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MUNDO

A luta anti-imperialista de Chelsea Manning

Gabriel Kanaan, historiador

Em 30 de julho passado, comemorou-se nos Estados Unidos o dia des whistleblowers (pessoas que denunciam crimes vazando arquivos secretos). A data de 30 de julho foi escolhida por ser o dia da primeira lei norte-americana de proteção a whistleblowers, promulgada em 1778. Emblemática da farsesca democracia estadunidense, a data de 30 de julho é também o dia da condenação da ex-analista de inteligência e whistleblower Chelsea Manning, em 2013, pelo vazamento de 750 mil arquivos militares e diplomáticos que expuseram os mais bárbaros crimes de guerra cometidos pelo imperialismo estadunidense. Há dez anos, quando Chelsea arriscou sua vida despachando o que viria a ser o maior vazamento da história para Julian Assange (dirigente da WikiLeaks, organização especializada na democratização de materiais censurados por governos ou empresas), ela escreveu ter esperanças de que a publicação dos documentos gerasse “discussões e debates pelo mundo todo”. Um pouco atrasados, aproveitamos a data para manter a esperança de Chelsea acesa e refletir sobre como sua militância em defesa da liberdade de informação e dos direitos LGBTQ+ expõe a veia ditatorial do capital-imperialismo estadunidense e floresce um caminho pautado pela solidariedade na direção oposta ao caminho individualista do capital.

Arrancando a fantasia do Tio Sam

Os arquivos vazados por Chelsea expuseram milhares de assassinatos, torturas e estupros de civis no Afeganistão, no Iraque e em Guantánamo. Os assassinatos, torturas e estupros incluíam jornalistas, a maioria da emissora árabe Al Jazeera, retratando o apreço do Estado norte-americano pela liberdade de imprensa. No vídeo Collateral Murder, um dos arquivos mais conhecidos do vazamento, dois soldados, rindo sadicamente, metralham uma van com jornalistas e crianças. Com os corpos empilhados no chão, um dos soldados comenta “oh yeah, look at those dead bastards”, ao que o outro responde “nice”, como se estivessem jogando Counter Strike. 

Ao expor a barbárie do exército “civilizador” norte-americano que a mídia monopólica escondia, Chelsea arrancou a fantasia de bravos e valentes combatentes pela democracia e da liberdade dos soldados do imperialismo estadunidense para revelar a covardia daqueles terroristas sem turbante, que ostentam em seus uniformes uma ave de rapina que hipocritamente reverencia a paz (a bald eagle). Como disse Chávez, o imperador ficou sem roupas, e se viu obrigado a começar a retirada das tropas estadunidenses do Iraque.

Além dos documentos militares, Chelsea vazou também 250 mil telegramas trocados entre todas Embaixadas norte-americanos ao redor do globo de 2003 a 2010, os quais ficaram conhecidos como os Cablegates. Eles foram democratizados pela WikiLeaks na Biblioteca Pública da Diplomacia Estadunidense, arquivo histórico digital que nos mune, de forma inédita, com vestígios da ação recente do imperialismo estadunidense pelo mundo (oficialmente, os telegramas liberados pelo National Archives vão até, no máximo, 1980). 

Destes 250 mil telegramas, 2.700 foram escritos por agentes estadunidenses no Brasil. Assim, foi graças à Chelsea que hoje temos provas de que José Serra prometeu entregar o pré-sal à petrolífera estadunidense Chevron, que a Embaixada norte-americana boicotava o programa de lançamento de foguetes em Alcântara, que articulava com o PSDB estratégias para derrotar o PT e acabar com os projetos de integração regional e cooperação sul-sul, e que viu uma possibilidade de fazer isso através de um golpismo de toga, baseado no discurso de combate à corrupção, operando em conjunto com juízes, promotores e policiais brasileiros coordenados por Sérgio Moro. 

