Publicado em 27/07/2020 em Spectre Journal. Tradução: Lucas Marques e Jéssica Milaré.
Os motins de Stonewall deram origem ao movimento LGBTQ moderno como o conhecemos. Em seu 51º aniversário, estamos testemunhando a rebelião mais significativa contra o racismo e a violência policial em mais de meio século.
A revolta de hoje está se desenrolando em um contexto em que as políticas públicas e a opinião dominante estão mudando decisivamente em favor da igualdade LGBTQ. Vemos isso na legalização do casamento gay, na inclusão da orientação sexual e identidade de gênero nas leis de não discriminação no local de trabalho e no aumento da visibilidade e representação trans e queer na cultura popular, entre outros lugares.
Por outro lado, o governo Trump passou seu primeiro mandato incitando o fanatismo racista e alimentando sua base de direita. Acima de tudo, provocou ataques contra as comunidades LGBTQ que ameaçam voltar no tempo e prejudicar os ganhos obtidos em décadas de luta.
Dado esse cenário contraditório, é necessário avaliar a situação da vida e da política LGBTQ sob Trump; analisar o significado da rebelião anti-racista em andamento e suas implicações para o movimento trans e queer; e escavar o legado radical da Rebelião de Stonewall e do Movimento de Liberação Gay. Ao fazer isso, recuperarei as lições que ele tem para a luta pela libertação trans e queer hoje, considerando a interseção dessa luta com a luta pelas vidas negras.
A situação da vida LGBTQ hoje
Desde ataques contra pessoas trans até a defesa de “liberdades religiosas”, o governo Trump fez questão de visar os mais oprimidos e vulneráveis em nossa sociedade. Alguns dos ataques mais flagrantes do governo Trump às pessoas LGBTQ incluem:
No verão de 2017, em uma série de tweets clássicos de Trump, o presidente anunciou que restabeleceria a proibição de pessoas trans atuarem nas Forças Armadas, alegando espuriamente que as Forças Armadas não poderiam arcar com os altos custos de assistência médica.
No mesmo ano, a secretária de Educação Betsy DeVos rescindiu as diretrizes da era Obama, que exigiam que as escolas fornecessem proteções básicas de direitos civis aos estudantes trans. No contexto de um sistema escolar em que estudantes trans são regularmente intimidados e assediados e já experimentam níveis desproporcionalmente mais altos de depressão e suicídio, essa decisão terá consequências altamente prejudiciais.
Trump continuou a lotar o sistema judicial federal com indicados que se opõem aberta e veementemente aos direitos LGBTQ.
O Departamento de Justiça rescindiu um memorando federal da época de Obama que declarava as pessoas trans como protegidas pelas leis de direitos civis e saiu em apoio à legislação anti-trans da “lei do banheiro”. A direita preconceituosa tomou isso como um sinal verde para a ofensiva, usando o disfarce de “liberdades religiosas” e “leis de banheiro” para reduzir as proteções estabelecidas dos direitos civis em todo o país nos níveis local, estadual e federal.
O governo forneceu um conjunto de diretrizes de “liberdades religiosas” às agências federais, pedindo-lhes que respeitassem as “proteções à liberdade religiosa” em todos os níveis do governo federal. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos também criou uma nova agência, a Divisão de Consciência e Liberdade Religiosa, para garantir que as “liberdades religiosas” dos provedores não sejam violadas.
Sem nenhuma explicação, o governo demitiu todo o Conselho Consultivo Presidencial sobre HIV / AIDS em dezembro e se recusa a reconhecer o Mês do Orgulho LGBTQ em junho.
Permitiu que os abrigos de emergência negassem moradia a pessoas não conformes de gênero e transgêneros. Apesar do fato de as pessoas LGBTQ serem significativamente mais propensas a viver sem-teto em suas vidas, o secretário do HUD, Ben Carson, propôs uma regra para permitir que abrigos de emergência neguem o acesso ou discriminem pessoas transgêneros e não conformes de gênero que não têm casa.
Apoiou a discriminação no emprego contra pessoas LGBTQ, enviando instruções [amicus briefs] ao Supremo Tribunal dos EUA, defendendo contra a inclusão das pessoas LGBTQ nas políticas de não discriminação no local de trabalho e se declarando publicamente contrário à Lei da Igualdade.
Instituiu mudanças na Lei de Assistência Acessível (ACA), removendo proteções explícitas para pessoas LGBTQ em programas de saúde. Isso foi feito ao excluir pessoas LGBTQ de proteções contra discriminação com base em estereótipos sexuais e identidade de gênero. Em um sistema de saúde já marcado por transfobia e homofobia, isso afetará desproporcionalmente a classe trabalhadora e as pessoas pobres e trans e queer, principalmente as racializadas.
Raça, classe e opressão LGBTQ
Combinada com ataques mais amplos contra a classe trabalhadora e as pessoas oprimidas, a situação para as pessoas trans e queer mais vulneráveis permanece extremamente precária. Agora está se aproximando de um estado de crise.
Nada demonstra isso mais do que o nível de violência sofrido pelas mulheres trans racializadas. Em 2017, [nos EUA,] 28 pessoas trans, em sua maioria mulheres trans racializadas, foram mortas como resultado de ataques motivados por ódio. As mulheres trans racializadas representam 67% dos homicídios contra a comunidade LGBTQ e as mulheres trans negras têm uma expectativa de vida de 35 anos. Os efeitos combinados da pobreza, violência e fanatismo estão literalmente roubando a vida de mulheres trans racializadas.
