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BRASIL

Reflexões sobre um ato espontâneo em defesa de uma menina violentada pelo tio e pelo bolsonarismo

Luciana Ribeiro, da Resistência Feminista, PE

No último domingo (16), nós, feministas do Recife (PE), fomos surpreendidas, dessa vez em nossa cidade, com mais um desenrolar do caso da menina capixaba de dez anos estuprada pelo tio desde os seis. Diante da recusa de atendimento médico em seu próprio estado para a interrupção da gravidez, a criança, em segredo de justiça, viajou ao Recife para atendimento no CISAM, que é um hospital universitário ligado à Universidade de Pernambuco, onde foi mais uma vez vítima de violência – agora, por bolsonaristas e fanáticos religiosos, que foram para a porta do hospital hostilizar a vítima e a equipe médica, tentando impedir o procedimento.

Foi tudo muito rápido. Administro uma página ativista em Pernambuco e, inicialmente, quando as notícias começaram a chegar e pude confirmar sua veracidade, tive a preocupação de denunciar nas redes a ação dos fundamentalistas, mas sem divulgar o nome do hospital. De cara, não pensei em ir para a porta do CISAM, achei que isso poderia trazer ainda mais exposição para a vítima. O que eu e o movimento feminista ainda não sabíamos é que o endereço do CISAM e até o nome da menina já estavam expostos na rede mundial de computadores. A incitação ao ódio estava espalhada na web através das postagens de Sarah Winter, extremista reacionária ligada ao bolsonarismo, que convocava seus iguais a irem para a frente do hospital. Na medida em que as informações foram chegando e nós do movimento feminista soubemos que desde o início da tarde os fundamentalistas e bolsonaristas estavam no CISAM, que tinham tentado constranger e impedir o acesso da equipe médica, que tinham hostilizado o diretor médico do CISAM, e que continuavam lá, causando problemas, tentando dar carteirada para acessar o hospital, o movimento feminista teve que se mobilizar.

Como nós feministas não sabíamos que isso estava acontecendo desde cedo, acredito que fomos muito rápidas, que a solidariedade foi imediata e espontânea. Não sei quantificar quantas de nós estivemos lá, mas, em meio a uma pandemia, foi um número muito expressivo. Ir lá na frente do CISAM e fazer aquele jogral, aquela corrente em defesa da menina e de sua vida, será, no futuro, um alento para essa criança. Um alento para quando ela for uma mulher. No momento, já foi alento para muitas de nós que passaram por violências parecidas, que foram vítimas de estupro, de abuso. Aquela corrente de mulheres fez com que muitas de nós, em todo o Brasil, não se sentissem sozinhas.

No dia seguinte, ficamos ainda mais estarrecidas quando descobrimos pela imprensa que a exposição dessa criança começou ainda na casa dela, quando uma comitiva da Damares Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro, bateu em sua porta. A avó da vítima, inclusive, desmaiou com o assédio dos fanáticos, que exigiam que a menina mantivesse essa gestação, mesmo que isso atentasse contra a sua saúde física e psicológica. Que tempos são estes em que a comitiva de uma ministra bate à porta de uma criança querendo obriga-la a gestar o fruto de um estupro?

Tudo que envolve esse caso é resultado da conjuntura perversa em que estamos inseridos. O acesso das vítimas de estupro ao aborto legal é garantido pela lei brasileira desde 1940. Mesmo assim, em 2020, a criança teve que lidar com uma turba violenta de fanáticos em sua casa, assim como na porta do hospital. Mais do que nunca, é preciso dar nome aos bois: os fanáticos que invadiram a casa da vítima no Espírito Santo e os que tentaram impedir o procedimento no hospital são fundamentalistas religiosos? São, sim. Mas não são só isso. É preciso perceber a quem estas pessoas estão ligadas politicamente. Tanto os que foram para a porta do hospital no Recife quanto os que foram assediar a criança em sua própria casa são bolsonaristas. O governo Bolsonaro não só se apoia politicamente nesses setores conservadores, como deu cargos no governo para estas pessoas. Todo esse absurdo está intimamente ligado com a ascenção da ultradireita no Brasil.

É claro que, diante da repercussão negativa, alguns representantes do governo, como o vice-presidente Mourão, vendo o tiro no pé que foi a ação de seus pares, vão tentar se desvencilhar disso. Vejam que mesmo boa parte da população que é contra o aborto não concordou com a ação dos fanáticos, já que se tratava de um caso gritante: era uma criança vítima de estupro que tinha sua vida e seu psicológico ameaçados por essa gestação. No entanto, Joel da Harpa e Clarissa Tércio, deputados estaduais que foram tentar dar carteirada no hospital para impedir a interrupção da gestação, que humilharam o médico e equipe, que chamaram de assassina uma criança de dez anos, estão ligados a quem? A Bolsonaro, claro.

Precisamos lidar com essa violência em todas as suas esferas: criminal, judicial e política. A Sarah Winter desrespeitou vários artigos do ECA quando divulgou o nome da criança e o hospital para onde ela estava indo. Quem passou essa informação para a Sarah? Exigimos investigação. Antes disso, como a informação chegou até Damares? Todos os envolvidos têm que ser responsabilizados.

Na esfera política, os deputados bolsonaristas pernambucanos que tentaram impedir o procedimento, que tentaram obstruir uma ordem judicial e forçar a entrada no hospital, também precisam responder por isso. O mandato coletivo das Juntas (PSOL-PE), inclusive, já acionou a comissão de ética da Assembleia Legislativa de Pernambuco contra esses parlamentares. Além disso, as Juntas também entraram com uma representação no Ministério Público de Pernambuco para pedir medidas de proteção a essa criança e sua família.

Também na esfera política, no espírito da onda de acolhimento proveniente do ato no CISAM, o movimento feminista precisa unir forças para derrotar Bolsonaro. É preciso parar estes que avançam sobre os nossos direitos, nossos corpos e nossas vidas: a luta feminista se mescla cada vez mais com a batalha contra o bolsonarismo.

 

 

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