Ciberativismo contra o patriarcado

A história de Chelsea é essencial para compreendermos como aconteceu o maior vazamento de documentos secretos da história, fruto da rebelião de uma ex-militar contra a opressão patriarcal de uma das instituições mais sólidas da “democracia” norte-americana. Ela nasceu em 1987 e foi batizada Bradley por seu pai, um militar e analista de inteligência. Cresceu no Estado de Oklahoma oprimida pela homofobia na família e no colégio por seu “jeito afeminado”. Se alistou nas Forças Armadas em novembro de 2007 por insistência do pai e, segundo escreveu posteriormente em carta ao seu supervisor em que anexou uma foto sua vestida “como mulher”, decidiu entrar nas fileiras do exército esperando que “o ingresso em um ambiente tão masculino resolveria seu distúrbio de identidade de gênero”. Um soldado do mesmo pelotão no Missouri depôs que “ele era gay e ele era um gay escondido. Você não entra no exército se você é gay. Se você é gay e no exército, mentiu para os militares para entrar (…) Manning era um nanico, então bata nele. Ele era um louco, bata nele. Ele era um viado, bata nele. O cara apanhou de todos os lados. Ele não podia agradar a ninguém”.

Mesmo em um contexto de opressão atroz, Manning construiu um relacionamento com Tyler Watkins, psicólogo que conheceu em Nova York (para onde foi transferida em agosto de 2008) e que a apresentou à comunidade hacker da Universidade de Boston. Mas em outubro de 2009, foram separados pela distância quando Chelsea foi transferida para uma unidade de inteligência no Iraque. Lá, ela foi promovida de private first class para specialist e recebeu acesso às redes Secret Internet Protocol Router Network (SIPRNet) e Joint Worldwide Intelligence Communications System (JWICS). No documentário XY Chelsea (2019), ela explica que, ao ver com os próprios olhos seu exército assassinar, torturar e estuprar o povo iraquiano, teria sido mais fácil seguir o processo. Mas, diz ela, “ser trans, ser queer quando criança… ser indesejada, não amada, invisibilizada… eu sempre senti uma conexão estreita com as pessoas que estão sofrendo mais. Se eu não tivesse sido exposta a isso, talvez eu pudesse ter ignorado, ou não ter visto. Mas eu não posso. Com a esperança da solidariedade, Chelsea aproveitou sua nova posição para baixar arquivos secretos durante meses. Ela conta que “entrava (na base militar) com um CD escrito ‘Lady Gaga’, apagava os arquivos de música e copiava os documentos por cima, enquanto cantarolava Telephone”. 

Após o Washington Post e o New York Times se negarem a publicar os documentos, Chelsea decidiu entrar em contato com a WikiLeaks. Chelsea despachou os arquivos ara Assange através do Jabber, um programa de mensagens de software livre que provavelmente começou a usar com seu ex-companheiro Tyler Watkins (que a introduziu à comunidade hacker), o que tornaria o vazamento irrastreável, mesmo pelos mais invasivos programas de espionagem da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA). O episódio é simbólico da importância da resistência ao capitalismo de vigilância des militantes das TI (Tecnologias da Informação). É emblemático como conseguiram transformar, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o significado da palavra “livre” em algo sem propriedade.

A caça às bruxas do capitalismo de vigilância

Infelizmente, Chelsea revelou o vazamento a um “amigo”, que covardemente a traiu e a entregou ao exército, que a prendeu na solitária em maio de 2010 e a submeteu a torturas psicológicas, privação do sono e nudez forçada, levando-a a tentar o suicídio diversas vezes. Chelsea foi condenada a 35 anos de prisão com base no Espionage Act, lei criada durante a Primeira Guerra Mundial para punir insubordinações militares. Com base nessa lei, também foi condenado, em 1971, o whistleblower e ex-analista militar do think tank RAND Corporation, Daniel Elseberg, que vazou os Pentagon Papers em 1971, documentos ultra-secretos que revelaram as invenções criadas pelo Pentágono para justificar a guerra do Vietnã e as atrocidades cometidas pelo exército no país, que contribuíram para obrigar os Estados Unidos a retirar as tropas da região. A Espionage Act também foi evocada durante a Primeira Guerra pelos urubus de toga da Suprema Corte para prender anarquistas e comunistas que eram contra o alistamento obrigatório, como a anarquista Emma Goldman, o deputado federal socialista Victor Berger e o candidato do Partido Socialista à presidência Eugene Debs, que nas eleições anteriores à sua prisão recebeu quase 1 milhão de votos (6%). Posteriormente, durante a guerra fria, a ameaça vermelha foi a justificativa do macartismo para acionar a Espionage Act e mandar para a cadeira elétrica militantes comunistas. Nada mais emblemático do que a Primeira Emenda, “a garantia da liberdade de expressão”, para representar a farsa da democracia estadunidense. A história dos Estados Unidos é marcada pela perseguição a qualquer vida que fuja da doutrina do capital.