As histórias de Selena Reyes-Hernandez e Dominique Rem’mie Fells, duas mulheres trans racializadas brutalmente assassinadas no início deste verão, são apenas os exemplos mais recentes. Selena cresceu na área de Chicago. Depois de revelar que era transgênero para um parceiro íntimo, Selena foi baleada na cabeça por Orlando Perez, um estudante de 18 anos do ensino médio. Depois de assassinar Selena, Perez voltou e continuou a atirar nela várias vezes. A família de Selena se recusou a reconhecer sua filha trans, enterrando-a com seu nome morto. Mesmo na morte, a transfobia continua.
Rem’mie Fells, uma jovem da Filadélfia, foi descrita por amigos como uma alma brilhante e amorosa, uma dançarina apaixonada e artista que sonhava em voltar à escola para estudar moda. Ela foi brutalmente assassinada, seu corpo foi desmembrado e espancado até a morte. Como sua amiga Kendall Stephens explicou em uma entrevista: “Vivemos com um medo constante de ser agredidas e assassinadas antes do nosso tempo. Parece que ser uma pessoa trans racializada é como uma sentença de morte.”
Como um relatório detalhando as camadas simultâneas de opressão estrutural e seus efeitos, explica:
Embora os detalhes desses casos sejam diferentes, é claro que a violência fatal afeta desproporcionalmente mulheres transgêneros, e que as interseções de racismo, sexismo, homofobia e transfobia conspiram para privá-las de emprego, moradia, assistência médica e outras necessidades, barreiras que tornam-nas vulneráveis.
O cenário para jovens LGBTQ [queer], especialmente jovens trans, é igualmente perturbador. Embora as escolas devam ser um local seguro para os estudantes contra a opressão e discriminação da sociedade, muitas vezes não o são.
Em um estudo recente, 82% dos jovens trans relataram sentir-se inseguros na escola, 44% sofreram abuso físico e 67% foram intimidados por seus colegas. O impacto emocional e psicológico da rejeição social e familiar dos jovens LGBTQ pode ser traumatizante e ter consequências físicas perigosas.
Os jovens lésbicas, gays e bissexuais contemplam o suicídio quase três vezes a taxa de seus pares heterossexuais, e mais de 40% dos adultos transgêneros relatam ter tentado o suicídio.
Dos mais de 1,7 milhão de jovens sem-teto nos EUA, 40% se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros ou homossexuais, e quase todos relatam rejeição da família, comunidade e / ou colegas como a principal razão para serem forçados a ir para as ruas.
Em uma era de encarceramento em massa, não é surpresa que um sistema de justiça criminal projetado para atingir comunidades negras, latinas e imigrantes de baixa renda e pessoas da classe trabalhadora afete desproporcionalmente essas mesmas populações na comunidade LGBTQ.
Com o advento das leis de “qualidade de vida” na década de 1990, muitas cidades viram um aumento nas prisões por mendicância, vadiagem e outros pequenos crimes. Isso foi parte de um esforço maior para “endurecer” e “reprimir” os crimes que políticos e agentes da lei argumentaram que pioravam a “qualidade de vida” e levavam a formas mais graves de comportamento criminoso. Em vez de tornar as comunidades mais seguras, essas medidas duras criminalizam os sintomas da exploração e opressão capitalistas e resultam na entrada de mais pessoas no sistema jurídico criminal por ofensas não violentas e pequenas infrações.
Os jovens LGBTQ pobres e sem-teto, principalmente mulheres trans racializadas, que são empurrados para a economia informal para sobreviver são mais freqüentemente alvo do policiamento de “janelas quebradas” e são desproporcionalmente brutalizados pela polícia, penalizados e encarcerados como resultado. Uma vez inseridos no sistema, já marcados por múltiplas narrativas raciais, de gênero e classificadas de desvio social e anormalidade, eles enfrentam altos níveis de discriminação racial, homofóbica e transfóbica e preconceitos nas mãos de policiais, advogados, oficiais de justiça e juízes.
Nada demonstra isso mais claramente do que a história de Layleen Polanco. Layleen era uma mulher afro-latino-americana de 27 anos que morreu na Ilha de Rikers [Nota da tradução: Rikers Island é uma penitenciária em Nova York conhecida por ter maioria de negros e latinos e ser extremamente violenta]. Depois que ela teve uma convulsão epiléptica, a equipe zombou e a ridicularizou e se recusou a fornecer cuidados médicos que poderiam ter salvado sua vida. Layleen foi inicialmente presa por uma acusação de agressão, depois da qual foi mantida encarcerada sob acusação anterior de drogas e trabalho sexual. Incapaz de pagar sua fiança de US$500, Layleen foi detida em confinamento solitário, onde foi mantida por 17 horas por dia.
A história de Layleen ilustra a barbárie do sistema jurídico criminal e as maneiras pelas quais o racismo, a transmisoginia e a criminalização da pobreza podem se cruzar com consequências letais para mulheres trans racializadas.
