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MUNDO

As relações EUA e China se deterioram: a tecnologia como setor estratégico – Parte II

Mario Conte, Joinville, SC

No artigo anterior, buscamos introduzir o cenário dos confrontos entre EUA e China para além de proselitismos e simpatias que contaminam com maniqueísmo tanto a grande imprensa, quanto parte da mídia alternativa, que reduzem o embate às fórmulas “ditadura versus democracia”, ou “revolução e contrarrevolução”. 

Buscamos demonstrar que as respectivas políticas de governo são motivadas por interesses de disputa de mercado e realização de lucro das respectivas empresas privadas. Uma vez que ambas as economias são muito interconectadas, para além de trocas de importação e exportação de matérias primas e produtos, medidas como a guerra tarifária de Trump sobre exportações chinesas impactaram as empresas dos dois países. Estima-se pelos próprios dados do Federal Reserve de Nova Iorque, que mais duramente as próprias empresas norte-americanas. Tal fato levou os EUA a exercer maior pressão ao acesso aos mercados de capital e à tecnologia, que como tentaremos demonstrar, também impacta suas próprias empresas e economia.

A China hoje, já representa 18% da capitalização do mercado global, 13% das exportações e pretende se tornar a maior economia do mundo. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, o diretor do FBI, Christopher Wray, declarou que os EUA abrem um novo inquérito de contraespionagem contra a China a cada 10 horas e que o roubo de propriedade intelectual norte-americana por chineses é “tão massivo que representa uma das maiores transferências de riqueza na história humana”. Segundo o texto o valor estimado dessas transferências se encontra entre 225 bilhões de dólares e 600 bilhões de dólares por ano.

No campo tecnológico ocorre há mais de um ano uma disputa na produção de smartphones e na instalação e no desenvolvimento de redes de 5G, a quinta geração de telefonia e comunicação. É importante lembrar que a telefonia de quinta geração (5G), é a base da chamada “internet das coisas”. Um sistema de rede sem fios que permitirá controlar remotamente desde veículos automotores até mesmo plantas industriais inteiras e ou mesmo plantações. No campo militar a tecnologia de 5G será utilizada para controlar desde radares de detecção de ameaças até o controle de mísseis, foguetes e drones não tripulados em incursões em território inimigo. Em um mundo conectado há, além de sistemas militares, cada vez mais sistemas financeiros, sistemas de telecomunicações, de radar, de meteorologia, interligados por meio de servidores.

Sanções para deter o crescimento da Huawei

A Huawei é hoje a empresa com maior número de patentes 5G no mundo, sendo líder em contribuições para especificações técnicas dos padrões 5G segundo a plataforma de análise de tecnologia Iplytics, sediada em Berlim. A gigante chinesa fornece equipamentos para mais de 500 operadoras em todo o mundo e afirma ter 91 contratos confirmados no 5G até o primeiro trimestre deste ano.

O Departamento de Comércio dos EUA editou decretos em maio deste ano exigindo que fornecedores de softwares e equipamentos de manufatura não façam negócios com a Huawei sem antes obter uma licença. Tais sanções se aplicam tanto ao comércio de chips e softwares, como sistemas operacionais fabricados nos EUA, quanto de acesso ao Google com seus celulares. Mas a sanção sofreu suspenção parcial e temporária pelo mesmo Departamento de Comércio porque áreas rurais norte-americanas ainda utilizam redes Huawei e seriam prejudicadas.

E em 15 de julho de 2020, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, anunciou que restringiria a concessão de vistos a funcionários da Huawei e de outras empresas chinesas que forneçam “apoio material” a “governos que cometem violações aos direitos humanos”, sem detalhar quantas e quais empresas seriam alvo desta nova sanção.

Os EUA acusam a Huawei de agir como cavalo de Troia nos terminais e nas redes 5G ocidentais, o que criaria vulnerabilidade aos dados transmitidos, permitindo o acesso a eles pelas chamadas porta dos fundos. Buscam demover seus aliados políticos de contratarem os serviços da empresa chinesa. Com isso, pretende remover um competidor importante e, no mínimo, retardar o desenvolvimento de tecnologia chinesa através de parcerias e contratos.

Um dos argumentos de Washington é que tanto a Huawei quanto outras empresas chinesas sejam controladas pelo Exército Popular da China, sendo uma ameaça à segurança nacional de qualquer democracia. Apesar da gravidade do argumento, amplamente repercutido pela imprensa mundial, nenhuma prova desse controle foi apresentada. Apoiam-se no fato de que o fundador e CEO da gigante chinesa de telefonia, Ren Zhengfei, é engenheiro e foi oficial do Exército Popular de Libertação da China.

