“Não deixes que as tuas lembranças pesem mais do que as tuas esperanças”
(Sabedoria popular persa)
Quatro anos depois daquele infeliz 31 de agosto de 2016 podemos tentar atribuir sentido, em perspectiva histórica, à acumulação de derrotas que nos trouxeram até aqui. Algo terrível mudou em 2016, e subverteu a relação social de forças de maneira tão desfavorável que se abriu uma situação reacionária no Brasil. Os trabalhadores e as massas oprimidas sofreram muitas derrotas parciais entre 1985 e 2015 – as Diretas Já foram sequestradas por Tancredo e levaram ao poder Sarney, por exemplo – mas nada comparável.
Lula conquistou, entre 1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular. A proeminência de Lula foi uma expressão da grandeza social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, de sua inocência política. Lula conquistou, entre 1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular pelo seu papel corajoso à frente das greves.
Uma classe trabalhadora jovem e com pouca instrução, recém-deslocada dos confins miseráveis das regiões mais pobres nos quinze anos anteriores, sem experiência de luta sindical anterior, sem tradição de organização política independente, porém, concentrada em dez grandes regiões metropolitanas e, nos setores mais organizados, com uma indomável disposição de luta. Uma poderosa classe trabalhadora inquieta, irritada e indócil.
Um gigante social muito combativo, mas embriagado de ilusões reformistas. Uma imensa expectativa de que seria possível mudar a sociedade sem um conflito de grandes proporções, sem uma ruptura com a classe dominante, era majoritária, e a estratégia do “Lula lá” embalou as expectativas de uma geração. O sonho se realizou com a vitória eleitoral de 2002, mas virou um pesadelo treze anos depois.
As manifestações na Paulista, a partir março de 2015, e com dimensão nacional entre março e abril de 2016, deram visibilidade a núcleos quase subterrâneos de uma extrema-direita exaltada, e lograram colocar em movimento, na escala de milhões, setores médios e até, minoritariamente, populares (articulados, predominantemente, a partir de seitas evangélicas), e levaram a direita institucional – PSDB, DEM, e MDB – a reboque.
Abriu-se no Brasil uma situação defensiva do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores. O julgamento de Lula foi tão, monstruosamente, político como o de Dilma. Qualquer ilusão na neutralidade da LavaJato revelou-se fatal. Portanto, o presumível é que o Habeas Corpus seja recusado e Lula não vai recuperar seus direitos políticos e não poderá concorrer em 2018.
É improvável que seja possível mobilizar contra a decisão pendente na segunda turma do STF. No entanto, ninguém na esquerda deveria permanecer neutro diante da seletividade da LavaJato. Esta operação precedeu e incendiou a ofensiva que começou em março de 2015, passou pelo impeachment, prisão de Lula, e culminou com a eleição de Bolsonaro. Ela foi funcional para garantir o deslocamento das camadas médias, e teve profundo impacto na desmoralização entre os trabalhadores. Mas não explica tudo. Há também que considerar o significado dos governos liderados pelo PT.
Um ciclo político de quatro décadas, a hegemonia inconteste do PT na esquerda, está se encerrando, lentamente, desde 2016. Processos desta dimensão só se explicam com a acumulação de derrotas estratégicas, portanto, por muitos fatores.
