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BRASIL

O novo marco do saneamento básico e a privatização da água

Gabriel Santos
Arquivo / Agência Brasil

Um dos temas da semana foi o novo marco regulatório do saneamento básico no Brasil. A Folha de S. Paulo fez uma série de artigos, debates sobre o tema chegaram aos assuntos mais comentados do twitter, a oposição de esquerda ao governo Bolsonaro rachou no assunto, com o PDT apoiando com o governo e a oposição de direita o projeto, enquanto PT e PSOL foram contrários ao mesmo.

Na quarta-feira (24), o plenário do Senado aprovou por 65 votos favoráveis e 13 contrários o projeto de lei do senador cearense Tasso Jereissati, do PSDB, que regula a prestação de serviços de tratamento de água e esgoto.

Considerações iniciais

Uma política centralizada nacionalmente de saneamento teve início nos anos 70. Os municípios até então atuavam cada qual à sua forma e vontade. O Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) é o responsável por dar um passo importante, tanto porque se falou pela primeira vez em universalizar o acesso a água e ao tratamento de esgoto, assim como por ter criado as empresas estaduais de saneamento.

Os anos que se seguiram nas décadas de 80 e 90 foram marcados pela falta de uma política e agenda de ações e estratégias para o saneamento no Brasil, sem investimentos no setor, nem planejamento nacional para atender as demandas das diferentes realidades dos municípios brasileiros.

Em 2007, durante o governo Lula, a Lei 11.445/2007 institui o atual Marco Regulatório do Saneamento por meio da Política Nacional de Saneamento Básico. Daí em diante ficou regulamentado e definido que Saneamento Básico são quatro serviços, sendo eles: abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana, e por fim tratamento e limpeza urbana. Esta Lei traz também uma regularização dos planos a serem atingidos na esfera municipal, estadual e nacional, no que se refere ao saneamento, com prazos para a universalização de cada serviço. Além de ter definido que os municípios eram os responsáveis pela efetivação do serviço. O município pode assim prestar o serviço, delega-lo a alguma empresa estadual sem a necessidade de licitação, ou concede por meio de licitação a uma empresa privada.

A última década mostrou um descaso por parte da Federação com o saneamento, mas especificamente a partir do golpe em Dilma a situação, que já era de pouco investimentos, se tornou de regressão. Em 2010 a média de investimentos era de R$ 13 bilhões, em 2017 os números diminuíram para R$ 10 bilhões.

Ao todo, foram investidos R$ 10,9 bilhões em água e esgoto no Brasil em 2017. Assim, o valor representa uma queda de 5,3% em relação ao ano anterior, de acordo com o Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento. O calor exigido para o avanço da política de universalização era de 18 bilhões de reais anualmente, como defende o Plano Nacional de Saneamento Básico.

Hoje 50% dos investimentos estão concentrados sob 100 cidades, que são responsáveis por 40% da população, tendo as outras 5.600 municípios, recebem o valor que sobra.

O novo marco sanitário e seus problemas

A água como território nacional teoricamente pertence a todos os brasileiros, de acordo com a Constituição de 1988, mas, como dito a acima, cabe ao Estado (por meio do municipio) delegar para as empresas, sejam estas públicas, mistas ou privadas o direito e os meios de captação e distribuição dessa água. Quem determina o preço, a oferta do serviço, e quem terá acesso a água são as empresas que o governo responsabiliza para tal, normalmente por meio de licitações.

O novo marco sanitário aprovado no Senado parte de uma lógica que é real. O Estado brasileiro falha em garantir saneamento básico para a população. Temos 103 milhões de brasileiros sem acesso ao esgoto (metade da população), e 16% do nosso povo não tem água tratada, sendo 35 milhões de pessoas. Sendo que o Estado é responsável pelo serviço em 94% das cidades em nosso território.

Esses brasileiros que vivem sem rede de esgoto e água potável não são “abstratos”, eles tem rostos, locais de moradia, distribuição geográfica e racialização. O Estado “falha” quando se trata da garantia desse direito essencial para a população periférica, negra, e que mora no norte e nordeste do país.