Além disso, organizações de serviços sociais como o Ali Forney Center e o Instituto Marsha P. Johnston estão na linha de frente do fornecimento de serviços cruciais e que salvam vidas a jovens LGBTQ vulneráveis e em risco e pessoas trans e queer racializadas. Porém, esses recursos são severamente subfinanciados e carecem de recursos adequados para enfrentar o conjunto dos problemas sociais em questão. Como resultado, esses programas são frequentemente forçados a contar com doações e apoio de dentro da comunidade para sobreviver. Eles enfrentam um regime de austeridade bipartidária que tornará a vida ainda mais difícil para aqueles que precisam de mais cuidados.
Nesse contexto, não é exagero dizer que o governo Trump e a direita religiosa têm sangue nas mãos. Estes não são simplesmente debates políticos abstratos, mas ataques reais contra pessoas LGBTQ que comprometem nossas vitórias. Eles tentam legitimar novamente um clima de homofobia e transfobia e terão impactos materiais prejudiciais, especialmente na vida das pessoas queer e trans mais vulneráveis.
O regime de Trump está fazendo uma ofensiva que exige uma resposta frontal. Em vez disso, recebemos uma resposta das organizações LGBTQ tradicionais e do Partido Democrata que foi passiva na melhor das hipóteses e cúmplice na pior das hipóteses.
Os principais grupos LGBT continuaram depositando toda a sua fé e milhões de dólares no Partido Democrata, seguindo uma estratégia de fazer lobby e fazer campanha para candidatos “pró-igualdade” com pouco a mostrar sobre isso. Isso pode ser visto mais recentemente na tentativa bem-sucedida do establishment do Partido Democrata de esmagar a campanha insurgente de Bernie Sanders, um defensor de longa data da igualdade LGBTQ. Eles optaram pelo candidato presidencial mais decepcionante na história americana moderna: Joe Biden.
Embora os democratas gostem de se posicionar como “aliados” das comunidades LGBTQ hoje, foi apenas uma década atrás que a grande maioria dos políticos democratas se opôs totalmente ao casamento gay e se recusou a pronunciar a palavra “transgênero”. Mesmo agora, a mudança na retórica dos principais democratas tem sido o resultado de pressão e luta de massas por baixo.
Pior ainda, políticos democratas, incluindo “progressistas” auto-identificados como o prefeito de Nova York, Bill DeBlasio, apoiam continuamente medidas de austeridade, além de aumentar os gastos com policiamento e encarceramento, que prejudicam desproporcionalmente os mais vulneráveis.
O nascimento de uma revolta e a luta pelas vidas negras trans
Como já aconteceu muitas vezes antes, a luta pela libertação dos negros está mais uma vez rasgando a caixa de Pandora do capitalismo americano e expondo as prioridades brutais e distorcidas da “maior democracia” do mundo moderno. O grito de George Floyd de “não consigo respirar!” foi pego na câmera quando um policial branco enfiou o joelho no pescoço de Floyd, sufocando-o. Isso desnudou as entranhas hediondas do aparato repressivo da América, revelando toda a extensão da sua raison d’être [razão de ser] racista.
O que o assassinato de George Floyd pela polícia desencadeou não pode ser reduzido a violência e saques sem sentido, como muitos da mídia corporativa e do establishment político tentaram fazer. O que começou em Minneapolis agora se espalhou pelas cidades de todo o país e só pode ser descrito como uma rebelião, liderada por trabalhadores e jovens negros e em uma escala e magnitude muito mais amplas e profundas do que qualquer coisa que vimos em Ferguson ou Baltimore.
Trata-se de uma revolta coletiva, uma rebelião nacional da classe trabalhadora, catalisada por mais um assassinato policial, mas em resposta a algo muito mais profundo: uma falha cataclísmica do sistema em oferecer até o mais básico padrão de vida ou senso de dignidade à vasta maioria da classe trabalhadora e pessoas pobres. Essa é uma realidade mais aguda e desproporcionalmente vivida pelos habitantes racializados.
A pandemia de coronavírus só exacerbou a devastação econômica nos bairros negros. Décadas de negligência do governo e desinvestimento financeiro, pobreza extrema, desemprego em níveis de depressão e hipersegregação são todos impostos por um estado policial militarizado. Este é o solo podre que deu origem a uma rebelião em desenvolvimento, inspirando um país inteiro e, de fato, pessoas do mundo todo.
A rebelião da Black Lives Matter deu origem a um avanço histórico e desenvolvimento na luta pela libertação trans e queer. No domingo, 14 de junho, no Brooklyn, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas para exigir em termos inequívocos que as vidas trans negras importam. Em meio a um verdadeiro mar de pessoas com placas caseiras, os manifestantes destacaram a resiliência e o poder do ativismo trans preto e chamaram a atenção para a gama de questões que afetam pessoas trans racializadas. Eles variam de discriminação habitacional e falta de moradia, a taxas desproporcionais de violência, brutalidade policial e encarceramento; e das barreiras ao acesso à saúde à marginalização das pessoas trans do movimento gay hegemônico. A marcha foi sem dúvida a maior manifestação única por direitos de trans, e pelas vidas da negritude trans em particular, na história dos EUA.
É claro que uma mudança profunda está ocorrendo: uma geração crescente de radicais trans e queer multirraciais da classe trabalhadora está surgindo, inspirada na militância da Black Lives Matter e na resistência a Trump. Eles estão fartos e desconectados do corporativismo e branqueamento das principais organizações de direitos gays, liderados por pessoas trans e queers de racializadas. Eles estão exigindo um novo tipo de movimento queer.
