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Queiroz: muito além de um pé de laranja

Parte 3 de “A grande familícia”

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Danilo Georges

Adriano, personagem sobre o qual tratamos na parte 2 desta série, serviu no 18º batalhão da PM com Fabricio Queiroz, chefe de gabinete do deputado Flávio Bolsonaro por 10 anos. Esse Batalhão se notabilizou pela truculência nas operações e cobranças de suborno a criminosos e pelas frequentes incursões na favela Cidade de Deus, uma das poucas naquela região ainda não tomadas pelas milícias. Adriano e Queiroz responderam um processo em comum, por execução de um morador da Cidade de Deus. 

No dia 04 de dezembro de 2019, dois prédios desabaram na comunidade de Muzema, construções irregulares feitas pela milícia que atuava na localidade. Segundo matéria do The Intercept Brasil, o senador Flávio Bolsonaro é investigado pelo Ministério Público como “empreendedor” dos imóveis na Muzema. O dinheiro desses empreendimentos imobiliários viria do esquema de rachadinha que funcionava em seu gabinete operado por Fabrício Queiroz na ALERJ. Outro envolvido no esquema era o chefe do Escritório do Crime, Adriano de Nóbrega.

Uma apresentação do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) no Congresso Nacional, em sabatina ao então candidato a ministro da Justiça Sérgio Moro, em 2019, sintetizou perfeitamente a relação de Flávio Bolsonaro com o Escritório do Crime. O power point era uma paródia do icônico material apresentado pelo ex-procurador Deltan Dallagnol.

Queiroz, que era chefe do gabinete de Flávio Bolsonaro, indicou a mulher e a mãe de Adriano, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega e Raimunda Veras Magalhães, para trabalhar no gabinete. A mãe de Adriano e a ex-mulher dele receberam cerca de R$ 1 milhão em salários da ALERJ, mas não apareciam para trabalhar. Queiroz teria inclusive recebido repasses de duas pizzarias controladas por Adriano, de acordo com os investigadores: a Pizzaria Tatyara Ltda repassou R$ 45.330 e o Restaurante e Pizzaria Rio Cap Ltda enviou R$ 26.920. O MP suspeita que Adriano tenha sido sócio oculto dos dois restaurantes. Formalmente, o ex-policial não aparece no quadro societário das empresas. Quem aparece é a sua mãe, Raimunda.

Hoje sabemos que a investigação do caso “Queiroz” foi atrasada propositalmente pelo Delegado da Polícia Federal Alexandre Ramage, que comandou a Operação “Intocáveis”. Ramage teria avisado Flávio Bolsonaro da deflagração da operação que chegaria a Queiroz. Após o serviço prestado, Ramage subiu na vida, virou o delegado que passou a cuidar da segurança pessoal de Bolsonaro, depois foi levado para a assessoria da Secretaria de Governo, saltando de lá para o comando da Abin e, finalmente, foi o escolhido de Jair Bolsonaro para intervir na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, em uma clara tentativa de estancar a investigação de diversos crimes, entre eles, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, bem como a morte de Adriano de Nóbrega. Sérgio Moro comandou o ministério da Justiça por 14 meses de absoluto silêncio sobre o caso, até ser demovido do cargo, alegadamente por não aceitar a interferência de Bolsonaro na PF.

Flávio Bolsonaro, cujo patrimônio cresceu 397% em 12 anos, atua ou atuou, portanto, como uma engrenagem na circulação do capital criminal das milícias e desnuda a relação do poder político com esses grupos paramilitares. Além de Adriano e Queiroz, Flávio Bolsonaro teve relações com os irmãos gêmeos Alan e Alex Rodrigues Oliveira – policiais que participaram, até serem presos, das atividades da campanha de Flávio ao Senado na Zona Oeste.  Em agosto de 2018 desatou-se a operação “Quarto Elemento”, na qual foi descrito um esquema incrustado na Polícia Civil carioca, a partir das delegacias de Bangu e posteriormente Santa Cruz, ambas na Zona Oeste, responsável por diversos crimes, como corrupção, extorsão, desvio de mercadorias apreendidas (principalmente cigarros), entre outros.

Neste esquema, do qual participaram mais de 40 policiais, os irmãos Alan e Alex figuram como sendo de um escalão hierárquico menos importante. Na estrutura da organização, eles são identificados, pelos promotores, como “pagadores” regulares de propina aos policiais e seus prepostos, conforme apurou a revista Fórum, na página 23 da denúncia. Os irmãos participaram de acertos periódicos de dinheiro, em um caso aparentemente pouco comum, em que policiais (militares) pagavam a policiais (civis), conforme o MPE.

