Os eventos desencadeados após a notícia do estupro de uma criança de 10 anos no Espírito Santo que, não bastasse o tamanho da tragédia, ainda desaguaram no desprezível episódio em que pessoas compareceram na porta do local onde estava hospitalizada em Recife (PE), a fim de lhe desferir agressões verbais/morais, são estarrecedores.
Assusta principalmente pela falta de humanidade do acontecido, mas também por nos fazer vislumbrar, a olhos nus e de modo objetivo, onde pode chegar a escalada autoritária que o país vem sendo submetido a cada dia. Afinal, estamos falando de uma vítima que acabou sendo agredida em razão de sua condição.
Quem foi ao hospital se manifestar contra o aborto e verbalizar que a garota e o médico são “assassinos” não agiu apenas lançando mão de uma espécie de martelo da desumanidade. Há uma luta por (ausência de) direitos envolvida na situação, o que torna tudo ainda mais pernóstico, pois acabaram por utilizar de um caso tão triste como veículo disseminador de suas nefastas pretensões. Basta verificar que o que permeia o caso em si não é o direito legal ao aborto. O caso não é paradigmático, pois é uma hipótese em que a legislação autoriza o procedimento. Portanto, a pretensão dos manifestantes não se justificaria, pois tais pessoas se insurgiram contra um fato lícito, cuja permissão existe no ordenamento jurídico brasileiro desde 1941.
Chama atenção ainda o fato de tais pessoas tumultuarem um ambiente delicado como um hospital, em nome de uma postulação obscurantista, preconceituosa e contra literal disposição de lei. Disposição esta cuja clareza é meridiana:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
(…)
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.“
Não faria sentido, pois, uma manifestação desta ordem. A luta travada pelos manifestantes foi política, ideológica e neofascista.
Neste contexto, importante perguntar: por que tal disposição foi gravada no código penal, ainda em 1941? O professor Genival Veloso França, médico e advogado, nos concede uma filigrana da dimensão histórica do juridicamente chamado abordo humanitário:
“A questão surgiu quando alguns países da Europa, na Primeira Guerra Mundial, tiveram suas mulheres violentadas pelos invasores. Nasceu, então, um movimento patriótico de repercussão em todo o mundo contra essa maternidade imposta pela violência, pois não era justo que aquelas mulheres trouxessem no ventre um fruto de um ato indesejado, lembrado para sempre como uma ignomínia e uma crueldade”[1].
Embora tenha surgido nesse contexto histórico, a construção da consolidação desse direito não se encerra aí. Sabemos que não há direito para as classes excluídas, em nosso regime, que não seja aplicado a custo de luta, sangue, suor e lágrimas. O aborto humanitário não foi aplicado de imediato, só porque previsto no código penal. Durante muito tempo, as mulheres tiveram que prosseguir na luta, a fim do Estado de lhes assegurar um básico e humano direito de gestão sob sua própria saúde, vida e corpo. Há uma longa construção legal e jurisprudencial travadas no país, a fim de garantir tais direitos.
Para se ter ideia, em agosto de 2013, foi promulgada a lei nº12.845, que “Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual”. Tal norma previu o atendimento gratuito, pelo sistema único de saúde, de mulheres vítimas de violência sexual e garantiu, dentre outros procedimentos, a profilaxia da gravidez. Embora estivesse tratando de um método comum, a lei não foi promulgada sem assombros autoritários. À época, o observatório da imprensa veículou análise a respeito de artigo divulgado pelo médico Drauzio Varella, no seguinte sentido:
“Esta semana, o dr. Drauzio Varella publicou um artigo no site da Folha de S.Paulo no qual ataca duramente setores conservadores da sociedade por suposto fascismo, ao protestarem contra uma lei que, aprovada no Congresso, segue para sanção presidencial, a respeito do tratamento médico para vítimas de estupro PLC 3/2013 de autoria da deputada Iara Bernadi (PT). Esse projeto prevê que o Estado, através do SUS, preste atendimento a vítimas de violência sexual e regulamenta esse atendimento em todos os hospitais da rede pública[2].”
