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BRASIL

A pandemia nos une, a classe nos divide

Amanda Moreira*, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

A pandemia do novo coronavírus está despertando o que há de pior no ser humano. Nem mesmo esta tragédia, que vem dilacerando vidas ao redor do mundo, tem sido capaz de fazer as pessoas pensarem mais no outro e no bem comum. Infelizmente, a Covid-19 só acentuou o cada um por si e ninguém por todos, numa sociedade cada vez mais sem horizonte coletivo.

Atingimos a marca oficial de 1 milhão e 600 mil infectados pela Covid-19 e 65 mil mortos no Brasil. Já passamos do dobro da meta do Jair de “matar uns 30 mil”, e ele não se contenta, segue o seu projeto, mesmo que para isso se valha de medidas estapafúrdias como vetar, na lei de uso de máscara, a obrigação de sua utilização em igrejas, estabelecimentos comerciais, escolas, presídios e locais fechados. Nada, absolutamente nada, explica alguém fazer isso em plena pandemia, a não ser fazer jus ao seu merecido título de genocida.

Seguimos aprendendo tudo que não presta com quem dá o mau exemplo e, neste caso, a população segue os passos do presidente e o presidente segue os passos de Trump, líder do único país que nos supera no número de casos no mundo. Assim, EUA e Brasil seguem liderando o morticínio com duas figuras que dispensam comentários.

Com toda a liberação na economia promovida e incentivada nos últimos dias, não deu outra. Farra do boi! O gado bolsonarista saiu de sua cerca de arame liso e logo ocupou as ruas, sem máscara, lotando todos os espaços possíveis, felizes, gravando vídeos, debochando e dizendo que a vida voltou ao normal. Temos 65 MIL MORTES, e como prêmio: praia cheia, shopping cheio, ruas lotadas, academias, bares e restaurantes voltando a funcionar. Deste modo, o isolamento social se tornou uma escolha individual, bem no pico da pandemia.

Na última semana o Rio de Janeiro registrou 168 mortes em 24 horas. Só na capital temos mais de 7 mil óbitos e quase 11 mil em todo estado. E muita gente segue vivendo numa realidade paralela nos mostrando que não existe amor em SP, no RJ, nem em lugar nenhum. Leblon e Barra da Tijuca com seus bares cheios de almas tão vazias, onde a ganância vibra e a vaidade excita, nos deram a certeza de que, no Brasil, a vacina para Covid-19 será muito bem vinda, mas a vacina contra estupidez é a mais urgente.

Não há dúvidas, a classe média aprendeu a feder tanto quanto a burguesia, esta que sempre cheirou muito mal, como já dizia Cazuza. O medo da contaminação levou os super ricos a finalmente descobrirem que há brasileiros que não têm água e não conseguem comprar sabonetes. Também descobriram que existem os invisíveis moradores de rua. Bia Dória, com sua boca cheia de botox, falou que as pessoas vivem nas ruas porque querem e porque são preguiçosas. Disse isso sentada ao lado de outra parasita, em ambiente luxuoso, ambas cheias de pose e mexendo nas suas perucas de boneca. A burguesia não tem charme nem é discreta. Não tem nada mais repugnante que essa gente que se sente elevada, que parece não se constipar ou que, constipando-se, não espirra. Só querem manter os seus privilégios em qualquer circunstância da vida.

Não existe luta feminista sem luta classista, assim como não há luta antirracista sem luta anticapitalista. A questão racial também nos une, mas a classe nos divide.

Não há possibilidade de haver sororidade com esse tipo de gente, não cabe a defesa de mulheres burguesas que humilham e exploram a classe trabalhadora. O gênero nos une, a classe nos divide. Feminismo e comunismo são duas coisas que não fazem sentido uma sem a outra, porque não existe luta feminista sem luta classista, assim como não há luta antirracista sem luta anticapitalista. A questão racial também nos une, mas a classe nos divide.

A propósito, na última semana aconteceu uma polêmica envolvendo o ex-ministro da educação. Não o Weintraub, este continua fugido do país, mas o seu sucessor, o Decotelli, que não durou cinco dias no ministério porque não se segurou diante dos fatos. Falsificou o Lattes na cara dura. Inclusive, quando foi dispensado, correu para colocar no currículo que foi ministro durante cinco dias, o que não se caracteriza mais como falsidade e sim como patologia.

Teve gente na esquerda que passou pano, tolerou a mentira, a fraude. Disseram que por ele ser negro a pressão foi maior, que por isso a queda foi mais rápida. Não podemos desconsiderar este elemento, considerando o racismo estrutural, mas esta análise pareceu rasa, pois, em nenhuma circunstância, cabe a defesa de alguém que aceita cargo em governo fascista. De qualquer forma, devemos refletir sobre isso, pois sempre que alguém acusa um assunto de conter racismo, todos que se colocam no campo do antirracismo deveriam pensar a respeito, especialmente se não são negros ou negras.

Naquele caso a questão foi política. Embora o governo Bolsonaro seja a expressão do racismo em seu grau mais extremo, o motivo de Decotelli ter caído teve muito mais a ver com a crise que o governo enfrenta do que com a questão racial, como foi apresentado nas polêmicas de redes sociais. Esse senhor chegou ao governo pelo currículo, não tinha relação forte com o governo, não tinha laços, não tinha o perfil ideológico desejado por Bolsonaro. O currículo era única coisa que o segurava, era a seu cartão de visitas. Tanto que a primeira coisa que o presidente fez foi divulgar o suposto currículo do cara aos quatro ventos. Logo depois veio a fraude, isso ficou mal, péssimo, desgastou.

