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BRASIL

As lutas sociais no Brasil da pandemia: sinais de reorganização?

Marcelo Badaró Mattos, de Niterói, RJ
Mídia Ninja

Entregador participa de protesto na Av. Paulista, no dia 07 de junho

“Fascismo não é uma catástrofe natural. É preciso tratar de verdades práticas, produzir conhecimento sobre como evitar uma catástrofe (inclusive a natural) e mostrar que se pode resistir mesmo nas condições mais terríveis.”
Bertolt Brecht”

Nas análises que desenvolvemos no interior dos partidos socialistas e dos setores mais combativos do movimento sindical, em geral usamos a expressão “reorganização da classe” para nos referirmos a processos em que setores expressivos da classe trabalhadora organizada constroem novas organizações políticas e sindicais, reelaboram seus programas de intervenção transformadora e impulsionam movimentos de massa a partir dessas organizações e programas. O exemplo mais próximo é o dos anos finais da ditadura militar, quando o ressurgimento dos movimentos grevistas e as lutas de outros movimentos sociais se expressou na criação do PT (1979/80), CUT (1983) e MST (1984), como também deu origem a mobilizações de massa no plano político (como a campanha das “Diretas Já!”, a campanha pela Participação Popular na Constituinte e ainda a campanha eleitoral de Lula à presidência, em 1989) e sindical (como a onda grevista dos anos 1980, incluindo quatro greves gerais). Ainda que de forma difusa, o programa político elaborado pelo PT naqueles anos (conhecido como Programa Democrático Popular), foi forjado no interior dessas lutas e, ao mesmo tempo, orientou sua direção política.

Após o refluxo das lutas, sob o impacto da ofensiva burguesa neoliberal, anos 1990, e com a chegada ao governo federal do PT, na década de 2000, à qual se seguiu cerca de uma década de relativa “paz social” – como reflexo da estratégia de conciliação de classes e do apoio de muitas daquelas organizações e movimentos ao governo – começamos a perceber que um novo processo de reorganização era necessário, para superar a estratégia da conciliação e romper a barreira do atrelamento dos movimentos ao governo. No entanto, reorganizar em meio ao refluxo sempre foi mais difícil.

Este texto pretende levantar algumas questões em torno da possibilidade de, na expectativa de atuarmos para uma nova reorganização, estarmos apontando nosso olhar para o lugar errado, tendo prestado pouca atenção quando os sinais de um processo em curso emergiram, a partir de Junho de 2013. Objetiva-se também alertar para que não deixemos de perceber a potência no sentido da reorganização da classe que já pulsa em meio à crise sanitária, ambiental, econômica, social e política que hoje atravessamos.

A reorganização da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora

Muitos dos debates atuais sobre a reorganização da esquerda, partem dos deslocamentos ou possíveis movimentações dos grupos políticos organizados ou militantes representativos – para fora do PT, entre as correntes políticas socialistas, entre as centrais sindicais. O resultado desse tipo de olhar é uma percepção muito limitada dos processos, pois restringe nossa avaliação ao plano superestrutural da representação política e amarra nossas expectativas a uma geração de correntes e dirigentes políticos, a maioria dos quais já foi absorvido pelo processo de burocratização das últimas décadas, perdendo de fato a legitimidade e a capacidade de movimentar as bases sociais de onde emergiram há 30 ou 40 anos atrás. Por outro lado, nos afastam do caminho mais complexo e totalizante de análise, que parte da relação entre a reorganização política (ou sindical) e a reorganização da classe, no plano das suas condições objetivas e subjetivas de trabalho e vida, de produção e reprodução da vida social nas relações sociais capitalistas.

