Se considerarmos a sociedade como um corpo político coeso, podemos examinar os posicionamentos do conjunto das instituições políticas em relação a determinada matéria sob um prisma que coloca as mais variadas ações governamentais como produtos da mentalidade popular. Afinal, vivemos sob um regime democrático, certo? Sob essa ordem política, idealmente, nossos representantes são uma expressão política da vontade popular. Sim, logicamente não podemos ser superficiais em nossas considerações. É evidente que muitas contradições históricas, aprendidas lá no secundário, precisam ser contempladas antes de apreciarmos a frase “…ele está no poder, porque o povo escolheu!…”. Não nos interpretem mal, a simplificação da História nunca será o caminho daqueles que procuram entender as instituições de um determinado povo. Justamente por isso, precisamos nos sentar na mesa polissêmica dos poderes instituídos, ao mesmo tempo que nos despojamos da esperança positiva de arrumar o banquete dos fatos nela postos, mas sim tomando a liberdade de provar de tudo ali um pouco para no fim questionar: Como isso tudo foi feito?
No início dessa conversa, temos de admitir que o diálogo sobre o poder instituído, ou seja, o governo, não é algo difícil de ser feito e sim constrangedor. Quando voltamos os nossos olhos para a capital do Brasil, décima maior economia do planeta, e vemos as desventuras maliciosas, forçosamente quixotescas, do presidente líder de saudosistas do militarismo, monarquistas perdidos no século errado e terraplanistas em uma cruzada irracionalismo quase medieval, nos sentimos embaraçados. Até quando, tomados por um misto de constrangimento e cansaço, usamos a velha máxima surrada do Tom Jobim: “…É… o Brasil não é para principiantes, né?…”, a frase soa perdida. Ao bem da verdade, a maioria de nós está tão intelectualmente esgotado que já não há muito para ser dito com ou sem indignação. A prova disso é o tom costumeiro que a polida e monocórdica crítica jornalística aos disparates do poder executivo possui em nossos ouvidos ao vermos, todos os dias, as notícias mais esdrúxulas soarem como previsão do tempo. Estamos tão saturados que até neste pandêmico 2020, na iminência da necessidade de coalização entre o poder e o saber instituídos, sinceramente não nos surpreendemos em ver se engalfinhar numa luta negacionistas com intelectuais engajados, ou a própria universidade pública.
Entretanto, por que isso acontece? Por qual razão, ou falta dela, reagimos assim tão derrotados? Qual é o motivo que leva ao governo a tratar a ciência de forma, para o bom uso do eufemismo, aguerrida? Onde está o ganho político na oposição ao diálogo harmônico com o setor da sociedade civil que mais tem chances de nos tirar da enrascada do Covid-19? Certamente as questões que balizam a reflexão política são necessárias por serem incômodas assim como são complexas especialmente por não serem afeitas a respostas acabadas e estéreis tanto em capacidade de instruir, assim como em efeito de produzir desdobramentos práticos. De fato, no caso dos nossos questionamentos, muitos “ismos” de plantão ofereciam extensas explicações sistemáticas. Contudo, sistemas prontos pouco nos servem para refletir, e agir, sobre fatos políticos que sob o cansado olhar da opinião comum soam disfuncionais, tal como: Por que o governo simplesmente não coopera com os pesquisadores das universidades públicas? Qual é o impedimento nesta crise com as diretrizes de combate a Pandemia que foram estabelecidas por autoridades do saber em todo o planeta? Para o cidadão comum, inexistem respostas prontas para realidade social caótica construída pelo bolsonarismo. A confusão que sentimos ao tentar compreender, determinar e criticar essa problemática é proposital. Há por parte do poder instituído uma campanha nacional para que esqueçamos os princípios sobre os quais deveriam afirmar-se as nossas instituições e nesse pacote estão incluídos o lugar do governo e da ciência.