Este é (e deve ser) um movimento que coloca em primeiro plano as conexões entre raça, classe, gênero e sexualidade e enraizado em uma solidariedade intransigente – um espírito de solidariedade que vai além de palavras e gestos vazios. É uma solidariedade baseada em permanecer de pé e lutar ao lado dos mais oprimidos; enraizada em centrar as vozes e as experiências daqueles que foram historicamente marginalizados por uma liderança do movimento que tem sido muito envolvida no establishment econômico e político para permanecer conectada às experiências vividas pelas pessoas comuns LGBTQ.
Essa dinâmica não é particularmente nova. Em uma época anterior, a luta dos afro-americanos contra o apartheid e Jim Crow deu origem a uma geração de movimentos sociais e dissidências políticas que transformaram a sociedade americana em larga escala. Eles influenciaram tudo, desde o movimento anti-guerra na esteira do Vietnã até o movimento de libertação chicano e feminino e, eventualmente, até as lutas LGBTQ.
A rebelião de Stonewall
Embora a organização política LGBTQ certamente existisse antes de Stonewall, mais notavelmente a revolta da Cafeteria Compton de 1966 em São Francisco, a maior parte do trabalho foi subterrânea, sem confrontos e abafada pelo McCartismo. Isso começou a mudar, no entanto, com o desenrolar do Movimento dos Direitos Civis, e muitos jovens ativistas gays foram inspirados por ativistas negros que desafiavam o terror policial e a opressão racista.
As primeiras organizações de direitos gays, como a Mattachine Society de Nova York e a Society for Individual Rights, com sede em San Francisco, começaram a tomar uma atitude mais militante e sem reservas. Frank Kameny, um dos primeiros ativistas gays, declarou: “não apenas a homossexualidade não é imoral, mas os atos homossexuais praticados por adultos que consentem são morais, corretos, bons e desejáveis, tanto para os participantes individuais quanto para a sociedade”. Grupos de direitos gays começaram a organizar manifestações públicas e “goles” [“sip-ins”] [1] para exigir a descriminalização da homossexualidade e o fim do assédio anti-gay em bares.
Em maio de 1969, um jovem esquerdista gay de São Francisco chamado Carl Wittman escreveu “Um Manifesto Gay” [“A Gay Manifesto“], um ensaio que logo se tornaria um documento definitivo no movimento de libertação gay. As palavras de Wittman ilustram a radicalização que vinha ocorrendo entre jovens militantes gays e destacam as conexões que os ativistas estavam começando a fazer entre homofobia, repressão estatal e violência policial. Sua declaração foi um prenúncio do que estava por vir:
Policiais heterossexuais nos patrulham, legisladores heterossexuais nos governam, empregadores heterossexuais nos mantêm na linha, dinheiro heterossexual nos explora. Fingimos que está tudo bem, porque não conseguimos ver como mudar isso – estamos com medo.
No ano passado, houve um despertar da libertação gay. Como tudo começou, não sabemos; talvez tenhamos sido inspirados pelos negros e seu movimento pela liberdade.
Onde antes havia frustração, alienação e cinismo, há novas características entre nós. E ao recordarmos toda a autocensura e repressão por tantos anos, um reservatório de lágrimas escorre de nossos olhos. Estamos cheios de amor um pelo outro e estamos demonstrando isso; estamos cheios de raiva pelo que nos foi feito. E estamos eufóricos, no alto, com o florescer inicial de um movimento.
O Stonewall Inn foi um dos bares gays mais populares de Nova York nos anos 1960. Localizado na encruzilhada da Christopher Street e da Seventh Avenue em Greenwich Village, um bairro conhecido por seu estilo de vida boêmio, o Stonewall era escuro e tinha dois bares, uma jukebox e a única pista de dança em toda a cidade. Tornou-se um epicentro para o mundo gay de Nova York, especialmente seus membros mais marginais, e atraía regularmente uma multidão elétrica de homens gays, drag queens, jovens de rua [street kids] e lésbicas.
No início da década, as leis nos EUA eram mais repressivas contra homossexuais do que qualquer um dos regimes soviéticos que os EUA criticavam flagrantemente. Um adulto que fosse pego fazendo sexo com outra pessoa do mesmo sexo poderia enfrentar décadas ou até uma vida na prisão ou ser confinado a um manicômio e submetido a terapia por eletrochoque, castração ou lobotomia. Os adultos acusados de um crime sexual poderiam perder sua licença profissional e muitas vezes eram demitidos de seus empregos e impedidos de ter um emprego no futuro.
Sexo não era a única coisa que poderia causar problemas — roupas também podiam e isso poderia ser um problema para alguém corajoso o suficiente para desafiar as normas de gênero. Pessoas trans, cross-dressers e drag e street queens foram consideradas alvos e criminalizadas pelo estado. O uso de mais de três peças de vestuário, na cidade de Nova York, que não correspondessem ao sexo atribuído, era ilegal e poderia resultar em detenção e prisão. Em todo o país, as leis de vestuário de gênero que começaram a aparecer em meados do século XIX permaneceram nos livros por décadas, tornando ilegais as variantes expressões de gênero.