Conforme argumentou-se no início deste texto, se nossa referência de processo de reorganização são os anos 1980, é preciso lembrar que o surgimento do PT, da CUT, do MST, etc., foi um primeiro resultado, ao mesmo tempo que impulsionou ainda mais, os movimentos sociais da classe trabalhadora, que constituíam seu ponto de origem. Ou seja, embora as correntes políticas de esquerda – debilitadas por mais de uma década de intensa repressão ditatorial – estivessem imersas desde o primeiro momento no processo de lutas sociais que emergiu naquele período, não foi uma reorganização entre essas correntes que possibilitou a emergência das lutas, mas sim a intensidade das lutas sociais que permitiu uma reorganização da classe trabalhadora no plano político, sindical e dos movimentos sociais em geral. Se concordamos com essa análise do passado brasileiro recente, o papel das direções não diminui, mas é tão mais efetivo quanto, por menores que fossem suas forças no início do processo, tenham sabido se inserir nas lutas latentes e contribuído para potencializá-las, elevando o impacto político-social da onda de mobilizações que se sucedeu.

Foram muitos movimentos que confluíram na onda de mobilizações da década de 1980. Fosse possível escolher apenas um, o polo mais dinâmico e referência para os demais foi o sindicalismo e as greves foram seu indicador mais preciso. Seguindo os dados do DIEESE, cujos levantamentos desde 1983 conformam a única série histórica confiável para greves no país, a década de 1980 apresentou uma curva ascendente de número de greves, cujo pico se deu em 1989, com quase 2.000 greves registradas, seguiu-se um declínio no número de paralisações nas duas décadas seguintes, com seu ponto mais baixo (na casa de 200 greves anuais), no primeiro mandato de Lula. Houve uma progressiva elevação desses patamares nos primeiros anos da década de 2010 e, repentinamente, um salto, com a ultrapassagem das 2.000 greves anuais, no período de 2013 a 2016 (com um declínio a partir de 2017). (1) Embora a quantidade de greves, como indicador, precise ser acompanhada de outros dados (duração, abrangência, pauta, resultados, etc.), o salto de 2013 merece uma avaliação mais precisa.

Não caberia aqui uma avaliação aprofundada do complexo e contraditório movimento de massas de Junho de 2013 no Brasil. Retomo apenas alguns elementos da avaliação que tenho desenvolvido em outros textos. (2) Disputadas no momento em que ocorreram e com sua memória igualmente disputada nos anos seguintes por esquerda e direita, em suas diferentes frações; em parte execradas, em parte exaltadas, pelos meios de comunicação; as Jornadas de Junho tiveram uma pauta predominantemente progressiva: resistência ao reajuste das tarifas de transporte público, defesa de mais gastos públicos com saúde e educação (em detrimento do desperdício de recursos públicos para os “megaeventos”), reação à violência policial, denúncia da manipulação dos monopólios empresariais de comunicação, crescimento das lutas pela moradia, para ficarmos nas principais. Sim, também houve quem aproveitasse as mobilizações para introduzir pautas como autonomia do Ministério Público e, claro, um difuso “combate à corrupção” (cujo sentido variava da justa denúncia das obras superfaturadas das novas “arenas” futebolísticas para a Copa a uma narrativa que associava a corrupção exclusivamente ao PT, como responsável primeiro e único pela apropriação do Estado por interesses escusos). Mas o sentido social predominante, insisto, e mesmo o perfil dos manifestantes segundo as pesquisas realizadas nas ruas, era da classe trabalhadora. Os setores da classe mais jovens, relativamente escolarizados e de baixos salários, predominavam entre os manifestantes. (3)

