Dois anos nos separam do bicentenário da independência, e o Brasil se tornou um país triste. Os graus da nossa dependência externa estão aumentando, não diminuindo.
O último mês foi desolador: (a) a pandemia nos coloca nos primeiros lugares no mundo, proporcionalmente à população, em número de vítimas; (b) o desemprego atingiu mais nove milhões de trabalhadores em seis meses; (c) o retorno de inflação acima de 20% nos alimentos da cesta básica, agrava a tragédia sanitária[1]; (d) as denúncias semanais de jovens negros discriminados, perseguidos, presos e assassinados em função de um racismo feroz e endêmico que, em escala nacional, aumentou este ano; (e) a bizarra mobilização de grupos de extrema-direita contra o direito ao aborto de uma menina de dez anos, violentada desde os seis anos pelo próprio tio; (f) uma ofensiva da classe dominante para impor uma reforma na Constituição que permita a precarização do funcionalismo público, até a redução nominal dos salários, além de privatizações relâmpagos: já fizeram a do saneamento básico, e perseguem a dos Correios e a da Eletrobrás; (g) um padrão crônico de corrupção em todas as esferas, nas prefeituras, governos estaduais – com processos de impeachment – e investigações que se aproximam de Jair Bolsonaro com a prisão de Fabrício Queiroz são o contexto de um Brasil infeliz.
Mas, paradoxalmente, pesquisas informam que somente um terço, ou 33% da população brasileira enxerga o presidente Jair Bolsonaro como principal responsável pelas mortes provocadas pelo novo coronavírus durante a pandemia[2]. A premissa de que o desgaste constante de Bolsonaro é a tendência que irá prevalecer, inexoravelmente, é uma aposta perigosa. O impacto do auxílio emergencial, mesmo sendo transitório, deve servir de alerta. Por isso, seria dramático se a esquerda brasileira aceitasse que o horizonte da luta contra Bolsonaro deve ser 2022.
Nem sempre os rios correm na direção do mar. O respeito aos limites da alternância pelo calendário eleitoral pode ser fatal. Porque o governo Bolsonaro não é somente um governo de extrema-direita. A ala bolsonarista é neofascista, tem um projeto estratégico, e pretende impor uma derrota histórica às organizações dos trabalhadores e dos movimentos sociais populares.
Uma longa estagnação com viés de depressão
A depressão econômica já resultou em uma década perdida. Dez anos não são dez meses. O PIB não deve voltar ao patamar de 2014 antes de 2024, se voltar. O governo Bolsonaro se beneficia de um apoio amplamente majoritário na classe dominante. Este apoio tem como âncora uma estratégia econômico-social.
A inversão da conjuntura teve como alicerce o orçamento de “guerra” que garantiu a distribuição de R$250 bilhões para 65 milhões de desamparados. Mas provocou uma disparada do endividamento público – de 72% para, pelo menos, 95% do PIB – sustentada, até agora, pela redução do custo da rolagem dos títulos para 2% ao ano.
Mas o perfil da dívida interna está mudando para dívida de curto prazo, o que é perigoso. Nos títulos de cinco anos a taxa já está em 7%. A lei do teto de gastos, aprovada em 2017, alimenta a expectativa de que irá prevalecer nos próximos anos uma redução neste perfil dívida/PIB para tranquilizar os capitalistas.
Mas a chave é o acordo estratégico com o projeto de Paulo Guedes de um reposicionamento subalterno do capitalismo brasileiro no mercado mundial. O nome desta reinserção, um alinhamento estreito com o governo Trump, e uma dependência do investimento externo para sair da depressão é recolonização. A recolonização é uma regressão histórica no lugar do Brasil no mercado mundial e, também, no sistema internacional de Estados.
Ela obedece a um plano e repousa em uma aposta. O plano é que um crescimento acima de 3% ao ano entre 2021 e 2022, impulsionado pela atração de maciça elevação do investimento estrangeiro seria suficiente para conter o mal estar social resultante do aumento da desigualdade social. A aposta é que a demanda do mercado interno será elevada quando a pandemia estiver mais controlada, e o patamar das exportações der um salto: uma solução asiática para a “armadilha da estagnação dos países de rendimento médio”.
Mas a recolonização exige uma elevação nas já deterioradas condições de superexploração do trabalho. Não podemos saber se esta contrarrevolução social pode ou não ser feita no contexto do regime democrático-liberal erguido desde o fim da ditadura. É possível que só seja possível impondo uma derrota histórica à classe trabalhadora. Por isso, Bolsonaro persegue a conquista de um segundo mandato.Uma derrota histórica anula a capacidade de resistência por muitos anos, o intervalo de uma geração, como ocorreu depois de 1964 pela ditadura militar. Esse é o maior de todos os perigos.
