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BRASIL

Governos Temer e Bolsonaro: ultraliberalismo volta ao comando do Estado

Cacau Pereira, do IBEPS
imagem do especial sobre reforma administrativa. está escrito : parte 6, governos temer e bolsonaro. Por Cacau Pereira. Acima, uma foto dos dois presidentes, com Temer tirando a faixa presidencial.

A ascensão do governo Temer, em 2016, apesar de toda a sua ilegitimidade, conseguiu impor uma agenda de retrocessos importantes, num curto espaço de tempo, refletindo uma correlação de forças que se tornou bastante desfavorável aos trabalhadores em nosso país. O reformismo fraco do PT foi substituído por governos de índole abertamente liberal e privatizantes.

A Emenda Constitucional 93 ampliou a DRU (Desvinculação de Receitas da União) para 30% (trinta por cento) até 2023.  Esse percentual do orçamento pode ser manejado pelo presidente da maneira que bem entender, retirando inclusive recursos da educação, saúde e seguridade social.  

Já a Emenda Constitucional 95 impôs o congelamento dos gastos públicos por 20 (vinte) anos, o que implica, na prática, num modelo de longo prazo que vai inibir o desenvolvimento econômico-social, independente de qual governo a sociedade venha a eleger.

Dentre as leis aprovadas, temos a  Lei 13.365/2016, que reduziu a participação obrigatória da Petrobrás na exploração do pré-sal e abriu a possibilidade de empresas multinacionais participarem da exploração; a Lei 13.299/2016, que criou o Programa de Parceria de Investimentos e dá um salto na abertura da economia para novas privatizações; a Lei 13.429/2017, que escancarou as portas para a terceirização sem limites, inclusive nas atividades fim de todas as empresas e no serviço público. 

Foi aprovada ainda a Lei 13.303/2016, que criou o “Estatuto das Empresas Públicas”, que limita a participação dos empregados nos conselhos e diminui o poder de fiscalização dos trabalhadores, retrocedendo numa legislação que governos de cunho liberal haviam estabelecido.

Na educação, a Lei 13.415/2016 instituiu a reforma do ensino médio, sem debates mais amplos com a sociedade, abrindo caminho para um novo modelo e uma nova base curricular, de características reducionistas e perspectiva operacional minimalista.

Reformas trabalhistas

A Lei 13.467/2017 instituiu uma reforma trabalhista que desconstruiu as bases do Direito Trabalhista no Brasil, herdadas da primeira metade do século XX, abrindo margem para uma precarização ampla do trabalho, tanto no setor público quanto na iniciativa privada. A reforma trabalhista de Temer foi das mais abrangentes, desde as mudanças praticadas nos governos FHC e já descritas em outro artigo.

A reforma introduziu o princípio da igualdade contratual, típico do Direito Civil, com maior liberdade de ação das empresas e do Estado nas relações de trabalho. Reduziu o poder de negociação dos sindicatos, possibilitando a realização de acordos individuais e, até mesmo, verbais. Estabeleceu, depois de décadas de tentativas, a prevalência do negociado sobre o legislado em diversos aspectos das relações trabalhistas, com autorização para o rebaixamento de direitos previstos em lei. Impôs, ainda, restrições ao acesso e à atuação da Justiça do Trabalho, prenunciando o fim desta Justiça especializada. 

A eleição de Jair Bolsonaro aprofundou esse novo ciclo histórico aberto. O novo governo deu seguimento à destruição do edifício trabalhista, com diversas MPs, contrato verde e amarelo e outras alterações. As reformas trabalhistas estão redesenhando o universo da classe trabalhadora, expandindo a informalidade, ampliando a precarização das condições laborais e reduzindo, dia a dia, o emprego formal e com garantias mínimas. Um retrocesso absoluto em matéria de direitos individuais e sociais. Outra alteração importante se deu com a Emenda Constitucional 103/2019, uma nova reforma da previdência.

Previdência: a desconstrução da mais importante política social herdada da Constituição de 1988

A Emenda Constitucional 103/2019 representou outro grave retrocesso na área previdenciária, uma das mais atacadas pelas reformas de Estado, desde o governo FHC, passando pelos governos petistas e chegando ao governo de ultradireita de Bolsonaro.

Dentre as principais mudanças introduzidas, temos a idade mínima e o tempo de contribuição no RGPS, para trabalhadores da iniciativa privada e de municípios sem sistema previdenciário próprio: no caso das mulheres, pelo menos 62 anos de idade e 15 anos de contribuição e, no caso dos homens, 65 anos de idade e 20 anos de contribuição. 

No caso dos servidores públicos federais, que tem regime próprio, a idade também passou para 62 anos de idade para mulheres e 65 para os homens, mas exige ainda pelo menos 25 anos de contribuição, 10 anos de serviço público e 5 anos no cargo em que se dará a aposentadoria.

Outra mudança significativa envolve a metodologia do cálculo dos benefícios. Para ter direito à aposentadoria no valor de 100% da média de contribuições, as mulheres deverão contribuir por 35 anos e os homens, por 40 anos.

Foram introduzidas novas alíquotas de contribuição, que aumentam o percentual para a maioria, foram reduzidos os valores das pensões por morte e instituídas limitações para o acúmulo de benefícios (aposentadorias e pensões).