As acusações dos EUA de que a empresa não é segura utilizam a Lei de Inteligência Nacional chinesa de 2017. Por esta lei, toda organização tem obrigação de apoiar e cooperar com a inteligência do Estado. Os EUA afirmam que essa lei obrigaria o repasse de qualquer informação solicitada pelo comando do Partido Comunista por qualquer empresa que atue na China, ainda que os dados requisitados pertençam a cidadãos não chineses e se encontrem armazenados fora da China.

Em entrevista à rede alemã DW, o presidente da Huawei, Liang Hua declarou que “Nunca no passado a Huawei recebeu pedidos para fornecer informações ao Estado. E mesmo que recebêssemos esses pedidos no futuro, não concordaríamos com eles. Sem solicitações legais, não faremos nada”, acrescentando que “A Huawei apenas fornece equipamentos e não participa de operações de rede; portanto, não temos acesso aos dados do usuário.”

O maior êxito da campanha norte-americana deu-se em meados de julho quando o secretário de mídia britânico Oliver Dowden anunciou a proibição do uso da tecnologia da Huawei nas redes 5G no Reino Unido a partir de 2027. Essa decisão muda a posição britânica anterior e pode encarecer a instalação da rede no Reino Unido em mais de 3 bilhões de euros, além de atrasá-la em pelo menos dois anos. Com as sanções dos EUA que impedem a compra de chips e softwares norte-americanos pela Huawei, a Inglaterra avaliou que a empresa chinesa encontrará sérias dificuldades para manter seu fornecimento, o que, na prática, comprometeria as redes por ela instalada.

Paul Triolo, chefe de Geotecnologia da consultoria Eurasia Group explica que há uma grande dependência entre as economias, tornando a competição perigosa para ambos os países. As empresas de semicondutores dos EUA conquistam grandes lucros através do acesso e a China ainda é dependente em larga escala desses semicondutores, como os GPU, como também de softwares e sistemas operacionais de celulares.

GPU é a sigla em inglês para Graphics Processing Unit, o processador responsável pela renderização de gráficos em tempo real em uma placa de vídeo. Em ambientes remotos de operação, a qualidade e velocidade das interfaces de vídeo podem ser determinantes para a qualidade do serviço executado.

Huawei, EUA e Brasil

Como parte da guerra informacional, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, afirmou que o presidente global da Telefónica, José María Álvarez-Pallete López teria afirmado que a Telefônica Brasil, dona da marca Vivo, iria deixar de utilizar equipamentos de redes fornecidos pela chinesa Huawei no país. Mas a Telefônica negou qualquer decisão nesse sentido. A companhia apenas aguarda uma posição oficial do governo brasileiro para saber se este irá restringir o uso de equipamentos da companhia chinesa. A Telefônica Brasil utiliza hoje equipamentos da Huawei e da sueca Ericsson em suas redes. As operadoras de telefonia do país são unânimes em afirmar que a retirada da Huawei do mercado de telecomunicações brasileiro manteria apenas dois fornecedores, a Ericsson e a finlandesa Nokia. Isso limitaria a tecnologia disponível e aumentaria os custos operacionais, que seriam repassados aos consumidores finais. O presidente do Sinditelebrasil, Marcos Ferrari, argumentou pela manutenção da atuação da gigante chinesa em solo brasileiro, porque, segundo ele “Defendemos ampla liberdade econômica para a participação de fornecedores. Isso leva a uma melhora nos preços e na qualidade do serviço ao consumidor”.

Tamanho liberalismo deve ter chocado a embaixada dos EUA em Brasília que reproduziu em seu site o pronunciamento de Pompeo, onde este ainda teria afirmado que “Os acordos da Huawei com operadoras de telecomunicações em todo o mundo estão evaporando porque os países estão permitindo apenas fornecedores confiáveis em suas redes 5G”. A declaração segue o rito de acusações sem prova, que se bastam a si mesmas, sendo engrossadas pelo embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, que declarou em entrevista ao Estado de São Paulo que “o governo americano já nos informou que pretende investir em projetos de 5G no Brasil que usem equipamentos de empresas americanas ou do que chamamos de “trusted supplyer”, parceiros confiáveis.” Que ele define serem a coreana Samsung, além da Nokia, Ericsson. Compara a chinesa Huawei a “uma mangueira com muitos furos, que vaza informações para a China.”

Chapman admite ser o 5G uma “tecnologia pela qual os governos de China e dos EUA andam batalhando comercialmente” e acusa a Huawei de “falta de transparência”. Reproduz o discurso ideológico dos EUA como paladino das liberdades individuais ao admitir que “A tecnologia é uma coisa excelente, mas, quando ela é usada para reprimir os direitos das pessoas, se torna um instrumento negativo. Em países autoritários, a tecnologia é usada para reprimir, não para libertar. E esse princípio, da liberdade, precisa ser defendido”.