Por uma notícia veiculada no noticiário alemão Deutsche Welle (DW), é possível ter uma precisa dimensão sobre como é difícil militar por direitos nesta seara em nosso país:
“Falar sobre aborto no Brasil é arriscado. Para políticos em campanha, o posicionamento sobre o tema pode custar a eleição. Para uma antropóloga e uma jovem ativista que luta pela legalização da prática, significou ter que deixar o país. Acuadas por ameaças de morte e perseguição, elas viram-se forçadas a tomar essa decisão para proteger suas vidas”[3].
A esquerda precisa ficar atenta. O sistema jurídico é destinado a garantir a reprodução das relações de produção, como já disseram Marx e Pachukanis[4] ou, como asseverou Althusser, existe para “assegurar diretamente o funcionamento das relações de produção capitalista”[5]. Justamente por isso, não há direito que esteja seguramente salvaguardado pelas instituições, nem mesmo pelas leis, pois o sistema só funciona à base da opressão, com a finalidade precípua de produzir. O humanismo é mero detalhe, relegado ao subjetivismo (Os direitos são subjetivos e garantidos a todos indistintamente, mas no plano prático, cada brasileiro sabe na pele como funciona).
É por essa razão que as pessoas foram aos hospitais, divulgaram o nome da vítima em redes sociais e se deblateraram de diversas formas possíveis. É uma relação dialética, uma luta contra um direito “garantido” e “consolidado” na legislação e na jurisprudência. Mas, como sabemos, o sistema democrático/burguês é suscetível aos gritos de quem se encontra no poder. Eles fazem isso porque querem acabar com direitos, mas querem também impor uma moral, um conservadorismo que, em pleno século XXI, assusta.
No ponto, valemo-nos uma definição que, para o caso, pode ser aplicada, mas diz respeito a outras situações. Ou seja, valho-me de um conceito mais amplo, mas que se também se aplica ao caso. Falo da teoria da revolução permanente, cunhada por Marx e bem desenvolvida por Trotski e que o professor Valério Arcary nos concede um ótimo magistério:
“A dialética entre a força de pressão de tarefas históricas inconclusas, a resistência reacionária da burguesia e a disposição de luta dos sujeitos sociais resume a teoria da revolução permanente, seja qual for a sua versão, desde Marx até hoje”[6].
Quando conseguimos obter direitos, no caso específico poderíamos falar em direito ao aborto humanitário como corolário da própria dignidade humana, estamos diante de uma tarefa histórica inconclusa, de tal modo que a resistência reacionária sempre virá ao seu encontro, na tentativa ceifá-lo. No sistema democrático burguês, nossos direitos estarão sempre à mercê. Para a burguesia pouco importa a situação de uma garota covardemente estuprada, o que vale é a gramática da manutenção no poder.
Nos resta lutar para que direitos sejam resguardados, evidentemente. Mas a tarefa não encerra neste ponto, pois o direito é meio e não fim. Nos impõe também, e principalmente, lutar contra o sistema, que nos coloca nessa ciranda e nos submete a situação tão degradante. Lutar “apenas” por direitos e até mesmo conquista-los momentaneamente, como o caso nos mostra, é tarefa inconclusa.
Não há como responder à pergunta colocada no título, pois não sabemos até onde vai a sanha autoritária que vige no país. Mas sabemos que devemos batalhar por dignidade e respeito.
Lutemos por uma por dias melhores. Revolucionemo-nos. Não desistir diante do absurdo faz parte dessa luta. Rebelar contra o sistema é necessário para garantir nossa própria dignidade no plano concreto, pois pela subjetividade jurídica, ela ficará sempre no cômodo nível das ideias.
Notas:
[1] FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 10ª.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015, p.755.
[2] Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/_ed757_o_fascismo_e_a_profilaxia_da_gravidez/>. Acesso em 19 de agosto de 2020.
[3] Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/a-arriscada-luta-pelo-direito-ao-aborto-no-brasil/a-48742888>. Acesso em 19 de agosto de 2020.
[4] Para Antônio Negri (Apud PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo:Boitempo, 2017, p.72), sociólogo marxista italiano “A forma jurídica de Pachukanis é, portanto, norma da organização social e do sistema produtivo. A lei é instituição contraditória, seu movimento pode ser descrito como o movimento configurado pela variabilidade da relação mercantil”.
[5] ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Rio de Janeiro:Vozes, 1999, p.192.
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