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OPRESSÕES

Da perseguição às pessoas LGBTIS nos regimes fascistas europeus no século XX à atual ameaça bolsonarista à vida e existência de brasileiras e brasileiros

Carol Quintana*, de Teresópolis, RJ, e Ivanilda Figueiredo**, do Rio de Janeiro, RJ
Wikimedia Commons

Homossexuais identificados com um triângulo rosa no uniforme em campos de concentração

A perseguição as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e trans (LGBTIs) foi característica dos regimes fascistas europeus no início do século XX. No entanto, naquele momento estes nem eram o grupo alvo prioritário. Já nos ambientes (neo)fascistas contemporâneos, a pauta LGBTI vem sendo cada vez mais utilizada para fomentar o ódio social. Seriam as pessoas LGBTIs maus exemplos, ameaças a família e suas vidas uma escolha danosa a determinados preceitos religiosos. Ou seja, seres humanos menos dignos dos que os demais. Por isso, é importante relembrar o passado para pensar o presente. Só assim seremos capazes de reagir e não deixarmos que o peso do silêncio nos engasgue.

No (neo)fascismo, criam-se falsos ideais de superioridade, homogeneidade e união de determinadas pessoas em oposição ao suposto desvio, defeito, degeneração imposto a outro grupo. O fascismo se compraz desse ideal de superioridade concedido a alguns e assim se legitima/justifica. Não à toa a perseguição realizada pelo Estado conta com algozes e/ou cúmplices na própria sociedade. Foi assim no nazismo e tem sido desta forma no neofascismo brasileiro, o aumento do ódio e da violência contra LGBTIs é sentido por todas nós e legitimado pelo ideal fascista.

Na década de 1920, a Europa estava em efervescência social. O pós-primeira guerra mundial fez florescer um ambiente artístico e cultural potente. Nesse cenário, as expressões LGBTI não ficaram de fora. Muito pelo contrário, Berlim tinha aproximadamente uns 100 bares e cafés, Viena uma dúzia de cafés, bares, boates e livrarias, todos voltado ao público LGBTI e a Itália tinha seu próprio bairro LGBTI.

Esse ambiente de maior tolerância, permitiu que médicos e cientistas progressistas começassem a olhar para a homossexualidade e a transsexualidade com menos preconceito. Passaram a existir estudos que contestavam a patologização do desejo homossexual e da identidade trans, foram inclusive realizadas as primeiras cirurgias de readequação sexual. Em Berlim, havia organizações voltadas aos direitos de LGBTIs, como o Instituto para o Estudo da Sexualidade, fundado pelo médico Magnus Hirschfeld, que advogava, dentre outras pautas, pela revogação do Parágrafo 175 do Código Penal Alemão que condenava a homossexualidade masculina, embora naquele momento tal norma fosse raramente usada.

A liberdade desfrutada no período pode parecer estranha quando narramos a história quase 100 anos depois, especialmente, considerando o cenário atual no qual a intolerância ameaça empurrar de volta para os armários e guetos a comunidade LGBTI. Por isso, é vital recontar essa história, lembrar que esse ambiente acolhedor foi sufocado pela ascensão do fascismo na Europa na década seguinte e reiterado pelas ideologias voltadas ao justificar o retorno da mulher ao lar e da necessidade de aumento da taxa de natalidade do pós-segunda guerra.

Dentre todos esses países fascista existentes na Europa no século XX, a Alemanha nazista foi, segundo os estudos consultados o que teve uma política mais cruel e direcionada ao extermínio direto da população LGBTI. Porém, em todos eles aquela liberdade da década anterior foi substituída pelo medo, pela perseguição, pelo retorno ao gueto, pelo perigo, pela necessidade de se esconder. Negar a si próprio já é em si uma cruel sentença. Todas as pessoas LGBTI no período foram assim condenadas. Os dias de liberdade e amor foram suplantadas por fuga, retorno ao armário, sensação de medo constante e negação do desejo.

Por isso, é tão importante lembrar o quanto as possibilidades de viver em liberdade têm avanços e retrocessos em tantos momentos históricos. Não adianta tergiversar e tentar se convencer que o cenário não é tão grave. Parte significativa da comunidade LGBTI alemã tinha em mente que Hitler não seria tão ruim para a pauta, pois tinha como um de seus braços direitos Ernst Röhm.

Ernst Röhm, um homem assumidamente homossexual, era desde a ascensão de Hitler, um dos principais nomes do regime nazista. Em 1930, ele tornou-se o comandante das “tropas de assalto” (grupo paramilitar nazista). Sua posição de destaque na hierarquia do regime passava uma certa tranquilidade à população LGBTI como se sua respeitabilidade assegurasse que não haveria perseguição.

Ledo engano. Ernst Röhm foi preso em 29 de junho de 1934 e morto dois dias depois por agentes da SS.