Discorre sobre um suposto isolamento das empresas chinesas na Ásia ao afirmar queO Japão, por exemplo, tem uma linha de crédito para empresas japonesas que queiram sair da China. (..) Porque o que antes não era considerado um produto de segurança nacional, agora é. Creio que vamos ver muitos ajustes como este. O que os países mais avançados da Ásia, como Tailândia, Malásia e Indonésia, estão fazendo agora? Contatando as empresas que estão na China e dizendo: “Venham para cá”.

Já em entrevista ao jornal O Globo, no dia 29/07, Chapman mostrou-se menos favorável às escolhas livres se estas contrariarem os interesses dos EUA, ao afirmar que “Se a Huawei conseguir a licença no Brasil para a introdução da tecnologia 5G, vai haver consequências”.

Hoje, a Huawei mantém no Brasil contratos com a Vivo, TIM, Claro e Oi, com participação no mercado em torno de 40% a 50%, apenas para equipamentos da rede 4G, segundo empresários. Os mesmos empresários querem aproveitar boa parte dos equipamentos já em operação na implantação das redes de 5G. A fatia equivalente a essa “boa parte” não é revelada.

Na prática, “para cada dólar exportado para os EUA, o Brasil exporta três dólares para a China”, afirmou um comunicado do Ministério da Agricultura brasileiro em 24 de julho. Nossas exportações à China aumentaram cerca de 30%, o que cria uma dependência muito grande do país a esse único mercado e um consequente atrelamento de sua economia. Se a economia chinesa crescer, a brasileira pode esperar ir à reboque, mas no caso de contração da economia chinesa, o impacto na economia brasileira seria catastrófico.

Sem transformar sua adesão automática aos EUA em retornos comerciais, o descompasso das agendas diplomáticas e do comércio exterior indica uma esquizofrenia que mais fragiliza o Brasil que lhe confere segurança ante as consequências dessa guerra de gigantes, qualquer que seja o seu desenvolvimento.

O mercado de smartphones

No segundo trimestre deste ano, a Huawei tornou-se a maior vendedora de smartphones do mundo ao ultrapassar a Samsung. Se a coreana sofreu com a retração do mercado mundial impactado pela pandemia de Covid-19, a chinesa pode se apoiar no mercado doméstico e atingir a marca de 55,8 milhões de smartphones vendidos no período de abril a junho, enquanto a coreana vendeu um total de 53,7 milhões de dispositivos.

Dois terços dos aparelhos celulares das vendas da gigante chinesa realizaram-se no mercado doméstico. Mesmo assim houve queda nas vendas totais de 5% em relação ao mesmo trimestre de 2019. A queda da Samsung foi de 30%. As vendas de smartphones pela Huawei na China aumentaram 8%, enquanto suas exportações caíram 27% no período. Não foi divulgada fatia de smartphones 5G e de última geração nessas vendas.

O esforço da chinesa agora é manter a posição, mesmo ante a possível recuperação da coreana. Mas manter esse mercado pode ser difícil, porque segundo noticiado no mês de agosto, pelo jornal o Estado de São Paulo, reproduzindo a revista financeira chinesa Caixin, a Huawei deve interromper a fabricação de seus chipsets Kirin no próximo mês, por conta dos impactos das sanções norte-americanas sobre a companhia chinesa.

As sanções atingiram os fornecedores da Huawei, inviabilizando que sua divisão de chips, a HiSilicon, continue a fabricar os chips. Segundo a Caixin, tal informação teria sido prestada pelo presidente executivo da Unidade de Negócios do Consumidor da Huawei, Richard Yu, durante o lançamento do celular Mate 40. A Huawei, contudo, não confirma, nem tampouco nega a reportagem da Caixin.

Se confirmadas, as declarações significam sucesso parcial no objetivo das sanções dos EUA. Segundo relatório da S&P Global Ratings no final de julho deste ano, as mesmas sanções podem acarretar prejuízos de cerca de 25 bilhões de dólares na receita de várias empresas asiáticas. A Huawei não divulgou publicamente o impacto em suas operações.

Essas perdas somadas a não confirmação de contratos de instalação de redes, como no Reino Unido, mostram que a ação combinada de sanções econômicas e manutenção de campanha afirmando que a Huawei produz intencionalmente “portas dos fundos” ou “cavalos de Tróia” nas redes de 5G que implanta impacta os lucros da companhia e sua capacidade de investimento e expansão. Mas pela falta de fontes confiáveis decorrente da guerra informacional que manipula os dados de ambos os lados, é impossível mesurar o impacto real tanto quanto realizar prognósticos mesmo no curto prazo.