Ao todo 82,3% da população nortista e 58,8% dos nordestinos sofrem restrições a serviços de saneamento. É no Piauí que se registra a maior proporção da população (91%) sem acesso a esgotamento sanitário, seja por meio de rede coletora ou pluvial. Os dados são do relatório Sínteses de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População brasileira 2018, feito pelo IBGE. A pesquisa aponta que encontramos ainda no Nordeste o estado com maior número da população sem acesso a coleta de lixo seletiva, o Maranhão exerce o topo com 32,7%. É no Norte que vemos Rondônia, que ocupa o primeiro lugar quando o assunto é o pior índice de abastecimento de água, com 54% da população sem esse serviço.

O novo marco aprovado no Senado não traz apontamentos para resolução dos problemas, e pelo contrário, tem tudo para gerar novos.

É válido apontar que as regras atuais autorizam que empresas privadas atuem sobre serviços de água e esgoto nos municípios brasileiros, mas apontam também limites para a relação entre o público e o privado. Hoje, a empresa estatal estadual é obrigada a ofertar seu serviço para todos municípios do estado. O que acontece é que existe uma lógica de funcionamento destas empresas estatais. No que se trata da atuação destas nas grandes cidades do estado, elas conseguem apresentar um excedente nas receitas, ou seja, um superávit orçamentário. Isto é importante, porque ocorre o inverso nas cidades do interior, onde essas empresas normalmente apresentam um balanço deficitário. As empresas estatais usam o superávit das grandes cidades, para lidar com o déficit das cidades menores.

O novo marco legal aprovado no Senado coloca que todos serviços passam a atuar por meio de licitações, não cabendo mais ao município o direito a escolha de como distribuir o bem que pertence à união. Assim, abertas as licitações, as empresas públicas e privadas passam a concorrer entre si pelo direito legal sobre a água.

O provável que acontece é que as empresas privadas concorram e ganhem a licitação nos locais que sejam vantajosos para ela, ou seja, nas áreas lucráveis. A lógica da empresa privada é oposta a da empresa estatal, ela vai atuar apenas nas que gerem retorno financeiro, pois o que importa é o lucro. Assim os estados e regiões do país ficam divididas. em lucráveis e não lucráveis. As grandes cidades (que geram lucro imediato) serão alvos das empresas privadas, que com maior poder financeiro devem vencer as licitações, deixando as cidades que geram déficit para as empresas estatais.

Vemos portanto uma bola de neve se formando, pois as empresas estatais sem a parte que gera o superávit orçamentário vão ver seu faturamento cair, o que gera uma piora no serviço, e isto atingirá aqueles mais pobres e que mais necessitam do serviço. As empresas públicas ainda tendem a perder valor de mercado, isto somado a receitas menores acaba facilitando assim suas privatizações.

A  universalização do saneamento, proposta neste novo marco, é algo ilusório de acontecer, visto que as empresas privadas não tem interesse em atingir todos iguais, pois sua lógica de funcionamento não trata os usuários como cidadãos com direitos, mas sim como consumidores com dever de pagar para ter acesso.

A lógica deste novo marco de saneamento tende a punir as empresas públicas, pois elas não concorrem no momento da licitação em posição de igualdade com as empresas privadas. As estatais perdem seu maior recurso financeiro e duplamente punidas, abrem as portas para o capital privado.

Privatizar faz mal ao Brasil e ao povo brasileiro

A votação no Senado do novo marco de saneamento segue uma lógica de austeridade fiscal e retirada de cena do Estado brasileiro. É o mesmo pensamento que moldou o Teto dos Gastos, a Reforma Trabalhista, e que é fruto da ótica neoliberal.

A desculpa da vez, como tantas, é que agora se gerará uma universalização do saneamento básico, algo pouco provável como mostramos acima. Esta universalização deve ser feita, ninguém discordaria de tal fato, e é uma tarefa do Estado brasileiro garantir isto. O modus operandi das empresas privadas no Brasil não comprova que elas oferecem um serviço melhor que as empresas estatais. Na verdade é o contrário, e trazem ainda uma elevação do preço do serviço ofertado.

Em comparativos, a perda de água que ocorre nas empresas públicas é de 39%, um número melhor que as privadas, que apresentam 49% de perda de água. O investimento de empresas estatais no saneamento também é maior quando vemos o número per capita de 405 reais investidos em comparação com os R$ 377  das empresas privadas. As empresas estatais levam novamente vantagem quando a comparação é o valor da tarifa média colocados o mesmo padrão de consumo. As empresas públicas cobram um valor em média 24% menor que as privadas.