O governo Bolsonaro agora não está podendo comprar barulho, diferente de momentos anteriores que seguraram as bizarrices do mestrado bíblico da Damares, o falso mestrado em Yale do Salles e as pirotecnias de Weintraub. O governo agora está vivendo na base da concessão do Centrão e isso está a definir o jogo no tabuleiro. A proximidade com o Centrão e com os militares mais milicianos busca uma estabilidade para a corja insana. O velho Bozo, o palhaço antissistêmico, que vocifera contra a “Globolixo” e a “Foice de São Paulo”, de dentro do seu chiqueirinho no Picadeiro do Planalto, agora está sendo contido. Ele não usa focinheira contra a Covid, mas está sendo guiado na coleira.

Entre Decotellis e Damares, jamais deveríamos defender um inimigo de classe só pela condição de ser uma mulher, negro ou homossexual.

Entre Decotellis e Damares, jamais deveríamos defender um inimigo de classe só pela condição de ser uma mulher, negro ou homossexual. Isso é polêmico, pois em geral este é um debate mal feito, vazio, liberal. É inegável que há um esvaziamento do debate de classe social e um superdimensionamento do debate identitário. Salvo as polêmicas dos termos, precisamos falar mais sobre isso, mesmo correndo o risco de sermos criticados. Aliás, crítica é uma coisa que lutadores sociais têm feito muito bem, o problema é a direção equivocada que, muitas vezes, faz atingir o lado errado e gera uma inversão: os inimigos de classe passam a ser defendidos e os trabalhadores tornam-se inimigos.

E segue a lei do valor e o fluxo. Enquanto a esquerda se esbofeteou discutindo entre si se o candidato a ministro da educação mereceu ou não escracho público, por ser um fraudador, a gente perde a grana do Fundeb e a educação pública segue em risco. Enquanto feministas falavam da ausência de sororidade das mulheres durante o escracho público de Bia Dória, o governador de São Paulo segue a sua política eugenista e higienista.

A falta do debate de classe também está levando muita gente a confundir privilégios com direitos, a pensar que não tomar tiro da polícia e poder ficar em casa durante uma pandemia é um privilégio. A gente precisa combater esse discurso dentro da esquerda. Não existe privilégio no seio da classe trabalhadora. Não existe! Só burgueses são privilegiados, parasitas, vacas gordas, que vivem das grandes fortunas, que nunca precisaram mover uma palha e vivem às custas do nosso trabalho.

Este tempo pandêmico poderia nos ajudar a melhorar essas reflexões, que tem a ver com a nossa humanidade, mas isso não vai acontecer se não qualificarmos o debate e melhoramos as nossas organizações. Precisamos de mais solidariedade de classe com os trabalhadores e trabalhadoras e não com a burguesia. Somos uma classe lutando contra a outra, apesar do patriarcado e do racismo estrutural, existem mulheres e negros que não estão do nosso lado. Precisamos falar da nossa classe e parar de defender os ricos exclusivamente por seu pertencimento de raça ou gênero.

É que em vez de fazer a análise política tem gente, partido e movimentos que gastam um tempo tentando convencer que são de esquerda, mas acabam fazendo a opção e o caminho da burguesia. Acreditam na justiça burguesa, na mídia burguesa, apostam todas as fichas na institucionalidade burguesa e jogam o jogo do capital. Sair em defesa da Damares, da mulher do Dória, do ex-ministro Decotelli, do sujeito que está a frente da Fundação Palmares e de outras mulheres, e de outros negros que estão com esse governo é ir na contramão da luta de classes, é dar apoio àqueles/as que desejam arrancar as nossas unhas a alicate, apagar cigarros na nossa testa e outras lisonjas dos fascistas. Mas, o debate que tem acontecido está fugindo muito desta direção. Falar de classe é quase old, fora de moda. O tribunal da internet não gosta muito e sempre parte de julgamentos vazios.

É na luta que a classe se faz classe. Não é na segregação. A gente precisa se aprumar. Pegar o rumo do barco porque ele está afundando e levando todo mundo. A luta de classes é como um jogo de futebol. Precisamos entender o lance, olhar o jogo com estratégia para não continuar colecionando mais derrotas no placar. A rejeição de Jair tem o nível mais alto desde que ele assumiu. São diversas ameaças de impeachment, inclusive pela via do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e os filhotes estão todos indiciados.

Bolsonaro está caminhando para a derrota e anda desesperado para se manter em campo. No mesmo dia que divulgou a prorrogação do auxílio-emergencial (mesmo que não chegue ao bolso das pessoas devidamente) promoveu o Mengão “de graça” no YouTube. Foram 4 milhões de pessoas assistindo e nos comentários enxurradas de agradecimentos feitos por um povo que ignora a promiscuidade entre os presidentes do Flamengo e da República.

A fórmula é: duas parcelas de auxílio emergencial + jogo do Flamengo por streaming = carta branca para o governo genocida seguir matando pobre. Nesse governo a política do pão e circo é temperada com ódio e resulta em morte. E assim voltou a ter jogador em campo, comemorando gol no Maracanã, no patético campeonato carioca, enquanto pessoas morrem no hospital de campanha ao lado, em só mais uma revelação da miséria humana a que chegamos.

Para pararmos de colecionar derrotas precisamos entender as regras do jogo, agir coletivamente e pensar estrategicamente. Para isso, é fundamental nos entender como classe trabalhadora organizada, buscarmos a formação política necessária e estarmos prontos para entrar em campo. Só assim teremos as condições de enfrentar o adversário e garantir a vitória do trabalho sobre o capital.

 

*Amanda Moreira é professora da UERJ.

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