Segurança e confiança da retórica sem temperança

O fato é que mesmo desenvolvendo produto com inegável alto nível técnico, se a companhia chinesa não conseguir refutar a campanha dos EUA, não conquistará confiança de transparência na distribuição e do tráfego de dados em suas redes de banda larga e na tecnologia 5G. Assim poderá ser ainda mais prejudicada no processo de instalação dessas redes. Os países do ocidente poderiam alegar custos operacionais mais altos como um preço justo a pagar pela sua segurança ao optar pela concorrência, até porque eles podem cobrir esses custos.

A engenheira, sinóloga e doutora em ciências políticas Águeda Parra, avalia que a reação dos EUA visa compensar seu atraso na corrida do 5G. Segundo ela “Pela primeira vez a China participará dos padrões que vão gerar uma revolução industrial. O faz como ator protagonista, dez anos à frente de seus rivais. E, além disso, com a experiência do desenvolvimento comercial dessa tecnologia em seu país”.

Segundo Cristiano Amon, presidente global da produtora de chips norte-americana Qualcomm, a tecnologia de 5G seria um pilar de transformação para diferentes segmentos da economia global, tendo por consequência a ampliação de desigualdades econômicas para os que a adotarem com atraso.

Ele explica como a velocidade na inovação faz com que novas tecnologias tornem as anteriores obsoletas muito rapidamente, até mesmo antes do detentor da tecnologia antiga perceber queO 5G vai transformar indústrias. Se elas não tiverem acesso a isso, deixarão de ser competitivas.”.

Em se tratando de áreas estratégicas, essa desigualdade permite de fato espionagem e manipulação de dados para quem sai na frente. Se for verdadeiro para empresas, é ainda mais verdadeiro para Estados nacionais. À medida que a China se desenvolve tecnologicamente, diminui a distância entre ela e os EUA e aumenta seu poder relativo na geopolítica mundial, o que explica tanto os ataques norte-americanos quanto o esforço de desenvolvimento chinês.

Ainda que admita que as vendas dos chips da empresa que preside os chineses, seja boa para os EUA, Cristiano Amon pondera que Se você olhar pra essa tecnologia como parte do sistema de TI do setor elétrico, incluindo usinas nucleares, e se olha para ela como o principal ingrediente da economia digital, a conversa é outra. Diferentes indústrias têm diferentes critérios de segurança e de quem são seus parceiros e fornecedores. Então, é natural que o 5G acabe aparecendo nas discussões.”

Na verdade, como a tecnologia 5G não nasce no solo nem frutifica em árvores, não se trata de nada natural, mas de uma tensão entre interesses de potências econômicas acerca de seu desenvolvimento contínuo e áreas de influência que a tecnologia pode permitir àquele que estiver liderando essa corrida.

É um fato que se a China compete com o mundo em tecnologias de ponta como o 5G, seu regime bonapartista desenvolveu restrições internas ao acesso às informações no continente, por bloqueadores de conteúdos especialmente desenvolvidos. Analistas internacionais ocidentais comparam o chamado Grande Firewall (ferramenta que veda o acesso dos cidadãos chineses a sites e redes sociais proibidos pelo regime) ao equivalente virtual do Muro de Berlim.

Ante o fato da intervenção de circulação e compartilhamento de dados no território chinês, os EUA buscam assombrar o ocidente com o fantasma de que a Huawei permitiria o mesmo controle ao tráfego mundial de dados nas redes por ela instaladas, porque sendo companhia chinesa, compartilharia os interesses do governo chinês. Interesses quase sempre associados a reduzir a liberdade no mundo ou instalar ditaduras autoritárias. É importante lembrar que os EUA sempre apoiaram ditaduras sanguinárias, como Pinochet no Chile, a ditadura militar brasileira e mantém esse hábito ao manter excelentes relações coma monarquia Árabe e é muito zeloso em punir quem democratiza dados de sua política externa, como Chelsea Manning, Eduard Snowden e Julian Assange.

A Huawei se defende das acusações lembrando o fato de ser uma empresa privada, com investimentos e capitais privados e que, no interesse da manutenção dos seus lucros, “A segurança cibernética e privacidade do usuário são o principal foco de atenção da Huawei”.

Como já explicávamos em artigo publicado no ano passado, a guerra informacional visa jogar opacidade nos interesses estratégicos e na disputa geopolítica dos dois países. Por tratar-se de interesse de Estado, todo cenário é muito superestrutural, por isso mesmo não colocamos aqui o papel desempenhado pela luta de classes e da classe operária de ambos os países.

Mas fato é que ante tantas trocas de acusações e clichês maniqueístas, é sobre a arena da luta de classes e dos movimentos subterrâneos da velha toupeira que reside o possível desenlace progressivo dessa disputa.