O impacto de Junho sobre os movimentos sindicais pode ser sentido não apenas pelo salto brusco na curva de greves (de 879 em 2012, para 2.057 em 2013), sempre segundo o DIEESE, mas também na sua forma: greves combinadas com manifestações massivas nas ruas; como na greve dos trabalhadores da educação do Rio de Janeiro, entre agosto e outubro daquele ano, ou na greve dos garis, na mesma cidade, durante o carnaval do ano seguinte. Muitas delas à revelia, ou mesmo contra as direções sindicais. Greves, em sua maioria com pautas defensivas, contra a retirada de direitos nas categorias mais formalizadas, e mesmo pelo mais básico (pagamento de salários atrasados e indenizações nos despedimentos) entre os mais precarizados. Em número de greves, o funcionalismo público esteve mais ativo, principalmente na educação e saúde (as áreas da reprodução social, de força de trabalho majoritariamente feminina) – em grande medida respaldado pelas bandeiras de Junho, que defendiam saúde e educação. E no setor privado, uma queda no número de greves de categorias tradicionais (como os metalúrgicos, referências das lutas dos anos 1980) foi acompanhada do crescimento de paralizações entre os terceirizados.

Mas, não foram só as greves que, a partir de 2013, refletiram uma ascensão das lutas da classe trabalhadora. Os movimentos de mulheres, são um outro exemplo, com destaque para a “Primavera Feminista” de 2016, se enfrentando com o governo Temer, e chegando ao “Ele Não!”, que contribuiu decisivamente para que Bolsonaro não fosse vitorioso já no primeiro turno das eleições de 2018. Formatos de mobilização, passando pelas redes sociais; características de frente entre diferentes movimentos e organizações políticas e método de lutas centrado nas manifestações de rua, foram marcas dessas mobilizações. Como de outras no período. Lembremos das ocupações de escolas, em ondas, desde 2015, construindo uma nova geração de ativistas estudantis, muitos hoje nas Universidades ou em outros movimentos sociais.

O movimento de mulheres continuou e continua sendo a ponta de lança de muitas lutas até hoje. Estudantes impulsionaram, em articulação com trabalhadoras e trabalhadores da educação, o primeiro grande movimento de resistência ao governo de Bolsonaro, com o “Tsunami da Educação”, cujo ápice foi o 15M de 2019. Como impulso geral, entretanto, a onda de mobilizações desencadeada por Junho, com um sentido de classe progressista, de representação da classe trabalhadora, foi contida. No plano sindical, seu canto dos cisnes foi a greve geral de abril de 2017. Em grande medida em decorrência da contenção de seus desdobramentos pelas maiores centrais sindicais, não foi possível repeti-la, no período seguinte. Do ponto de vista dos seus reflexos no plano das organizações políticas e dos movimentos sociais, aquela onda trouxe algum impacto, como o crescimento da legitimidade política do MTST junto a outros movimentos e setores da esquerda e alguns deslocamentos aqui e ali nas correntes políticas socialistas. Mas, nada nem de longe comparável à reorganização dos anos 1980, ou às expectativas que vimos alimentando desde a virada do século.

Podemos atribuir esse limite, em parte, ao formato mais fragmentário e heterogêneo dessas lutas, mas não se pode esquecer a limitação de fato das organizações da esquerda socialista que, ao contrário do que ocorria nos movimentos de fins dos anos 1970 e início dos anos 1980, não estavam desde o início no interior das lutas que surgiam e muitas vezes questionaram sua legitimidade, apostando em um movimento dirigido por setores organizados da classe – os sindicatos, principalmente, como acontecia no passado. É fato que várias organizações e militantes políticos organizados fizeram trabalho político em meio aos movimentos que surgiram do impulso de Junho, assim como outros despertaram para a luta naquelas Jornadas e passaram a se organizar em coletivos políticos a partir de então. Mas, a unificação de todas aquelas lutas em torno a um programa político comum e sob a direção de novas organizações, resultantes dos próprios movimentos, não ocorreu.