Ernst Röhm e Heines, em 1933. Foto: Bundesarchiv

 

Vale lembrar ainda que Hitler foi eleito democraticamente pelo voto da maioria, que o regime nazista tinha apoio das massas, a Alemanha tinha uma Constituição, possuía um judiciário (em tese) independente e parlamentares eleitos. Mas tão logo eleito, Hitler conseguiu – após manobras que isolaram a oposição – que o Parlamento aprovasse a “lei de autorização” (Ermächtigungsgesetz), que permitia a aprovação de normas pelo Chanceler (leia-se: por ele) mesmo que essas leis contrariassem o texto constitucional. Morria ali a Constituição de Weimar. O judiciário não deixou de existir no regime nazista, mas é notório que não foi capaz de evitar as mais de 6 milhões de mortes de pessoas judias, nem tão pouco a perseguição e o assassinato dos demais grupos indesejados.

O Instituto para o Estudo da Sexualidade foi fechado, seu dono perseguido, mais de 12 mil livros e obras de arte de sua propriedade queimados. O estudo da sexualidade – e, especialmente, da homossexualidade – se tornou proibido nas escolas alemãs. Em 1935, o parágrafo 175 foi alterado para se tornar mais rígido e submeter as pessoas homossexuais, pelo simples fato de serem homossexuais, a até 10 anos de regime forçado.

Homens e mulheres LGBTIs tiveram de fugir, refugiar-se num casamento heterossexual ou foram perseguidos. Ainda que não existam dados fechados, estima-se que 100 mil homossexuais foram presos, a maioria deles ia para as prisões regulares, porém entre 5 e 15 mil foram para os campos de concentração, lá recebiam em seu uniforme um triângulo rosa para identificar que o motivo de sua prisão era homossexualidade. Rüdiger Lautmann, um dos maiores especialistas no tema na Alemanha, estima que morreram 60% das pessoas LGBTIs submetidas a prisão nos campos de concentração. As estimativas sobre o número de homossexuais mortos nos campos variam muito, entre 5 e 15 mil, conforme as fontes consultadas.

Os nazistas acreditavam que a homossexualidade era uma doença, submetiam, portanto, as pessoas homossexuais tratamentos cruéis específicos, elas eram isoladas das demais, passavam por humilhações, trabalhos forçados e experimentos pseudocientíficos. De acordo como o livro Marcados pelo Triângulo Rosa, os homens homossexuais além de serem alimentados com pães mofados, eram submetidos a experimentos médicos diversos, um deles se referia a enfiar agulhas em seus mamilos (por vezes, a agulha atingia o coração e resultava em morte), eram também estuprados e espancados e até mesmo jogados vivos para se tornarem comida de cães de caça. Inicialmente, incentivava-se a castração com o “consentimento” do acusado para curar a homossexualidade e reduzir as sentenças, em sequência, a castração passou a ser utilizada de modo imposto como mais uma das punições.

Os homens homossexuais e as pessoas trans eram mais perseguidos do que as mulheres cis lésbicas. Elas ainda eram vistas como potenciais reprodutoras de filhos arianos. Assim, o número de lésbicas detidas nos campos de concentração e mortas era menor. Para sobreviver muitas tiveram de ser esconder, fugir ou fingir uma relação heterossexual.  As lésbicas mais conhecidas, as que fossem identificadas frequentando algum local LGBTI clandestino ou tivessem sua relação denunciada eram enviadas aos campos de concentração e mortas. Um dos casos documentados mais famoso é o de Felice Schragenheim, judia lésbica, morta aos 22 em poder dos nazistas. Felice foi presa na casa em que morava com sua companheira Lilli Wust por denúncia da população.

A criminalização da sodomia só foi efetivamente revogada na Alemanha em 1994. Vale lembrar que desde 1950 não houve mais condenações na Alemanha Ocidental com base no Parágrafo 175, entretanto, na Alemanha Oriental mais de 50.000 pessoas foram condenadas por serem homossexuais entre 1949 e 1969 quando a lei apesar de não haver sido completamente revogada, passou a não ser mais utilizada.

O regime fascista italiano propagava um ideal viril de masculinidade heterossexual e, portanto, era contrário aos homens terem expressões de gênero consideradas mais delicadas. O ideal masculino agressivo era exaltado e se materializava na figura do ditador (o Duce) Benito Mussolini. Exaltava-se a educação física e a juventude, bem como a imagem de uma masculinidade agressiva, autoritária e marcial e retratava a homossexualidade numa ridícula caricatura.

Ao mesmo tempo, essa configuração do homem italiano rejeitava que existisse um grande contingente de homossexuais no país – a configuração desse homem ideal não poderia ser “manchada” pela existência da homossexualidade, para criar o masculino ideal o melhor era negá-la.

Por isso, é interessante notar a rejeição da criminalização da sodomia naquele momento se deu por dois motivos: I. não existiam tantos homossexuais assim que merecessem a preocupação de mudança da legislação; II. Nos casos de comprovada homossexualidade as leis sobre moralidade e decência poderiam ser aplicadas pelo Judiciário e seriam ainda mais rígidas. Entre 1927 e 1939, foram presos 1029 homens homossexuais.