Embora os bares proporcionassem um local para os gays se conhecerem e socializarem em uma sociedade repressiva, também os tornava alvos da polícia. No final de uma noite de sexta-feira em junho de 1969, a polícia invadiu o Stonewall, exigindo que todos os clientes se alinhassem e mostrassem suas identificações. Os policiais planejavam prender funcionários do bar, travestis e pessoas sem identificação adequada.
Naquela noite, a polícia foi mais agressiva do que o normal. Eles destruíram o bar, quebraram os móveis e foram fisicamente agressivos com os clientes que reagiram. Ao contrário das batidas anteriores que ocorriam no início da noite, a polícia fechou o Stonewall no horário de pico. Enquanto normalmente os clientes se dispersavam depois de serem expulsos, sabendo que poderiam voltar mais tarde, desta vez começaram a se reunir do lado de fora do bar. A multidão de algumas dezenas acabou aumentando para centenas. Milhares de residentes gays se aglomeraram nas ruas ao redor.
O levante foi multirracial, diverso e refletiu um amplo espectro da comunidade LGBTQ. Muitas testemunhas oculares comentaram especificamente sobre o importante papel desempenhado naquela noite pelos setores mais marginalizados da comunidade — jovens de rua, mulheres trans e jovens queer racializados.
Mas quando as viaturas chegaram, o clima mudou drasticamente. Os espectadores irritados começaram a jogar moedas na polícia e depois passaram para garrafas, paralelepípedos e latas de lixo. Uma revolta legítima logo eclodiu.
Mais tarde naquela noite, o esquadrão de choque chegou, e uma perseguição noturna entre manifestantes gays e trans e a polícia se seguiu. Esperando dispersar facilmente uma multidão de pessoas que a sociedade rotulou de “mariquinhas” e “bichas” e estereotipadas como fracas, a polícia foi pega de surpresa quando os manifestantes reagiram. A ativista transgênero pioneira Sylvia Rivera fez parte do levante de sexta-feira à noite, que ela descreveria mais tarde como um momento decisivo em sua vida. Quando uma amiga tentou convencê-la a sair, ela disse: “Você está louca ?! Não vou perder um minuto disso — é a revolução!”
O Movimento de Libertação Gay
Stonewall marcou uma ruptura brusca no passado e uma virada qualitativa no movimento LGBTQ — não apenas por causa dos contínuos tumultos nas ruas contra a polícia, mas porque os ativistas conseguiram aproveitar o momento e dar uma expressão organizada à revolta espontânea que encapsulou a militância da época. Enquanto o movimento homófilo [2] fez um progresso constante, embora limitado, ao longo das décadas de 50 e 60 e estabeleceu as bases para o movimento de liberação gay, Stonewall quebrou a barreira do isolamento político e social e catapultou o movimento gay das margens e para fora do armário [3] .
Ativistas não perderam um minuto. Antes mesmo que as revoltas terminassem, militantes homófilos criaram um panfleto e o distribuíram a milhares de moradores do Village. Dizia: “Você acha que os homossexuais são revoltantes? Você pode apostar sua bunda doce! Eles descreveram a Rebelião de Stonewall como a “queda do alfinete ouvida em todo o mundo”.
Michael Brown, um socialista gay envolvido na New Left que ajudou a distribuir panfletos em Stonewall, procurou a Mattachine Society após a primeira noite de tumultos na esperança de convocar uma reunião de organização para explorar o novo impulso. A proposta de Brown não foi calorosamente recebida por todos da Mattachine. Ativistas mais velhos criticavam os distúrbios e não queriam atrapalhar a relação do grupo com o establishment político.
Brown e outros radicais montaram um panfleto com o título “PODER GAY” [“GAY POWER”] que pedia uma “Reunião da Libertação Homossexual”. Eles concluíram proclamando: “Ninguém é livre até que todos sejam livres!” A primeira reunião foi realizada duas semanas após a revolta e atraiu quarenta pessoas. Foi aqui que os ativistas escolheram o nome de Frente de Libertação Gay (GLF, Gay Liberation Front), modelado na Frente de Libertação Nacional, o movimento comunista de guerrilha que lutava contra os Estados Unidos no Vietnã.
Em uma declaração para um jornal radical chamado The Rat, o GLF definiu sua missão da seguinte maneira:
Somos um grupo homossexual revolucionário de homens e mulheres formado com a percepção de que a libertação sexual completa para todas as pessoas não pode acontecer a menos que as instituições sociais existentes sejam abolidas. Rejeitamos a tentativa da sociedade de impor papéis sexuais e definições de nossa natureza … Babilônia nos forçou a nos comprometer com uma coisa: a revolução.
Quando perguntados o que os tornou revolucionários, eles responderam: “Nós nos identificamos com todos os oprimidos: a luta vietnamita, o terceiro mundo, os negros, os trabalhadores … todos os oprimidos por essa conspiração capitalista podre, suja, vil e fodida.”
Seções da GLF se espalharam rapidamente por todo o país, organizando bailes para arrecadar dinheiro e criar espaços para os gays se encontrarem fora dos bares controlados pela máfia. No outono de 1969, a GLF criou seu próprio jornal, Come Out!, que se tornou um meio chave para disseminar idéias e informações sobre os movimentos. Gay Power e Gay também foram lançadas naquele ano e cada uma vendeu mais de 25.000 cópias por edição.