Sendo assim, como podemos organizar uma contra ofensiva a artilharia de absurdos que a agenda política do executivo lança contra as nossas instituições de poder? Sem sombra de dúvida, o primeiro passo é a interpretação crítica sobre o poder instituído e o saber. Fazer isso necessitarmos trabalhar com a filosofia da práxis, a fim de que possamos partir da materialidade, ou seja da configuração de elementos históricos, e por isso políticos, no mundo real. Determinando dessa forma o que os objetos apreciados, governo e ciência, são material e idealmente em nossa sociedade e o que eles não são; aquilo que potencialmente poderiam ser num cenário de superação. Nesse sentido, o embate travestido de patifaria que o governo bolsonarista lança contra o campo científico fica mais nítido e sua estratégia política, fundamentada no anti-intelectualismo, fica nua em seu perfil miserável.
Então, também na função desse argumento, são bem vindas como exemplo as breves colocações do sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre as relações entre o regime das classes dominantes e as ciências. Pois se lançarmos suas palavras como lentes na cruzada irracionalista de Jair Messias Bolsonaro e seus asseclas, as hipérboles dos disparates não mais nos indignam, ao contrário nos ensinam a natureza político ideológica da retórica de seus perigosos interlocutores. Em “O Campo Científico”, Bourdieu escreve sobre o que tomamos aqui simplesmente como poder e saber instituídos, o seguinte:
“(…)enquanto a classe dominante concede às ciências da natureza uma autonomia que se mede pelo seu grau de interesse nas aplicações das técnicas científicas na economia, ela nada tem a esperar das ciências sociais, a não ser, no melhor dos casos, uma contribuição particularmente preciosa para a legitimação da ordem estabelecida e um reforço do arsenal dos instrumentos simbólicos de dominação.(…)”
Se considerarmos essas colocações como a relação política formal, ou ideal, do Estado, poder instituído, para com a Ciência, saber instituído, o que podemos dizer sobre a relação o governo de Jair Bolsonaro com a comunidade científica brasileira? Bom, a primeira coisa seria: Nada. O governo Bolsonaro não considera o campo científico como produto do seu projeto estadístico, nem mesmo quando considerarmos a sua política econômica na área do saber que está resumida ao ultra neoliberalismo de sucatear, terceirizar e vender o sistema de pesquisa científico brasileiro em nomes dos interesses financeiros dos conglomerados privados de educação. Logo, em termos de cooperação, até as ciências da natureza, galinha dos ovos de ouro da ciência no país e área fundamental no combate ao Corona Vírus, não devem esperar nada do poder executivo bolsonarista em termos de cooperação. O próprio histórico de ataques diretos do Ministrado da Educação bolsonarista é uma farta lista de evidências que ratificam como o governo está politicamente engajado na destruição da estrutura sob a qual se assenta a ciência no Brasil: A Universidade Pública. Espaço esse, ironicamente, construído com muito esmero pelas políticas de lastro desenvolvimentista do regime militar como nos demonstra a Reforma Universitária iniciada em 1968, responsável por construir todo o sistema contemporâneo de pesquisa no país. Analogamente, o poder executivo bolsonarista não fará nada por seus inimigos mortais: os cientistas sociais. Esses últimos, ainda tomando como referencial as colocações de Bourdieu, são política e epistemologicamente incapazes de fornecer qualquer ratificação aos discursos de base anti-intelectualista, fundamentalista e extremamente conservadora do bolsonarismo. Do bolsonarismo o saber instituído por historiadores, sociólogos, politólogos, e até filósofos, pode esperar apenas violência e morte. Tendo isso tudo em vista, quando pensarmos hoje nas relações entre o poder instituído e o saber precisamos ter em mente que trata-se de uma profunda ruptura política que, tal como todo importante confronto na História, não vai acontecer sem luta.
Por fim, é notável que a grande pergunta é: Como iremos lutar?
*Professor de História na Educação Básica e Militante pela Educação Popular no Projeto Social Cidadão Pensante.
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