 Os dois policiais são irmãos de Valdenice de Oliveira, tesoureira do PSL e assessora da liderança do partido na Alerj. Curioso é que mesmo após vazar uma foto no aniversário dos gêmeos com Flávio Bolsonaro, a relação não foi investigada pela imprensa ao longo das eleições, e a imagem do aniversário voltou somente ao noticiário nas páginas da revista Época de 29 de janeiro de 2019. Mais uma clara sinalização do silenciamento da grande mídia e de sua pactuação com o bolsonarismo. Parte da mídia que hoje sofre com os devaneios autoritários e bonapartistas de Bolsonaro finge que não ajudou a parir o monstro. 

A famílicia deu uma grande demonstração de força quando a intervenção de Jair Bolsonaro na Polícia Federal do Rio de Janeiro foi bem sucedida, evidenciando o controle de  parte significativa dessa corporação no estado. Flávio está visivelmente em uma posição mais confortável após longo silêncio desde 06 de dezembro de 2018, quando se tornou público o esquema da “rachadinha”. Hoje ele elogia publicamente o seu fiel escudeiro Fabrício de Queiroz, como quando respondeu ao governador Wilson Witzel: “Você ficava ligando para o Queiroz para correr atrás de mim na campanha. Sabia que o Queiroz estava ao meu lado. Um cara correto, trabalhador dando o sangue por aquilo que acredita”. 

Parafraseando a canção, essa familícia continua muito unida e também muito ouriçada. 

A prisão de Queiroz 

Primeiramente, nota-se que a prisão desse elemento chave ocorre no momento de maior fragilidade do bolsonarismo, já que na mesma semana a Família sofre um grande revés com o posicionamento do STF no caso do inquérito sobre as Fake News, que tende a desnudar o Gabinete do ódio e deixar exposta sua base de sustentação empresarial. 

Como estamos em uma conjuntura de guerra franca aberta entre instituições, é importante identificar o fluxo da operação que decretou a prisão preventiva de Queiroz, que é um desdobramento das investigações do MP/RJ sobre o esquema das rachadinhas. A acusação: mesmo foragido, Queiroz atuava atrapalhando a investigação, coagindo testemunhas a não deporem sobre o caso – entre elas, a ex-mulher de Adriano da Nobrega. Queiroz, em seu auto-isolamento na casa de Wasseff, estaria atuando por intermédio de um funcionário dos recursos humanos da ALERJ, para alterar os registros de controle e presença de funcionários no gabinete de Flávio Bolsonaro. Pesa ainda contra o amigo do peito de Jair Bolsonaro conversas e áudios no whatsapp, onde ele aparece mediando conflitos milicianos em Rio das Pedras, no Rio de Janeiro. 

Mas a acusação mais grave e comprovada a partir da prisão do celular da esposa de Queiroz, Márcia Aguiar, é que os advogados Frederick Wassef (que se autodenomina o “zero um” da família) e Luis Botto Maia mediaram encontros entre a família de Queiroz com a de Adriano da Nóbrega; e se encontraram abundantes  provas de que os dois foragidos trocavam informações e desenhavam estratégias de defesa e narrativas sobre o caso da rachadinha. O último encontro teria acontecido na casa da mãe de Adriano na cidade de Ataulfo (MG), em dezembro de 2019, dois meses antes da execução de Adriano na Bahia. 

Na manhã do dia 18 de junho, é decretada, no Rio, a prisão preventiva de Márcia Aguiar, que está foragida. A GAECO-RJ chegou a um escritório de advocacia em Bento Ribeiro, bairro do subúrbio do Rio, apreendeu computadores e documentos. Curiosamente, o escritório está na mesma rua de um imóvel do presidente Jair Bolsonaro. A polícia apreendeu também documentos e computadores do advogado Botto Maia. Em São Paulo, a GAECO efetiva a prisão de Queiroz e a apreensão de dois celulares no sítio em Atibaia, propriedade metamorfoseada em escritório de fachada de Wassef. Além disso, sabe-se que Wassef e Botto Maia se encontraram presencialmente com Queiroz na véspera da reunião entre as famílias de Queiroz e Adriano.

A prisão de Queiroz complicou ainda mais a rede bolsonarista e seus tentáculos milicianos e dois advogados aparecem no radar: além de Wassef, Luís Botto Maia, ex-advogado do Gabinete de Flávio Bolsonaro e comparsa de Queiroz. Maia foi em 2019 chefe de gabinete do Deputado Estadual Dr. Serginho (PSL), líder da bancada deste partido na ALERJ. Atualmente, Botto Maia está nomeado no gabinete do deputado Renato Zaca (PSL). Tudo indica, portanto, que Flávio Bolsonaro foi para Brasília deixando na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro tentáculos bem articulados. Além de Botto Maia, sua mãe, Rogéria Bolsonaro, está nomeada no gabinete de Anderson Moraes (PSL). Este advogado foi quem fez as prestações de contas das campanhas de Flávio Bolsonaro e da chapa PSL-RJ, e é também o advogado de Flávio no caso da rachadinha.