A GLF organizou protestos e ações diretas para pressionar os políticos a apoiar os direitos dos gays e estabeleceu programas de serviços comunitários para fornecer alimentos e serviços sociais aos jovens de rua LGBTQ. Os membros da GLF levaram sua educação política a sério e procuraram desenvolver uma análise marxista da opressão gay.
Desde o início, os membros da GLF debateram se o grupo deveria se concentrar exclusivamente em questões gays ou se conectar com outras lutas da esquerda. Isso levou a uma divisão, com alguns ativistas saindo para estabelecer uma organização única chamada Aliança de Ativistas Gay (GAA, Gay Activists Alliance), que se definiu como um grupo “exclusivamente dedicado à libertação de homossexuais e que evita o envolvimento em qualquer programa de ação que não seja obviamente relevante para os homossexuais “.
A GAA começou a organizar protestos públicos, chamados de “zaps”. A Aliança interrompeu as reuniões com o prefeito e os representantes do conselho da cidade na tentativa de pressioná-los a acabar com a discriminação no trabalho e o assédio policial contra gays e lésbicas.
Esta declaração de Arthur Evans, um membro proeminente da GAA, resume a abordagem do grupo e contrasta fortemente com a estratégia “não agite o barco” [“don’t rock the boat”] que é seguida pelas organizações LGBTQ estabelecidas hoje. Evans disse:
Decidimos que as pessoas do outro lado da estrutura de poder teriam a mesma coisa feita com elas. O muro que eles construíram se protegendo das conseqüências pessoais de suas decisões políticas seria derrubado… Isso significava que iríamos atrapalhar a vida pessoal do prefeito Lindsey… como resultado das consequências políticas de sua administração.
A GLF e a GAA colaboraram em muitos projetos, incluindo a primeira marcha anual em comemoração à Rebelião de Stonewall, que ocorreu na cidade de Nova York e atraiu 10.000 pessoas. A marcha se expandiu rapidamente para dezenas de cidades em todo o país e envolveu mais de 500.000 pessoas.
Um item da agenda que todos os liberacionistas gays compartilhavam era a ênfase em sair do armário publicamente. Embora a saída do armário representasse riscos muito reais, também foi uma experiência catártica que reverteu a vergonha e a humilhação associadas à vida no armário e proporcionou às pessoas um novo sentimento de orgulho e autoconfiança.
Como aponta o historiador gay John D´Emilo, também “forneceu aos liberacionistas gays um exército de alistados permanentes”. Ao sair do armário, o movimento ganhou pessoas que se tornaram pessoalmente investidas no futuro da luta e serviu como um polo de atração para camadas mais amplas de pessoas e novos recrutas. Quando gays e lésbicas chegaram a amigos, familiares e colegas de trabalho, isso fez a homossexualidade parecer mais uma parte “normal” do tecido social e deu ao movimento uma nova alavanca para pressionar por mudanças sociais nas décadas seguintes.
A transfobia e a esquerda gay
Como todos os movimentos, a luta pela liberação gay continha contradições políticas e problemas internos. Embora as pessoas transexuais tenham desempenhado um papel importante na revolta e no movimento que ela desencadeou, seu tratamento no movimento foi diverso, variando de solidário a hostil.
Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, ativas na GAA e na GLF, tornaram-se as ativistas trans mais proeminentes do movimento. Elas formaram uma organização de vida curta, dedicada especificamente à prestação de serviços a pessoas trans e jovens de rua, chamada Travestis de Rua Revolucionárias de Ação (STAR, Street Transvestite Action Revolutionaries). Embora muitas vezes rejeitadas e apenas ocasionalmente bem-vindas, elas se recusaram a sair.
Como Rivera descreveu, ela nunca deixaria ninguém impedi-la de lutar por sua própria causa. Mesmo diante de zombarias e insultos, ela trabalhou para convencer seus companheiros gays de seus interesses comuns com pessoas trans e jovens de rua que foram brutalizados pela mesma polícia e rejeitados pela mesma sociedade que gays e lésbicas. Depois que Sylvia abriu caminho para o palco na marcha do Orgulho Gay de Nova York em 1972, ela fez seu famoso discurso “É melhor vocês todos se calarem agora!” [“Y’all Better Quite Down Now!”] que desafiou a transfobia da esquerda gay. Nesse discurso, ela fez uma defesa inflexível da centralidade da solidariedade na luta pela libertação:
É melhor vocês todos se calarem. Eu estou tentando subir aqui o dia todo por seus irmãos gays e suas irmãs gays na prisão.
Vocês me dizem para eu ir e esconder meu rabo entre as pernas. Eu não vou aguentar essa merda. Eu fui espancada. Eu tive meu nariz quebrado. Fui jogada na cadeia. Eu perdi meu emprego. Perdi meu apartamento pela liberação gay e todos me tratam assim? Que porra há de errado com todos vocês? Pensem sobre isso!
Eu acredito no poder gay. Acredito em conseguirmos nossos direitos, caso contrário não estaria lá fora lutando por nossos direitos.
As pessoas [STAR] estão tentando fazer algo por todos nós, e não homens e mulheres que pertencem a um clube branco de classe média branca. E é a isso que vocês todos pertencem!