Com certeza, porém, a principal razão para que isso não tenha ocorrido, está do lado de lá da luta de classes. Porque a classe dominante entendeu o recado de Junho a seu modo e reorganizou suas forças para manter o controle do processo político e redirecioná-lo logo a seguir. Neste sentido, podemos falar de uma reorganização no campo burguês. A avaliação, a partir das Jornadas de Junho, de que o PT no governo já não conseguia entregar o que garantira nos anos anteriores – a paz social – fez soar o primeiro apito dessa reorganização burguesa. Os sinais da crise econômica, a partir do ano seguinte, levaram mais longe esse processo, que envolveu o fomento burguês, político e financeiro, de algumas organizações antigas e outras recém-criadas da chamada “Nova Direita”. (4)

Não havendo espaço aqui para análises mais aprofundadas desse processo, cabe apenas assinalar que foi no bojo dessa reorganização à direita que se gestou o golpe de 2016 e o aprofundamento dos ataques aos direitos da classe trabalhadora representado pelas políticas de austeridade, ensaiadas por Dilma, mas levadas a um nível muito mais duro e fundo por Temer. Dos movimentos de direita que foram às ruas para respaldar o golpe, e de suas bases sociais fundamentalmente centradas na pequena e média burguesia e nos assalariados médios, surgiu o fermento que alimentou o crescimento do neofascismo à brasileira e permitiu a um obscuro ex-capitão, parlamentar havia já três décadas, apresentar-se como a novidade política que encarnava o espírito contrarrevolucionário daqueles movimentos.

A tragédia da pandemia abre covas, mas também pode abrir caminhos

Para quem tinha alguma dúvida sobre o potencial social destrutivo do governo Bolsonaro, seu boicote planejado, com a mobilização das bases mais radicalizadas, às políticas de isolamento social que poderiam conter a propagação da pandemia de covid19 no país, levando a um resultado genocida, já deveria ser o suficiente para dissipar qualquer hesitação na análise. O conteúdo e a forma da reunião ministerial de 22 abril, tornada pública a partir de investigações no STF, dão ainda mais razão às avaliações que identificaram o governo como neofascista. Preocupados em proteger as grandes empresas, passar a boiada da desregulamentação ambiental, detonar os servidores públicos, exaltar o que chamam de “segurança pública” e atacar os demais poderes, em meio ao horror das mortes aos milhares por conta da doença, em situação social agravada pela elevação do desemprego e da pobreza extrema, os ministros civis e militares mostraram que, a depender deles, as vidas de centenas de milhares, senão milhões, de brasileiras e brasileiros continuarão entregues à própria sorte, no centro da linha de fogo.

É em meio a esse quadro que uma movimentação intensa de organizações e movimentos se apresenta para resistir, primeiramente em defesa da sobrevivência das camadas mais pauperizadas e precarizadas da classe trabalhadora. O sentido dessas iniciativas pode ser captado a partir de palavras de ordem como “tudo o que ‘nóis’ têm é ‘nóis’”, ou “Nós por nós”. O primeiro tipo de iniciativa é o de solidariedade social, no qual se movimenta a participação solidária para a garantia de cestas básicas, material de higiene e máscaras, até à constituição de espaços e equipes autogeridas de educação sanitária, isolamento social e tratamento de doentes. Ativistas oriundos das tradicionais organizações territoriais de moradores de favelas e bairros periféricos, mas também de novas formas organizativas e movimentos, de hip-hop e cultura periférica, de comunicação popular, de educação popular, de mulheres, de negros e negras, entre outros, estiveram à frente, desde o primeiro momento, de esforços para arrecadar recursos e mercadorias a fim de suprir as necessidades emergenciais de milhões de famílias em situação de extrema vulnerabilidade social. Afinal, mesmo tendo contemplado aproximadamente 60 milhões de requerentes, o valor de apenas R$ 600,00 e as limitações burocráticas para seu recebimento, tornam o auxílio emergencial pago pelo governo federal, e os auxílios eventualmente pagos pelos governos estaduais e municipais, ainda que fundamentais, insuficientes para prover a subsistência num momento de proporções tão críticas.

