesmas bases intervencionistas do Estado na organização sindical. O texto preservou como princípios o reconhecimento legal das organizações sindicais pelo Estado – via registro no Ministério do Trabalho – e a manutenção da unicidade sindical, desconsiderando os princípios da liberdade e autonomia sindicais.

O conteúdo do texto aprovado assegurou, em última instância, a manutenção do status quo. O país nascido daquela construção jurídica manteve as bases econômicas, sociais e políticas de uma sociedade capitalista periférica, dependente e subalterna aos interesses de outras grandes economias do planeta.

Como resultado daquele arranjo político adotou-se uma Constituição que, em muitos aspectos, revela traços conciliatórios. Tem, entre seus princípios fundamentais, o valor do trabalho e da livre iniciativa. Dentre os direitos e garantias individuais e coletivas, assegura o direito à propriedade privada, devendo esta atender a uma função social, dentre outras construções jurídicas presentes no texto.

Educação: retrocessos marcam o segundo turno das votações

A fase final do processo constituinte foi marcada por inúmeras negociações, manobras e mudanças regimentais que, em certa medida, descaracterizaram bastante a importância de todo o esforço de mobilização da sociedade civil nas fases anteriores. Notadamente, as organizações envolvidas com o tema da educação – que buscaram dar a sua contribuição na elaboração da nova Carta – viram-se frustradas com a exclusão de vários pontos abordados nas fases anteriores, nas comissões e na defesa das emendas populares.

O que acabou prevalecendo foram o jogo de interesses e os acordos construídos no interior do Congresso Nacional, com uma base de representação bastante conservadora e elitista, e com pequena representação popular, das camadas médias e setores assalariados da sociedade.

A composição partidária do Congresso já não era, naquele momento, a mesma da eleição da maioria dos seus representantes, em 1986. Diversos novos agrupamentos haviam se formado e, em meio ao processo constituinte, ainda em 1987, formou-se um bloco parlamentar de partidos conservadores que ficou conhecido, jornalisticamente, como “Centrão”. Tal bloco demonstrou um enorme poder de negociação e passou a dar sustentação ao governo Sarney, então bastante desgastado frente à opinião pública. Dentre outras vitórias do Planalto, esse bloco garantiu o sistema de governo presidencialista e o mandato de cinco anos para o governo de turno.

Esse quadro levou a que, em diversos temas relevantes, fosse assumida uma dinâmica de conciliação de interesses – na reta final dos trabalhos constituintes – com formulações, em diversos assuntos, bastante genéricas, que deram um caráter mais programático do que efetivo a várias disposições do texto constitucional. Foi o que ocorreu com os artigos que tratavam do piso salarial nacional e o incremento da carreira única para todos os professores.

Foram derrotadas as emendas que faziam menção ao caráter laico do ensino. O artigo 209 garantiu a presença do setor privado na atividade educacional e a possibilidade de destinação de recursos públicos para escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, configurando, portanto, uma vitória dos setores confessionais e demais empresários da educação.

Seguridade Social: uma conquista importante

A Constituição estabeleceu um Sistema de Seguridade Social, abrangendo direitos previdenciários, de acesso à saúde e à assistência social. A seguridade social garante proteção não só aos trabalhadores, mas a quem dela necessitar. O sistema passou a ser regido, dentre outros, pelo princípio da universalidade da cobertura e do atendimento. A proteção foi estendida a todos os integrantes da sociedade, fazendo com que, dessa forma, os direitos previdenciários fossem não mais exclusividade de trabalhadores, mas de todos os integrantes da sociedade brasileira, surgindo, por exemplo, o segurado facultativo (pessoa maior de 16 anos que se vincula à Previdência Social).

No Brasil, a proteção social evoluiu de forma semelhante ao plano internacional. Inicialmente foi privada e voluntária, passou para a formação dos primeiros planos mutualistas e, posteriormente, para a intervenção cada vez maior do Estado. A Constituição de 1988 alargou o conceito de proteção, incorporando a noção de seguridade social.

O processo pré-Constituinte foi parte importante dessa configuração, e muitos atores sociais e políticos deram a sua contribuição na elaboração da nova carta constitucional, lutando por suas reivindicações. Podemos citar o papel dos movimentos ligados à saúde, daqueles ligados à defesa da educação pública e também os sindicatos e associações de trabalhadores.

O conceito de seguridade social está definido no artigo 194 e “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Compreende as aposentadorias, pensões, auxílio-doença, salário-maternidade, salário-família, auxílio reclusão e outros que são garantidos pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS). E também o SUS, Sistema Único de Saúde, de cobertura universal e acesso a todas as pessoas.

A constituição da seguridade social para o conjunto da população é um marco histórico, com a sua institucionalização em 1988. Antes disso, o acesso à previdência, à saúde e à assistência social dependia da existência de relação de emprego com carteira assinada, para o trabalhador do setor privado.

Mas, como veremos nos artigos a seguir, essas conquistas muito cedo começariam a ser atacadas.

 

*Cacau Pereira é militante da Resistência/PSOL. Coordena o Instituto Classe Consultoria e Formação Sindical e colabora com o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS). Contatos: [email protected]