REVOLUÇÃO AGORA! Me dê um ‘G’! Me dê um ‘A’! Me dê um ‘Y’! Me dê um ‘P’! Me dê um ‘O’! Me dê um ‘W’! Me dê um E! Me dê um ‘R’! Poder gay! Mais alto! GAY POWER [PODER GAY]!
Embora as pessoas transexuais encontrem apoio de uma camada de liberacionistas gays de princípios e segmentos da esquerda radical e revolucionária, as principais organização de gays e lésbicas abandonaram a comunidade trans. Eles trataram consistentemente suas demandas por inclusão com hostilidade extrema, até pelo menos o início dos anos 2000.
Como Susan Stryker demonstra em “História dos transgêneros: as raízes da revolução de hoje” [“Transgender History: The Roots of Today’s Revolution”], apesar do papel central desempenhado por pessoas não conformes de gênero em Stonewall e nos primeiros anos da liberação gay, seriam necessárias mais de três décadas de pressão para conseguir mudanças. Foi somente após muitos anos de organização que as principais organizações de gays e lésbicas incorporaram o movimento trans.
Ainda hoje, embora muita coisa tenha mudado, a luta para colocar em primeiro plano as experiências e demandas das pessoas trans dentro do movimento mais amplo de libertação sexual e de gênero está longe de ser completa.
Lições do Stonewall
Então, o que os ativistas devem concluir dessa história?
O primeiro ponto é simples: rebeliões funcionam. Assim como a revolta anti-racista de hoje, Stonewall marcou um ponto de virada crucial na história LGBTQ. A mudança não ocorre porque os políticos introduzem uma legislação fragmentada ou porque as ONGs organizam captação de recursos em dinheiro. Ela acontece quando as pessoas comuns tomam as questões em suas próprias mãos — quando desafiam as instituições de repressão estatal e se tornam participantes ativos na construção de seu próprio mundo.
Stonewall e a rebelião em desenvolvimento de hoje demonstram que há poder em números. O que permitiu ao movimento de libertação gay ganhar reformas significativas que eram inimagináveis apenas uma década antes era seu caráter de massa. Em vez de se contentar com o que o establishment político considera realista, pessoas racializadas, trans e queer, romperam os limites de sua própria opressão e exigiram o que era necessário para melhorar as condições materiais de suas vidas.
À medida que a história continua a demonstrar, as rebeliões, por causa de sua explosividade, caráter de massa e militância, têm a capacidade de transformar o cenário político da sociedade e modificar completamente os parâmetros do que parece possível. As revoltas em massa fazem mais em questão de dias e semanas para avançar o movimento do que anos e décadas de lobby fútil e campanhas eleitorais.
Segundo, a violência policial e o encarceramento são questões LGBTQ. Longe de ser um árbitro da justiça, o sistema jurídico criminal funciona para reforçar conceitos hegemônicos racializados e de classe de moralidade capitalista, conformidade sexual e conformidade com os papéis tradicionais de gênero.
Ordenanças que criminalizam a homossexualidade e a transgressão de gênero, batidas policiais em bares e pontos de encontro gays, a criminalização dos sem-teto LGBTQ e o trabalho sexual na era do encarceramento em massa: estes são apenas alguns exemplos da regulamentação estatal da moralidade sexual e da expressão de gênero incorporada dentro de um sistema de policiamento e prisões projetado para gerenciar os sintomas da desigualdade. Além disso, eles são projetados para disciplinar a classe trabalhadora e as comunidades oprimidas e manter um sistema mais amplo de dominação capitalista.
Das revoltas da Cafeteria Compton à rebelião de Stonewall até a revolta anti-racista que está se desenrolando hoje em dia, as pessoas LGBTQ — particularmente pessoas racializadas, classe trabalhadora e pessoas pobres — sempre estiveram na vanguarda das lutas contra o terror policial racista.
Terceiro, a solidariedade é essencial. O que fez com que a revolta em Stonewall fosse tão bem-sucedida foi o fato de reunir uma coalizão multirracial e multi-gênero da classe trabalhadora e pessoas pobres trans e queer unidas contra um inimigo comum. Enquanto raça, gênero, sexualidade e classe desempenharam um papel importante na forma como as pessoas trans e queers vivenciaram a vida antes de Stonewall, foi uma experiência compartilhada de opressão nas mãos de um inimigo comum que lhes forneceu a base para lutarem juntos naquela noite.
A insistência da Libertação Gay na interconectividade dos movimentos de libertação, sua solidariedade com as lutas dos mais oprimidos e sua disposição de desafiar a ordem social capitalista a tornaram ameaçadora e poderosa.
No entanto, quando os movimentos radicais das décadas de 1960 e 1970 começaram a entrar em declínio diante do aumento da repressão pelo Estado e cooptação pelo Partido Democrata e por frações do capital, os horizontes e aspirações políticas da esquerda começaram a retroceder. O espírito de solidariedade que animara a militância das décadas de 1960 e 70 deu lugar a formulações políticas mais conservadoras.
O movimento de gays e lésbicas abandonar as pessoas trans não é apenas moralmente indefensável, mas representa uma derrota histórica para o movimento como um todo. É precisamente essa história de exclusão que faz hoje o transbordar de ativismo transgênero, liderado por jovens ativistas racializados, um ponto de virada histórico e avanço na história do movimento. Imaria Jones, ativista e escritora transgênero negra, falando recentemente no Democracy Now!, resumiu o significado do momento:
E acho que o que é realmente poderoso sobre o que aconteceu no sábado é que foi o culminar de muito conhecimento em nossa comunidade, o fato de que, embora as mulheres trans pretas e pardas tenham iniciado a luta pela libertação de LGBTQ em Stonewall, fomos pressionadas e não nos beneficiamos do movimento que ajudamos a iniciar.