Para termos uma ideia das dimensões dessas iniciativas, podemos tomar alguns exemplos. O G10 das favelas, reunindo representações de favelas do Sudeste e Nordeste do país, se apresenta como “um bloco de Líderes e Empreendedores de Impacto Social das Favelas que está unindo forças em prol do desenvolvimento econômico e protagonismo das Comunidades”. Suas iniciativas se tornaram mais conhecidas a partir da experiência de Paraisópolis (SP), em que para além da distribuição de alimentos e material de limpeza foram ocupados espaços escolares para isolamento e tratamento de doentes, contratadas equipes de saúde e serviços de ambulâncias. As iniciativas de solidariedade social hospedadas na sua página (“esolidar”) na internet já arrecadaram mais de R$ 760 mil. Movimentos sociais do campo e da cidade, com implantação nacional e mais antiga – com destaque para o MST (que já doou centenas de toneladas de alimentos de seus assentamentos), o MTST, e CMP, em alguns momentos secundados por sindicatos – se uniram a lideranças e movimentos comunitários para mover iniciativas de solidariedade social de sentido semelhante. As duas frentes impulsionadas por esses e outros movimentos, Frente Brasil Popular e Frente Povo sem Medo, uniram esforços com a plataforma “Vamos Precisar de Todo Mundo”, para articular esforços solidários nacionalmente. Na cidade do Rio de Janeiro, uma iniciativa impulsionada pelo PSOL carioca e ampliada para outras entidades e movimentos, abriga na página “Onde Tem Solidariedade”, links para mais de uma centena de iniciativas de arrecadação de doações, bem como coletivos solidários de advogados e profissionais de saúde. E cabe mencionar a ação da Central Única das Favelas (CUFA) que, com apoio da parceria para divulgação com o grupo Globo e contribuições de grandes empresas, além de doações individuais, já arrecadou mais de R$ 11 milhões para o projeto “Mães da Favela” (que já distribuiu quase 100 mil vales-compras de R$ 120,00).

Também são muitas as iniciativas auto-organizadas, em alguns momentos com suporte de universidades e instituto de pesquisa públicos, com objetivos de criar “mapeamentos”/ “observatórios” do avanço da pandemia pelos bairros periféricos e favelas, que denunciam a subnotificação dos dados oficiais e cobram a divulgação de estatísticas pelos governos que permitam precisar o local de moradia e o perfil racial dos atingidos. (5)

Em várias cidades, são essas iniciativas e organizações envolvidas no esforço de preservar vidas através das ações de solidariedade em meio à pandemia que estão protagonizando também as ações de rua com o mote de “Vidas Negras Importam”, como a que teve lugar em frente à sede do governo do estado do Rio de Janeiro, em 31 de maio. Mais que um impacto direto da onda de mobilizações multitudinárias desencadeada nos Estados Unidos após o assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial branco na cidade de Minneapolis, impacto que por certo existe, as manifestações que surgem por aqui têm uma motivação própria muito forte e uma longa história de lutas contra a violência policial por trás. Afinal, só na cidade do Rio de Janeiro, a polícia mata mais a cada ano que em todo o território nacional estadunidense. E as incursões policiais em favelas não apenas continuaram, mas se intensificaram durante a pandemia, levando à morte de muitas pessoas, entre elas crianças no interior de suas casas, como o menino João Pedro, em São Gonçalo-RJ, ou a episódios em que iniciativas de doações de cestas básicas nas comunidades foram interrompidas pelos tiros da polícia.

Um papel central na denúncia do genocídio da juventude negra e periférica, assim como do encarceramento racializado em massa, está sendo desempenhado pela Coalizão Negra por Direitos. Formada em 2019, tendo por primeira pauta o combate ao projeto de lei “anticrime” do então ministro da justiça Sérgio Moro, cujo sentido é o do incremento desses dois flagelos que reforçam o racismo institucional no país, a Coalizão tem desempenhado papel importante durante a pandemia, denunciando a face mortal do racismo estrutural à brasileira, expressa no percentual relativamente superior de mortes decorrentes da covid19 entre a população negra. Reunindo mais de 130 entidades do movimento negro em todo o país, ela expressa uma retomada da ação organizada a partir da sociedade civil, após um período, durante os governos do PT, em que as demandas do movimento negro foram canalizadas, principalmente, através da institucionalidade na sociedade política.