Ao longo deste ciclo histórico ocorreram muitas oscilações nas relações de forças entre as classes, umas favoráveis, outras desfavoráveis para os trabalhadores e seus aliados. Uma periodização pode ser útil:
(a) tivemos um ascenso de lutas proletárias e estudantis, entre 1978/81, seguido por uma estabilização frágil, depois da derrota da greve do ABC até 1984, quando uma nova onda contagiou a nação com a campanha pelas Diretas já, e selou o fim negociado da ditadura militar;
(b) uma nova estabilização entre 1985/86 com a posse de Tancredo/Sarney e o Plano Cruzado, e um novo auge de mobilizações populares, encabeçado pela potência de uma CUT apoiada na pujança de sindicatos combativos, contra a superinflação que culminou com a campanha eleitoral que levou Lula ao segundo turno de 1989;
(c) uma nova estabilização breve, com as expectativas geradas pelo Plano Collor, e uma nova onda a partir de maio de 1992, potencializada pelo desemprego e, agora, da hiperinflação que culminou com a campanha pelo Fora Collor;
(d) uma estabilização muito mais duradoura com a posse de Itamar e o Plano Real, uma inflexão desfavorável para uma situação defensiva a partir da derrota da greve dos petroleiros em 1995;
(e) lutas de resistência entre 1995/99, e uma retomada da capacidade de mobilização que agigantou-se, em agosto daquele ano, com a manifestação dos cem mil pelo Fora FHC, interrompida pela expectativa da direção do PT e da CUT de que uma vitória no horizonte eleitoral de 2002 exigiria uma política de alianças, que não seria possível em um contexto de radicalização social;
(f) estabilização social ao longo dos dez anos de governos de coalizão liderados pelo PT, entre 2003 e junho de 2013, quando uma explosão de protesto popular acéfala levou milhões às ruas, um processo interrompido ainda no primeiro semestre de 2014;
(g) finalmente, uma inversão muito desfavorável com as mobilizações reacionárias gigantes da classe média insufladas pelas denúncias da LavaJato, entre março de 2015 e março de 2016, quando alguns milhões ofereceram a sustentação para o golpe jurídico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, encerrando o ciclo histórico.
Este ciclo foi a última fase da tardia, porém, acelerada transformação do Brasil agrário em uma sociedade urbana; a transição da ditadura militar para um regime democrático-eleitoral; e a história da gênese, ascensão, apogeu e declínio da influência do petismo, depois transfigurado em lulismo, sobre os trabalhadores; ao longo destes três processos a classe dominante conseguiu, aos “trancos e barrancos”, evitar a abertura de uma situação revolucionária no Brasil como aquelas que a Argentina, Venezuela e Bolívia conheceram, embora, mais de uma vez, tivessem se aberto situações pré-revolucionárias que foram, habilmente, bloqueadas e contornadas, recuperando-se a governabilidade.
A eleição em 2002 de um presidente com origem social na classe trabalhadora em um país capitalista semiperiférico, como o Brasil, foi um acontecimento atípico. Mas não foi uma surpresa. O PT já não preocupava a classe dominante, como em 1989. Um balanço destes treze anos parece irrefutável: o capitalismo brasileiro não esteve nunca ameaçado pelos governos do PT.
Os governos do PT foram governos de colaboração de classes. Favoreceram algumas reformas progressivas, como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo, o Bolsa-Família, e a expansão das Universidades e Institutos Federais. Mas beneficiaram, sobretudo, os mais ricos, mantendo até 2011 o tripé macroeconômico liberal intacto: a garantia do superávit primário acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2,00 por dólar e a meta de controle da inflação abaixo de 6,5% ao ano.
Não deveria surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de banqueiros, industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros, enquanto a situação externa foi favorável. Quando chegou, em 2011/12, o impacto da crise internacional aberta em 2008, o apoio incondicional da classe dominante fracionou-se. Depois veio a derrocada.
Por isso, embora o Brasil seja menos pobre e ignorante que há dezessete anos, não é menos injusto. O balanço histórico é devastador: a direção lulista se deixou transformar em presa da operação LavaJato, desmoralizou-se diante da classe trabalhadora e da juventude, e entregou as classes médias exasperadas (pelas denúncias de corrupção, pela inflação nos serviços, pelo aumento dos impostos, etc.) nas mãos do poder da Avenida Paulista, abrindo o caminho para um governo Temer ultrarreacionário, antessala da eleição de Bolsonaro. Não são inocentes. Não foi para isso que uma geração lutou tanto.
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