E estamos dizendo que isso não vai acontecer, que entendemos pela história que, quando tentamos priorizar alguns direitos em detrimento de outros, quando tentamos priorizar certos grupos de pessoas em detrimento de outros, historicamente, sabemos que todos os direitos conquistados dessa forma, são frágeis, não duram muito.
E assim, o ponto principal é que todos nós vamos, ou ninguém vai. E o que estamos dizendo é que estamos indo.
Quarto, a organização é importante. A espontaneidade e a organização não são mutuamente excludentes, mas são dois aspectos do mesmo processo. Revoltas espontâneas como Stonewall e a rebelião anti-racista de hoje devem ser esperadas em um sistema no qual as pessoas são espancadas e oprimidas regularmente. Eventualmente, décadas de passividade e conservadorismo quebram, e as pessoas são transformadas à medida que são lançadas em uma explosão de atividade. Eles começam a abandonar idéias antigas, mudando a si mesmas e ao mundo ao seu redor de maneiras que antes eram impensáveis.
As explosões são melhor entendidas não como fins em si mesmas, mas como pontos de partida de um processo pelo qual um grande número de pessoas se torna politicamente consciente e começa a reconhecer seu poder coletivo. A trajetória dessas lutas não é linear. Nada na história é automático. Os movimentos enfrentam questões políticas sobre como avançar, surgem debates estratégicos e as forças políticas organizadas desempenham um papel crítico na determinação de qual o rumo de sua luta. Reconstruir espaços abertos e democráticos de organização onde as pessoas comuns possam começar a se envolver será uma tarefa importante para o movimento hoje.
Por fim, direitos formais, como a igualdade no casamento e a não discriminação no emprego, são importantes e valem a pena lutar e defender. Eles fornecem benefícios tangíveis e concretos que melhoram a vida das pessoas trans e queer comuns da classe trabalhadora e dão um golpe ideológico na hegemonia das idéias reacionárias. É esse conjunto de crenças que sustenta e legitima a opressão de trans e queer e semeia outras divisões na classe trabalhadora.
No entanto, essas vitórias legais têm seus limites. Mesmo em uma época em que as pessoas LGBTQ agora têm acesso a maiores direitos legais e igualdade formal do que nunca, continua a opressão para a grande maioria das pessoas da classe trabalhadora e das pessoas trans e queer pobres, especialmente aquelas que vivem no cruzamento da opressão racial e de classe.
Para lidar com a crise da classe trabalhadora e das pessoas pobres e trans, particularmente das pessoas racializadas, o movimento precisará ir além da igualdade formal sob a lei e mirar nas reais condições materiais da opressão trans e queer. Nossas lutas precisarão inevitavelmente criar solidariedade com outros movimentos da classe trabalhadora e oprimidos para desafiar as prioridades de uma classe capitalista minúscula e exploradora que administra os recursos e a riqueza da sociedade às custas de muitos.
Desfinanciar e desmantelar um sistema de policiamento e prisões que criminaliza negros e pobres LGBTQ é um primeiro passo crucial. Esses recursos devem ser redistribuídos para as necessidades da comunidade e programas sociais, serviços de saúde de contribuinte único e trans e queer (inclusive HIV / AIDS e serviços de saúde mental), habitação pública segura e de alta qualidade, escolas públicas bem financiadas que sejam inclusivas para os jovens LGBTQ e um salário digno garantido e uma renda básica universal. Essas são apenas algumas das medidas que transformariam radicalmente as condições materiais de vida da grande maioria das pessoas trans e queer, especialmente as mais vulneráveis e marginalizadas, e nos levariam mais adiante no caminho em direção a um futuro emancipado.
Como a renomada abolicionista penal e intelectual marxista-negra Angela Davis explicou recentemente em uma entrevista: “Apoiamos a comunidade trans precisamente porque a comunidade nos ensinou a desafiar aquilo que é totalmente aceito como normal. Se é possível desafiar o binário de gênero, certamente podemos resistir efetivamente às prisões e à polícia.” Eu acrescentaria que, se pudermos desfazer o binário sexual e de gênero e imaginar um mundo sem o aparato racista e violento do poder e coerção capitalistas, devemos, por necessidade, lutar por um futuro socialista fundamentado na libertação e na solidariedade humanas.
NOTAS
1 – Forma de protesto onde pessoas supostamente “indesejáveis” entram e pedem uma bebida num bar na presença de ornalistas, com o intuito de demonstrar que são pessoas comuns. Ver mais sobre isso neste texto do Esquerda Online (Nota da tradução)
2 – Nome dados a movimentos pré-Stonewall nos quais os membros não assumiam ser LGBTQs, uma vez que isso era considerado crime na época. (Nota da tradução)
3 – O movimento gay, particularmente a GLF (Frente de Liberação Gay), seria formado por membros que se assumiam LGBTQs, na contramão do que era a regra dos movimentos homófilos até então. (Nota da tradução)
Comentários