A permanência do DNA macartista do capitalismo estadunidense pode ser observada na reação dos seus representantes ao vazamento de Chelsea. Uma ação em defesa da democracia e da transparência, palavras que tanto aparecem nos discursos do capital esvaziadas do seu sentido, foi combatida pelo terrorismo de Estado: a analista de segurança nacional Kathleen McFarland clamou pela execução de Chelsea, o apresentador da Fox News Bob Beckel disse que “a única saída é atirar no filho da puta” e o líder dos republicanos no Senado Mitch McConnell chamou Assange de terrorista high-tech, “acusando seus inimigos daquilo que se é”. “Quem não deve, não teme”; e quem teme, fala demais. Nada como a auto-incriminação do rei nu para provar a veracidade e a importância dos documentos.

Para prevenir novos vazamentos, o governo estadunidense reforçou o controle psicológico dos militares do exército, lançando logo depois da prisão de Chelsea em 2010 um memorando para avaliar a “felicidade relativa” dos soldados. E, logo após o vazamento, as empresas Mastercard, Visa e Paypal bloquearam as doações bancárias à WikiLeaks, e a Amazon, que era usada como servidor do site, suspendeu seu acesso (em resposta, o grupo hacktivista Anonymous derrubou os sites da Mastercard e da Visa). 

Julian Assange, por sua vez, foi preso uma semana após a publicação dos documentos, sendo liberado dez dias depois, mas perseguido até receber asilo político na Embaixada do Equador (à época presidido por Rafael Correa) no Reino Unido, onde ficou “preso” de 2012 a 2019. Em abril abril de 2018, o novo governo equatoriano de Lenin Moreno (que, apesar de ser o sucessor de Correa, rompeu com o ex-presidente e vem construindo uma política externa subserviente aos interesses dos EUA) proibiu Assange de receber visitas e de acessar a internet, e em abril de 2019, em uma manobra inédita na história da diplomacia, revogou o seu asilo, entregando-o à polícia inglesa. Hoje, Assange aguarda em uma cela britânica a extradição aos Estados Unidos, onde pode ser torturado até a morte

Contra todo aparato de vigilância e repressão de caça às bruxas do Estado norte-americano, whistleblowers continuam expondo o projeto do capital contra a democracia. Depois do vazamento de Chelsea, Snowden vazou em 2013 os programas de espionagem da NSA revelando a ampla rede de vigilância do governo norte-americano, que minera dados pessoais e os usa para hackear democracias ao redor do globo, através de projetos como o software Persona, desenvolvido pelo Pentágono para criar contas fantasmas no Facebook e amplificar a influência psicológica pró-Estados Unidos, e do Projeto Minerva, também desenvolvido pelo Pentágono para promover agitações civis contra governos vistos como hostis pelos Estados Unidos através das redes sociais. Tais dados roubados pelas agências da democracia estadunidense também são usados para manipular diretamente o comportamento eleitoral, como aconteceu no conhecido caso da eleição que Trump ganhou usando dados da Cambridge Analytica para direcionar propagandas de conteúdo especificamente selecionado para se adequar aos interesses de um grupo específico interesses conhecidos através do roubo dos dados pessoais. Como revelou a diretora da Cambridge Analytica, o mesmo esquema foi usado na eleição de Bolsonaro, quando o empresariado brasileiro organizou um caixa 2 milionário para financiar disparos em massa de mensagens com fake news personalizadas no Whatsapp.