Não poderíamos esquecer o movimento de mulheres que, como mencionado, nos últimos anos vem ocupando, internacionalmente, o papel de vanguarda das lutas sociais, não apenas através das pautas feministas fundamentais que representa, como transversalmente a movimentos de cunho sindical, estudantil, ambientalista, entre outros. No dia 01 de maio, quando movimentos feministas de diversos países lançaram o documento “Acima as que lutam! Manifesto transfronteiriço para sair juntas da pandemia e mudar o sistema”, em Brasília um grupo de enfermeiras protagonizou, organizadas por seu sindicato, o primeiro ato de rua de impacto nacional, carregado de simbologia, denunciando a política genocida do governo federal e enfrentando-se com integrantes das milícias fascistas de apoiadores de Bolsonaro. Mulheres, portanto, estão na linha de frente do combate à pandemia e da luta social, até porque uma das características da crise sanitária é evidenciar a importância do trabalho de cuidado, exercido de forma sub-remunerada no mercado de trabalho, majoritariamente, por mulheres e, de forma não-remunerada, nos lares, pelas mesmas mulheres. (6)

A iniciativa de ir às ruas para defender a democracia e denunciar os intentos golpistas de Bolsonaro, assim como o sentido fascista de seu chamado à mobilização de sua base social mais radicalizada, para sustentar as ameaças de extermínio dos opositores políticos e as políticas concretas de genocídio social, coube, inicialmente, a coletivos antifascistas de torcidas organizadas de times de futebol, particularmente em São Paulo, mas não só. Sua composição predominantemente negra e periférica e a simbologia da bandeira rubro-negra antifa foram o bastante para despertar a parcialidade da violência policial repressiva, conforme se constatou no domingo, 31 de maio, na avenida Paulista. Porém, com sua disposição de luta, motivaram outros setores a irem às ruas uma semana depois, em articulação puxada pelas torcidas antifas e pela Frente Povo Sem Medo, no Larga da Batata em São Paulo, com atos similares em outros estados. Foi naquele ato de São Paulo que ganhou maior notoriedade também a articulação dos Entregadores Antifascistas – setor que encarna melhor que qualquer outro a combinação entre precariedade no trabalho e a noção de “serviço essencial” durante a pandemia –, tornando mais visível a organização e as mobilizações grevistas dessa parcela precarizada da classe trabalhadora. Desta e de outras articulações de entregadores surgiu uma proposta de greve nacional de entregadores por aplicativos, marcada para 01 de julho.

A direção não virá de fora

A efervescência de mobilizações sociais imposta pelas trágicas condições da crise sanitária, econômica e política que atravessamos, com certeza não seria possível se já não existisse uma história relativamente longa de processos de reorganização “por baixo”, de diferentes frações da classe trabalhadora. Processos derivados da dura experiência da classe no enfrentamento das formas indissociáveis de exploração, opressão e alienação impostas pela dinâmica social capitalista. Por certo que algo desse impulso ainda ecoa o “espírito de Junho”, com muitos de seus protagonistas, predominantemente jovens, tendo se formado politicamente a partir da conjuntura aberta pelas Jornadas.

Indicar o potencial dessas iniciativas, entretanto, não pode ser confundido com afirmar que vivemos uma nova etapa na reorganização da classe trabalhadora e que estão abertas as condições para uma reversão do quadro extremamente desfavorável para a classe na correlação de forças vivida por aqui (e no mundo) nos últimos anos. Épocas trágicas geram luto, que pode se converter em luta, mas também em desesperança. O próprio impulso renovador e mobilizador de Junho foi contido e a ele se sucedeu, justamente, o vetor reacionário que domina o panorama atual.