Lombroso, um criminologista italiano bastante respeitado no período, defendia que existiam criminosos natos, ou seja, pessoas com determinadas características já nasciam com propensão ao crime. Hoje, o higienismo e racismo de suas teorias são reconhecidos, mas naquele momento, suas teses eram usadas para sustentar políticas de segurança. Um de seus seguidores, Salvatore Ottolenghi, defendia que a homossexualidade indicava uma inclinação natural e inata ao crime causada pelos hábitos de preguiça, roubo e embriaguez.

O neofascismo brasileiro tem seu sucesso comprovado com a eleição de Bolsonaro, que teve por base uma carreira construída na perseguição a LGBTIs, mulheres, povos tradicionais e no descrédito aos direitos humanos. Em pesquisa acadêmica recente, foram analisadas todas as reportagens da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo entre 1987 e 2017 que tratavam de ideias e falas de Bolsonaro. Nela constatou-se que as pautas relacionadas a insultos proferidos por ele e as contrárias a direitos humanos são as de maior repercussão. Destaca-se ainda que houve um aumento significativo da visibilidade de suas declarações à época do início do governo Dilma Rousseff com a polêmica do “kit gay” que o levou a ser entrevistado por veículo televisivo e lá afirmar que não teria filhos gays porque eles eram bem educados e respondeu a Preta Gil que seus filhos não namorariam uma negra porque não eram dados promiscuidade. Processado por racismo, disse que a fala foi tirada de contexto, quando falou em promiscuidade se referia aos gays. A perseguição aos LGBTIs foi, portanto, uma das principais alavancas de sua persona política. O medo de muitas pessoas LGBTIs expressam a partir de sua eleição se relaciona diretamente com o fomento ao ódio que suas declarações causaram ao longo desses anos, ódio legitimado por sua expressiva votação.

Diante da constatação de que a violência contra pessoas LGBTIs já atinge números assustadores, da evidência de que os discursos de ódio contra esta população deram visibilidade e popularidade ao presidente eleito, é de se esperar que um dos grupos com maior ameaça aos seus direitos seja a população LGBTI.

Além do mais, vale lembrar que a própria expressão das identidades e sexualidades LGBTIs desafiam enormemente a lógica capitalista e toda a reprodução do próprio capital. A família burguesa patriarcal e heteronormativa sustenta a sociedade capitalista ao prover a reprodução da força de trabalho, portanto, qualquer outro modelo de relações familiares ameaça à ordem capitalista.

Em seu livro, O Calibã e a Bruxa, a feminista Silvia Federici sustenta a ideia de que o domínio sobre o corpo da mulher e o trabalho doméstico são pilares fundamentais do processo de acumulação primitiva do capital, pois permite a reprodução da força de trabalho do incipiente operariado industrial. Segundo ela, a caça às bruxas representou a instauração do patriarcado e desse modelo de família, que subjugava o corpo da mulher ao domínio dos homens e do estado e criminalizava a sodomia.

Mulheres feministas e a população LGBTI desafiam essa lógica patriarcal e heteronormativa. Portanto, pode-se pensar, que quando o fascismo ataca os direitos das mulheres e da comunidade LGBTI, ele está preservando em última instância os princípios que sustentam a lógica do capitalismo. Para alimentar-se, no entanto, o fascismo forja (ou incentiva) sentimentos sociais de aversão a determinados grupos.

Não à toa, o neofascismo brasileiro se reforça de modo exponencial num momento de crise econômica e se fomenta a partir da postura de proeminentes figuras adequadas a estrutura patriarcalista tradicional (homens brancos heterossexuais), exalta a figura desta idealização do masculino e usa o culto à violência como atrativo. Paulatinamente, agregam ao seu séquito um conjunto mais diverso de pessoas, aderindo todos a lógica moral dominante por eles disseminada e lhes dando legitimidade.

 

* Carol Quintana é mestre em ciências sociais pela UFRRJ, professora de sociologia da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro,
**Ivanilda Figueiredo é doutora em direito PUC-Rio, professora adjunta da faculdade de direito da UERJ e coordenadora da URDIR [Universidade, Resistência e Direitos Humanos] Núcleo de Direitos Humanos da UERJ.

NOTAS

1 – Este artigo é uma versão resumida de um estudo publicado pelas autoras FIGUEIREDO, Ivanilda; VIEIRA, A. C. Q. S. . Fascismo ontem e hoje: da perseguição aos LGBTIS nos regimes fascistas europeus no século XX à atual ameaça bolsonarista à vida e existência de brasileiras e brasileiros. In: Amanda Mendonça e Laila Maria Domith. (Org.). Jovens pesquisadoras: sexualidades dissidentes. 1ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2019, v. 1, p. 27-49.

 

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