Usando dois exemplos concretos. Em Manaus, capital do Amazonas, que teve seu sistema de saneamento privatizado no ano 2000, hoje se encontra entre os cinco piores municípios com indicadores de saneamento, de acordo com o Instituto Trata Brasil.

Já no Tocantins, a Odebrecht Ambiental, comprou a companhia estadual de saneamento, mas em 2010 ela devolveu ao estado o direito sobre 78 municípios menores, porque estes não davam lucro.

A Odebrecht Ambiental, após a explosão da Lava Jato foi comprada pelo fundo de investimentos canadenses Brookfield, sendo para esse país ao norte que vão as remessas de lucro, e agora se chama BRK Ambiental, sendo a maior empresa privada de saneamento com atuação em nosso país.

Saídas possíveis para o problema

O saneamento público custa caro e a grande questão é de onde tirar o dinheiro para conseguir a universalização do mesmo. As empresas estatais têm condições de realizar um bom serviço e ainda assim gerar lucro para a União. Sendo elas mesmas uma forte alternativa ao custeio necessário para seu funcionamento.

Uma das alternativas para o financiamento da melhoria do saneamento público por meio de empresas estatais, pode vir justamento do subsídio de crédito por parte dos bancos estatais. O que falta para tal ato é vontade política e um governo envolvido nas pautas nacionais. Os bancos públicos brasileiros fazem empréstimos com crédito subsidiado para empresas como a BRK, por que não fazer o mesmo e prioritariamente para empresas estatais?

Outras medidas na relação público-privado são necessários, como as que forcem as empresas privadas já atuantes, e aquelas que venham atuar, a cumprir as cláusulas contratuais, fazendo os investimentos necessários e previstos inicialmente sob pena de revogação da concessão. Seria importante também a regulamentação na distribuição de dividendos das empresas privadas para seus acionistas somente após estas cumprirem sua parte no contrato da concessão. Porém, o que vemos no novo marco regulatório aprovado no Senado é uma fiscalização frouxa por parte do Estado, que de forma constante prorroga a meta para que as empresas privadas cumpram o prazo e estas podendo quebrar o acordo.

A expansão de serviços por parte das estatais gera mais gastos, que poderiam ter como medida imediata uma elevação do preço da tarifa, porém, esta ação por meio de acréscimo direto ou diminuição dos subsídios tarifários, não nos interessa como opção principal.

Podemos apontar ainda como alternativas a aquisição de instrumentos patrimoniais de empresas que já atuam na área de saneamento por bancos públicos, além da criação de um holding estatal. Para relocalização de investimentos, com crescimento de investimento na área de saneamento, entre outras coisas é preciso a revogação do Teto dos Gastos, e uma nova política orçamentária. A tributação sobre as grandes fortunas, o imposto sobre herança, a cobranças das grandes empresas que devem a previdência, entre outras são medidas válida para o aumento de arrecadação por parte da União, por exemplo, o que pode gerar uma maior quantidade de investimentos.

Conclusão

O problema do Estado brasileiro ser ineficiente com a população negra, pobre e dos estados “ao norte”, é consequente das desigualdade sociais e regionais, do racismo estrutural, da forma que o Estado se funda e funciona em nosso país, assim como, e em especial, pelo caráter dependente de nossa burguesia e de nosso país.

Pensar Saneamento Básico como universal é preciso sobre a ótica do combate ao modelo econômico neoliberal imposto no Brasil, e o papel que o Estado brasileiro passará a assumir no futuro. Com combate às desigualdades regionais e raciais, de enfrentamento direito a lógica excludente e racista que funciona o Estado brasileiro.

Hoje no que tange ao saneamento básico caminhamos no caminho inversos da maioria dos países do mundo, que após o fracasso da privatização e concessões para empresas privadas, optam pela estatização.

Tal papel e função do Estado só pode ser possível com um governo formado por partidos de esquerda e movimentos sociais comprometidos com a pauta da soberania nacional, que enfrentem tanto a imposição neoliberal, quanto as garras do imperialismo, e se confronte com o funcionamento racista que norteia nossas instituições.

Por fim, o novo marco do saneamento público é um retrocesso. Podemos não sentir a gravidade hoje de suas consequências. Mas, em curto espaço de tempo, as parcelas mais pauperizadas da população, as periferias, o povo negro e o Brasil profundo, vão sofrer as consequências deste grave ataque feito pelo governo Bolsonaro.