Reexistindo na luta

Após intensas mobilizações pela libertação de Chelsea nos Estados Unidos e no mundo, Obama diminuiu sua pena e ela foi solta em maio de 2017. Na busca de voltar a existir após anos na solitária, Chelsea mergulhou na militância pela liberdade de informação e pelos direitos LGBTQ+. A característica intrinsecamente anti-imperialista do seu ativismo mobilizou, em primeiro lugar, um enfrentamento central dentro do movimento LGBTQ+ estadunidense contra o homonacionalismo, conceito criado por Jasbir Puar com o objetivo de descrever a forma assumida pelo capital-imperialismo para assimilar parte das pessoas homossexuais a uma perspectiva essencialmente não contestadora das normatividades geradoras de opressões. Em seu livro Terrorist Assemblages: homonationalism in queer times, Puar analisa especificamente como o discurso do excepcionalismo americano (Ocidente igualitário, defensor des LGBTQ+, contra Oriente bárbaro) foi usado para justificar a guerra ao terror. 

Levando adiante o conceito de Puar, Mia Fischer observou como a militância de Chelsea não poderia ser absorvida pelo que cunhou de transpatriotismo. A mídia monopólica passou então a patologizar Chelsea como uma louca, criada por uma “mãe drogada”, para transformá-la em um “alien”, ou seja, no “outro” (na legislação dos Estados Unidos, “aliens” são aqueles que não são cidadãos estadunidenses), para justificar que seu tratamento refletisse o tratamento dado aos “outros” do Oriente pela guerra ao terror. O confronto entre o transpatriotismo liberal-conservador com a luta anti-imperialista de Chelsea é exemplificado pelo racha na Parada LGBT de São Francisco, que em 2013 escolheu Chelsea como homenageada, mas viu sua direção se retratar pela escolha após a revolta de diversas organizações de veteranos do exército gays.

Depois de tornar-se uma liderança das lutas LGBTQ+ e nos movimentos sociais pela liberdade de informação, Chelsea expandiu sua militância também para a política partidária. Sem ilusões no sistema político norte-americano de, como dizia Galeano, “partido único disfarçado de bipartidarismo”, o coletivo organizado por Chelsea decidiu alistar-se no Partido Democrata para disputar as prévias ao Senado no Estado de Maryland em 2018. Chelsea definiu sua participação nas prévias democratas como uma forma de mobilizar o setor mais à esquerda da base do partido contra o establishment representado pela figura do seu adversário democrata Ben Cardin, senador a favor da pena de morte que em 2011 apresentou um projeto para endurecer as punições a whistleblowers. A campanha de Chelsea defendeu sistemas de saúde e educação universais, renda básica universal, uma política de fronteiras abertas, o fechamento das prisões, a despolicialização das escolas, a mobilização dos sindicatos e o desmantelamento das agências de vigilância. Sua campanha de pauta máxima mobilizou 32 mil democratas (6%). Podemos dizer que Chelsea dirige um dos mais bem sucedidos movimentos “entristas” (tática recorrente no movimento trotskysta de entrar em partidos social-democratas para disputar seus setores mais radicais apresentando um programa revolucionário) na história da política estadunidense.

Como exemplificamos com os trabalhos de Puar e Fishcer, as ideias de Chelsea mobilizam também as reflexões de setores da academia estadunidense, o que levou ela a ser convidada para dar aulas em Harvard. O convite causou a fúria de Mike Pompeo, então diretor da CIA e atual Secretário de Estado de Trump, o que fez a universidade desconvidá-la no dia seguinte. Como disse Chelsea, o episódio é representativo de como a policialização do Estado norte-americano se estende das Forças Armadas até às universidades, caladas pelo DNA macartista do Estado norte-americano. Vale mencionar que a censura que o capital exerce sobre as universidades é tão grande que os telegramas publicados pela WikiLeaks são de uso proibido em diversos espaços acadêmicos. Uma gama de departamentos governamentais, incluindo a Biblioteca do Congresso, bloqueou o acesso à página da WikiLeaks na internet. Os Arquivos Nacionais bloquearam até mesmo as pesquisas no banco de dados para a frase “WikiLeaks”. A proibição do uso dos documentos se refletiu na própria produção da área de relações internacionais: a revista International Studies Quarterly, por exemplo, adotou a política de não aceitar nenhum trabalho baseado em material da WikiLeaks.