O servidor público, mais uma vez, alvo do ajuste fiscal dos governos

A aprovação da Emenda Constitucional 95, durante o breve governo de Michel Temer (MDB), introduziu na Constituição uma limitação no investimento público por 20 anos, impedindo o aumento do gasto social do orçamento. De outra parte, preservou a generosa parcela do gasto público destinada ao pagamento de juros e amortização da dívida aos banqueiros, que se encontra na casa dos 40 aos 45% do orçamento global. Essa, sim, está na raiz dos principais problemas que o país está vivendo, ao destinar, anualmente, uma montanha de dinheiro justamente para os setores mais privilegiados da sociedade, em detrimento do investimento em saúde, educação, saneamento, moradia, da geração de empregos e melhoria dos serviços públicos. 

A reforma administrativa em andamento teve início justamente com a EC 95. Outras propostas foram apresentadas, ao final de 2019, com o chamado “Plano Mais Brasil”, composto pelas PECs 186, 187 e 188.

A PEC 186/2019, também chamada de PEC Emergencial, trata de medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União. Institui gatilhos que permitem a redução dos salários dos servidores.

Já a PEC 187/2019, conhecida como PEC dos Fundos Públicos, permite ao governo se apropriar de cerca de R$ 220 bilhões que se encontram nas contas de diversos fundos. Sob o argumento de que se esses fundos não forem ratificados pelo legislador em tempo hábil, pretende direcionar essa montanha de recursos para o abatimento da dívida pública.

E, ainda, a PEC 188/2019, denominada de PEC do Pacto Federativo, também estabelece medidas de ajuste fiscal e redução de salários e jornada dos servidores, além de acabar com a vinculação e obrigatoriedade do investimento mínimo em saúde e educação, nos termos da Constituição em vigor.

PEC 32: sob inspiração do Banco Mundial, o pino da granada contra os servidores e a população

A PEC 32/2020 está ancorada em estudos encomendados junto ao Banco Mundial, que apresentam um diagnóstico “dramático” dos gastos de governo com os servidores públicos. Tenta-se repetir a mesma ladainha que orientou a reforma da previdência, incutindo na população a falsa ideia de que os servidores públicos seriam privilegiados e de que o Estado ampliou em demasia os seus gastos com pessoal.

Dentre os dados apontados no texto, o documento afirma que o Estado brasileiro gasta cerca de 10% do orçamento com os salários e vencimentos de servidores públicos ativos (2018) e que somando-se as despesas dos regimes próprios de previdência, são gastos aproximadamente 15% do orçamento com o pagamento de servidores ativos e inativos.

O mesmo documento reconhece que a relação entre número de servidores e população, no Brasil, está abaixo da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que sugere o pagamento de salários mais altos no setor público do que na iniciativa privada. 

A utilização desses dados aponta no sentido do enxugamento da máquina do Estado e, para tanto, o documento enxerga uma “janela de oportunidade” no próximo período, ao afirmar que, até o ano de 2022, 26% dos servidores federais poderão se aposentar e muitos, nesse momento, já se encontram recebendo o abono de permanência. O documento sugere, então, que esse seria o momento ideal para “uma reforma administrativa e de recursos humanos que gere ganhos de produtividade e que tenha grande impacto fiscal”.

A PEC propõe uma mudança estrutural nos serviços públicos e na relação do Estado com os seus servidores, acabando com o regime jurídico atual disciplinado pela CF 1988 e pela Lei 8112/1990, pelos planos de carreira e estatutos funcionais. Serão afetados os servidores públicos civis de todos os entes federativos, da administração direta e indireta e também os empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista

Ficaram de fora da reforma os magistrados, parlamentares, militares das forças armadas e membros das carreiras típicas de Estado, o que demonstra que a reforma não atinge, justamente, os segmentos melhor remunerados do serviço público.

Passam a existir cinco formas de entrada no serviço público, a maioria delas sem estabilidade e sem concurso público nos moldes atuais. Prevalecerão o recrutamento amplo e a seleção simplificada para ingresso.

Serão extintos diversos direitos dos futuros servidores e os atuais também terão perdas significativas, com a permissão para a extinção e transformação de cargos, o fim de gratificações e funções e o impedimento para exercerem funções comissionadas.

A PEC tem forte viés autoritário e dá poderes ao Executivo para acabar com autarquias e fundações por decreto. A avaliação de desempenho do servidor passa a ser condição para efetivação e será coordenada pelos ocupantes de cargos de liderança e assessoramento, que não serão mais os servidores de carreira, mas recrutados pelo chefe do Executivo. Ou seja, o critério será político. Prevê também que novas mudanças, que atingirão a todos os servidores, poderão ser feitas por lei complementar, sem necessidade de nova alterações no texto constitucional.

A PEC ainda prevê o compartilhamento e a cessão de equipamentos públicos para organizações privadas e a militarização das escolas e postos de saúde, com a permissão para que militares ocupem as funções de professor, médico ou enfermeiro, por exemplo.

De quebra, a PEC interfere na autonomia dos sindicatos, ao proibir que sejam celebrados acordos, editadas leis ou mesmo proferidas decisões judiciais que garantam aos empregados públicos e pessoal das estatais o direito à estabilidade no emprego.

Como se vê, além de não alterar os privilégios existentes para determinados segmentos, como os magistrados – que gozam de férias em dobro, auxílio moradia e recebem acima do teto constitucional de R$ 39.200,00 – a reforma pretende ampliar a terceirização e a privatização do serviço público, aumentar o controle sobre os servidores e escancarar as nomeações políticas, acabando com o acesso pelo concurso.

É um retorno às práticas da Primeira República no Brasil, em que os coronéis tinham poder de vida e morte sobre a população, detinham o controle econômico e político de seus territórios. Trata-se da volta ao exercício do poder como nas velhas oligarquias, agora sob a forma da república das “rachadinhas”, das milícias e guardiões de políticos corruptos e oportunistas.

 

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