A dependência externa está aumentando
O gigantismo do PIB brasileiro não pode nos ofuscar. Devemos compreender que o Brasil é ainda um país periférico em toda a linha. Mas, como expressão do desenvolvimento desigual e combinado a economia brasileira ainda tem o maior parque industrial do mundo, ao sul da linha do Equador. Suas multinacionais são as mais poderosas do continente. Porém, a longa estagnação dos últimos seis anos sinaliza de forma inequívoca que está em curso um processo de recolonização econômica.
Existe uma hierarquia nos graus de dependência externa. O Brasil foi desde o fim da Segunda Guerra Mundial uma semicolônia privilegiada e uma submetrópole regional. Essa é a peculiaridade do híbrido brasileiro.
O capitalismo brasileiro sempre foi e permanece sendo um grande importador de capitais.[3] Seu lugar no mercado mundial foi, também, o de um país exportador de produtos primários e importador de manufaturados que incorporam mais tecnologia. Sofreu, historicamente, transferência de riqueza pelas desvantagens dos termos de troca. Não obstante, preservou uma posição de submetrópole regional, portanto, também, uma plataforma de exportação de capitais para o Uruguai, Peru, Bolívia Paraguai.
O claro padrão histórico de dependência da economia brasileira se expressa na necessidade insubstituível de acesso a investimentos estrangeiros para não cair em estagnação. Paulo Guedes aposta que será possível fazer “chuva de dólares” ao final da pandemia. Bolsonaro, e a fração burguesa que o apoia, é consciente do perigo da estagnação econômica. A decadência se traduziu, historicamente, em crise social, que foi sempre uma antessala da crise política.
A vulnerabilidade externa é o calcanhar de Aquiles do capitalismo brasileiro
Esta vulnerabilidade externa impôs, necessariamente, uma e outra vez, um pé no freio: um ajuste provocado pela fragilidade das transações correntes, logo, o perigo de uma forte desvalorização da moeda nacional. Este ano de 2020 ela já superou os 40%, e só não foi maior em função de reservas cambiais acima US$300 bilhões, mas em viés de queda. Em consequência, as pressões inflacionárias já voltaram, atingindo a cesta básica.
O que explica, parcialmente, os ciclos de pressão inflacionária, também, crônicos, como o último, que culminou em 2015 com a taxa acima de 10%. O déficit nominal do orçamento, portanto, o déficit primário somado à rolagem dos juros da dívida interna, em proporção do PIB, evoluiu de 4,8% em 2001 para 2,7% em 2004, 2,4% em 2007, 6,1% em 2014 e 10,3% em 2015. Mas este ano de 2020, com a aprovação do chamado orçamento de “guerra” para enfrentar a pandemia, será próximo a 30% do PIB.
O câmbio sofreu forte desvalorização, passando de R$2,20 por US$1,00, em meados de 2014, para níveis próximos de R$3,50/US$1,00 em meados de 2016, atingiu R$4,30 em 2019, e escalou para R$5,30 em 2020. A contração do PIB desde 2014 até 2016 foi de 7%, uma destruição vertiginosa[4]. Mas será superada este ano por uma contração projetada sempre acima de 5% do PIB, em comparação com 2019.
O impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Temer abriram o caminho para as reformas estruturais, começando por um ajuste fiscal sem paralelo na história. A prisão de Lula abriu o caminho para a eleição de Bolsonaro. E Bolsonaro abre o caminho para regressão histórica. O Brasil, neste sete de setembro de 2020, está vivendo um retorno ao padrão de um país periférico especializado na exportação de alimentos e extração de minérios. Uma recolonização. Um país triste. Uma nação infeliz.
[1] https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/09/precos-cesta-basica-acima-inflacao/
[2] https://revistaforum.com.br/politica/ibope-um-terco-da-populacao-ve-bolsonaro-como-principal-culpado-por-situacao-da-pandemia/
[3] O Brasil foi o país que recebeu o terceiro maior volume de Investimento Externo Direto (IED) em 2012 entre as economias da periferia, um total de US$ 65 bilhões, ficando atrás apenas da China (US$ 120 bilhões) e Hong Kong (US$ 72 bilhões). Esse grande volume de IED no Brasil cobriu o déficit em conta corrente no mesmo ano, que chegou a US$ 54,2 bilhões, equivalente a 2,4% do PIB (Produto Interno Bruto). Esse volume de IED, em torno de US$60 bilhões foi estável durante os dois anos anteriores e posteriores. Mas superou os US$80 bilhões em 2017.
http://desacato.info/investimento-externo-direto-e-desnacionalizacao-da-economia-brasileira/ Consulta em 19/12/2016.
[4] Carta de conjuntura do IPEA: Nota técnica Reavaliando a vulnerabilidade externa da economia brasileira, indicadores e simulações. Julho/Setembro 2016.
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28349 Consulta em 12/12/2016.
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