Depois das marchas fascistas de Charlottesville em 2017, quando supremacistas brancos saíram às ruas com bandeiras nazistas e assassinaram uma mulher que se manifestava contra, o combate ao antifascismo passou a ser uma pauta central da militância de Chelsea. Ela chegou a aproveitar sua influência sobre uma ex-apoiadora de Bernie Sanders que girou ao trumpismo para se infiltrar como espiã em uma organização da extrema-direita norte-americana para acessar informações e planos dos fascistas: se você é analista de inteligência, você deve entender como pensa seu inimigo”.

Sua existência de luta faz de Chelsea ameaça constante ao capitalismo estadunidense e alvo eterno da caça às bruxas do macartismo. No mês seguinte à prisão de Assange, em maio de 2019, Trump convocou Chelsea a depor contra ele ou voltar à prisão. Com firmeza revolucionária, Chelsea resistiu, e outra vez na solitária, tentou novamente pôr fim à vida de prisioneira em março deste ano. Após uma nova onda de mobilizações, conquistou a liberdade há poucos meses, mas permanece na mira do aparato de vigilância do capital-imperialismo.

Munição para a luta antiimperialista

A luta de Chelsea mantém acesa a esperança de que outro mundo é possível, mobilizando de manifestações pelos direitos LGBTQ+ no coração do império até protestos contra o imperialismo e pela liberdade na internet no mundo árabe. O vazamento de Chelsea é um marco na história da luta da democracia contra o capital. Além de expor, com o vazamento dos arquivos militares, o terrorismo do império contra aqueles que não consentem, Chelsea muniu, com o vazamento dos arquivos diplomáticos, a luta anti-imperialista em 171 países do mundo (onde os Estados Unidos têm representação diplomática) com indícios das articulações traçadas entre capitalistas estadunidenses e burguesias locais para minar democracias onde seus interesses eram contrariados. 

Se os impactantes arquivos militares receberam pouca atenção das manchetes da mídia monopólica, os arquivos diplomáticos permanecem ainda menos investigados. Assim, ainda estão por ser revelados muitos vestígios de como, em nome do interesse nacional, burguesias locais, em estreita aliança com os capitalistas estadunidenses, organizaram golpes de Estado em governos democraticamente eleitos para solapar a democracia com privatizações, entregando o restrito controle popular sobre setores estratégicos da economia para empresas estrangeiras, e com cortes de direitos, tomando a restrita segurança que parcela da classe trabalhadora havia conquistado para atuar na política.

Dessa maneira, a importância destes telegramas para a luta anti-imperialista da classe trabalhadora nos países periféricos é enorme. Sabendo disso, Evo Morales criou, na época do vazamento, um site do governo onde se podia pesquisar todos telegramas do Cablegate que envolvem a Bolívia. Sabendo disso, o governo golpista de Jeanine Áñez, que derrubou Evo em novembro de 2019, derrubou também o site.

Como dissemos, o medo explicitado pelas reações do império e seus subalternos ao vazamento atesta o potencial subversivo destes telegramas. Um exemplo brasileiro reafirma isso: alguns meses depois do vazamento do Cablegate, José Sarney, então presidente do Senado, declarou, assustado com a ideia de que arquivos brasileiros também pudessem ser democratizados, que “não podemos fazer WikiLeaks da história do Brasil”, comentário que justificou, após ser questionado, argumentando que chafurdar a história das fronteiras do país poderia causar atritos com os vizinhos. Embora a perspectiva de acessar documentos ainda mantidos secretos pelo Itamaraty seja inspiradora, mostramos que já é possível escrever a história do Brasil a partir dos arquivos da WikiLeaks: o próprio Sarney, por exemplo, aparece em 99 telegramas da Embaixada estadunidense no Brasil vazados no Cablegate. 

Uma das formas de mantermos acesa a esperança de Chelsea é não deixar que tais arquivos permaneçam escondidos. Se, em uma primeira análise, descobrimos articulações burguesas contra a democracia que envolvem figuras centrais da política brasileira, como Moro e Serra, imaginemos quantas articulações contra a democracia no Brasil  – e nos telegramas das Embaixadas nos outros 170 países que fazem parte do arquivo que Chelsea vazou – ainda estão por ser desvendadas.

 

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