A pulsão autocrática da burguesia, que deu espaço para a ascensão do bolsonarismo, tende a manter a elevada aposta na violência coercitiva do aparelho de Estado, para preventivamente conter no nascedouro as lutas sociais que mal colocaram a cabeça fora d’água, porque “não podem respirar”. Mas, a dominação de classes joga sempre com duas mãos e a carta da construção ideológica, alicerçando consensos em torno do programa do capital, é jogada com força sobre a mesa. A descarada propaganda empresarial de quadros como “Solidariedade S.A.”, transmitido no Jornal Nacional, rouba o significado de classe da solidariedade, ao apresentar pequenas doações de grandes conglomerados empresariais como sinal de preocupação com a vida. Os mesmos conglomerados que sonegam impostos, devem à previdência, demitiram em massa durante a pandemia e pressionam o Estado para retirar ainda mais direitos de trabalhadores e trabalhadoras. Os próprios movimentos do “andar de baixo”, premidos pelas pressões extremas da vulnerabilidade social, são assediados pela “responsabilidade social” de setores da grande burguesia, que associam seus financiamentos, mesmo que das formas mais sutis, a uma limitação do horizonte reivindicativo ao terreno movediço do empreendedorismo social.

A importância da presença ativa de organizações políticas da esquerda socialista, que trabalhem pela unificação das lutas, com um horizonte classista de transformação social, é cada vez maior. No entanto, há justificadas razões para que diversos dentre esses movimentos da classe trabalhadora que aqui rapidamente elencamos, desconfiem das organizações políticas de esquerda. Atuando em muitos momentos através de uma estratégia quase caricatural, que consiste em “trazer de fora” a linha política correta e a direção “consciente” das lutas, tais organizações no mais das vezes são vistas como movidas exclusivamente por interesses eleitoreiros e disputas aparelhistas. Cabe a nós, dessa esquerda socialista, nos provarmos na ação, ombro a ombro com esses movimentos: inserindo-nos sem artificialismos e desde baixo em suas lutas; respeitando as especificidades de cada pauta e o lugar de cada protagonista, e contribuindo, assim, para que um programa comum de intervenção política seja forjado desde a prática social, cimentando a unidade da classe. Uma unidade mais que nunca necessária para derrotar Bolsonaro, retirando-o da Presidência, objetivo que se transforma, cada vez mais, em um programa mínimo, imperativo, de defesa da vida contra uma tragédia que nada tem de natural, mas é fruto do projeto neofascista no governo e da lógica destrutiva do capital nessa sua triste periferia dependente.

 

NOTAS

1 – Dieese, “Balanço das greves de 2018”, Estudos & Pesquisas, n. 89, abr. 2019, <https://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2018/estPesq89balancoGreves2018.pdf>.

2 – Ver especialmente Marcelo Badaró Mattos, Sete notas introdutórias como contribuição ao debate da esquerda socialista no Brasil, Rio de Janeiro, Consequência, 2017. E Marcelo Badaró Mattos, Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, São Paulo, Usina, 2020 (no prelo).

3 – Ruy Braga, “Cenedic: uma sociologia à altura de Junho”, Blog da Boitempo, 26 maio 2014, <https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/26/cenedic-uma-sociologia-a-altura-de-junho/>

4 – Ver, por exemplo, Flavio H. C. Casimiro, A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo, São Paulo, Expressão Popular, 2018.

5 – Ver, por exemplo a iniciativa “Corona nas Periferias”, https://www.coronanasperiferias.com.br/; https://datalabe.org/coronavirus-na-mare/; e o Dicionário das Favelas Marielle Franco https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Not%C3%ADcias_sobre_Coronav%C3%ADrus_nas_Favelas

6 – Sobre a pandemia, pela ótica do feminismo marxista e da Teoria da Reprodução Social, ver Tithi Bhattacharya, A teoria da reprodução social e por que precisamos entender a crise do coronavírus, https://esquerdaonline.com.br/2020/04/03/tithi-bathacharya-a-teoria-da-reproducao-social-e-porque-precisamos-entender-a-crise-do-coronavirus/