O castelo de areia da familícia começou a desmoronar a partir das delações de um ex-aliado: Paulo Marinho (PSDB) foi um dos coordenadores da campanha de Jair, era amigo íntimo de Bebbiano e ambos possuíam um desafeto em comum: Frederick Wassef. Foi Marinho quem delatou que um agente da PF-RJ avisou Flávio da operação que culminaria na investigação da rachadinha afetando Queiroz e sua filha Natália que “trabalhou” oito anos no gabinete de Jair e repassou 80% do seu salário para o presidente. Sabemos, também a partir da delação de Marinho, que a investigação do caso Queiroz foi estancada pela PF para não atrapalhar as eleições. Marinho é suplente de Flávio à vaga de senador pelo RJ, constituindo outro interesse político, para além das desavenças com a familícia e Wassef, que se acentuaram após morte de Bebbiano, em derrubar Flávio Bolsonaro.

Wassef é um personagem à parte: apelidado de forma sarcástica de “Anjo” por ter participado no passado de seitas satânicas, é uma espécie de fiel escudeiro da famílicia, possuindo ótimo trânsito com os filhos do presidente, inclusive presenteou Eduardo Bolsonaro com um carro de luxo avaliado em 80 mil reais. Como parte da defesa de Flávio no processo da rachadinha, ele ordenou investigação paralela de todos os gabinetes na ALERJ, constatando que, além de Flávio, outros mandatos realizavam tal prática, provendo matéria para a estratégia de defesa de Flávio, que se baseou em afirmar que rachadinha é praticamente uma praxe dentro da ALERJ. 

É interessante destacar que Wassef afirmou, em entrevista à revista Época, possuir clientes como o empresário Flávio Rocha, dono da Riachuelo (nome defendido por ele, antes da campanha eleitoral, para vice na chapa de Jair Bolsonaro), e David Feffer, do grupo Suzano, que negam. Na mesma entrevista, Wassef dizia estar apresentando Bolsonaro ao “PIB brasileiro”. Seria esse um dos motivos do desgaste entre Wassef com Bebbiano e Marinho. É muito simbólico e revelador também que na sala da propriedade em Atibaia foi encontrado um cartaz em defesa do AI-5 e bonecos do mafioso Tony Montano, do filme Scarface, numa espécie de Feng Shui fascista. Isso, junto com o fato de que   Wassef é também conhecido pelos seus discursos “anticomunistas” e um apreciador das ideias do guru Olavo de Carvalho, mostra que para além das atividades laborais um tanto quanto incomuns, há uma identidade ideológica  coesa no grupo.

Outro elo ideológico que liga a familícia a Wassef é Ronnie Lessa, frequentador assíduo de páginas fascistas e “anti comunistas” nas redes sociais, e que 48 horas antes do assassinato de Marielle buscou na internet um episódio histórico do nazismo conhecido como a “Noite das facas longas” onde Hitler inicia o extermínio a adversários políticos. A esposa de Lessa é acusada de participar da execução de Marielle e Anderson e junto com seu irmão teriam ocultados provas e armas do crime utilizados por Lessa.

Vale atentar, por fim, que o jornal O Globo desenterra o caso de perseguição política de Flávio Bolsonaro ao professor Pedro Mara, quatro dias antes da operação contra o Queiroz. Queiroz teria filmado o professor em audiência pública na Câmara Municipal de Niterói, e sabemos hoje que Mara esteve sob os olhos e levantamentos de Ronnie Lessa.

O que vem adiante

A prisão de Queiroz traz grande vulnerabilidade para o núcleo duro bolsonarista, pois, para além da famílicia, dois importantes aliados/advogados, um com atuação militante ativa no PSL, estão involucrados no processo. Fica cada vez mais evidente que Queiroz não é um mero laranja: é um agente orgânico e ativo na relação bolsonarista/miliciana. Essa prisão pode destrinchar a hierarquia e a teia de relações do escritório do crime com a famílicia. Seria Queiroz o chefe de Adriano? Quem pagou as contas de Queiroz? Quem mandou matar Marielle e por quê? Como Bolsonaro tentar se desenvencilhar do advogado da família? Wassef é uma peça descartável? O que mais esconde Queiroz? Ainda há muitas perguntas, e as respostas podem alterar abruptamente a conjuntura e os rumos do país. Vale recordar a frase de Barão de Itararé: “No Brasil tudo pode acontecer, inclusive nada”.

 

PLANTÃO DA QUARENTENA

Assista ao debate sobre a prisão de Queiroz, com Danilo Georges, José Claudio Souza Alves e Vic Ferraro, transmitido em 19/06/2020