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BRASIL

Trabalho e plataformas digitais: precarização, controle, formas de luta e resistência

Marcelo Sitcovsky*, de João Pessoa, PB
Reprodução

Cena da série Invisibles

Escrevo essas rápidas linhas para comentar um documentário que assisti após a indicação do professor de Serviço Social, na Universidade Federal de Santa Catarina, Ricardo Lara, pesquisador sobre trabalho. O documentário está disponível no site DIGI LABOR e acessível no Youtube. No referido site é possível conhecer vários outros materiais que tratam do tema.

A série documental francesa Invisibles, produzida em 2020, contou com a coordenação editorial de Antonio Casilli, professor de sociologia na Telecom Paris (Paris Grande École of Telecommunications, parte do Instituto Politécnico de Paris) e pesquisador no Instituto Interdisciplinar de Inovação (i3), um instituto do Centro Nacional de Pesquisa Científica francês. A produção francesa retrata os trabalhadores das plataformas, inclusive os que alimentam a inteligência artificial e os moderadores de conteúdo. No último episódio da série são apresentadas experiências de lutas e organização em relação ao trabalho digital. A série está dividida em quatro episódios: “Aqui está o que implica o UberEats”, “Isso impulsiona o algoritmo do Google”, “No inferno dos moderadores do Facebook” e “Quando os trabalhadores do clique recusam a exploração” 

Uma primeira questão, recomendo que assistam de uma só vez, são capítulos curtos e fica muito melhor quando assistidos de um folego só.

Invisibles é um excelente documentário, fruto de uma pesquisa profunda nos processos desenvolvidos nas plataformas digitais. Temas como saúde do trabalhador; sofrimentos psíquicos; controle e manipulação de dados; precárias condições de trabalho; e formas de luta e resistência fazem parte do enredo desenvolvido nos 04 capítulos.

Algumas questões fervilham com as revelações feitas pelos(as) entrevistados(as), particularmente aquelas informações acerca do controle e manipulação de dados. Não é de hoje que tenho conhecimento das armadilhas presentes nos contratos de condições de uso, que quase sempre não são lidos, e lá estão colocadas a política de privacidade e de uso de dados. Me recordo que há mais ou menos 15 anos, num evento de estudantes de comunicação social, o tema foi abordado e já naquele momento me deixou espantado. No entanto, reconheço que não produziu mudança significativa do meu comportamento, visto que na maioria dos aplicativos dos smartphone – senão em todos – a recusa aos termos implica a impossibilidade de uso do respectivo aplicativo. Contudo, algo que pode ser facilmente observado é o fato de os e-mails e mesmo aplicativos de busca oferecerem propaganda relacionada aos assuntos, antes mesmo de serem pesquisados. 

Os recursos de voz dos smartphones, algo que nós temos controle e podemos desabilitar, escancaram nossas vidas fornecendo informações e traçando perfis de consumo e comportamento, que acabam sendo ofertadas para empresas. O documentário retrata bem essa questão ao entrevistar trabalhadores(as) responsáveis em escutar centenas de milhares de gravações dos áudios captados pelos celulares, que de acordo com os(as) entrevistados(as), são coletadas aleatoriamente e por iniciativa das empresas sem que o usuário seja informado. A manipulação de comportamento via coleta de dados e elaboração de perfis a partir do Facebook já foi objeto de denúncias, que estão relacionadas com a manipulação de processos eleitorais em diversas partes do mundo, incluindo a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro, que fazem parte do escândalo que envolveu a Cambridge Analytica – recomendo para quem ainda não assistiu o filme Privacidade hackeada.   

Retomando a questão central retratada nos capítulos da série documental Invisibles, o trabalho digital, considero importante destacar a questão da saúde do trabalhador debatida na série. Os sofrimentos psíquicos causados nos operadores contratados por empresas terceirizadas para assumirem a tarefa de moderador de conteúdo foi um elemento que me chamou bastante atenção. Os relatos dão conta de adoecimento, fruto da atividade desenvolvida por operadores responsáveis em controlar o conteúdos das publicações no Facebook. O material que é analisado vai desde pornografia, assédio até violência. Adoecimento mental como ansiedade e depressão são frequentes entre estes trabalhadores, que não possuem qualquer tipo de garantias no campo da proteção social, o que significa inclusive ausência de acompanhamento terapêutico.

Muitos são os aspectos relacionados às condições de trabalho, para além da completa ausência de mecanismos de proteção social, pois os contratos estabelecidos são por um lado rico em exigências e por outro pobres do ponto de vista de elementos garantidores de direitos. Uma exigência comum é o sigilo absoluto tanto sobre o conteúdo do trabalho desenvolvido, como, em alguns casos, sobre a própria existência do trabalho digital. As remunerações são baixíssimas e em alguns casos as empresas buscam operadores que desenvolvem suas atividades de forma remota, nos seus domicílios, sendo inclusive obrigados a manter a estabilidade do fornecimento da energia elétrica. Um outro elemento destacado, que é de fácil identificação entre nós, portanto não se trata de nenhuma grande novidade, é o fato de todos os meios necessários para o desenvolvimento da atividade – direta ou indiretamente relacionado às plataformas – computadores, smartphones, tablets, etc. são de responsabilidade dos(as) trabalhadores(as).

As questões tratadas no documentário são múltiplas e permitem uma aproximação à realidade das atividades desenvolvidas nas plataformas ou por empresas que abrangem o universo do trabalho digital. Um elemento da máxima importância que merece maior investigação e análise, mas que certamente são provocações pertinentes explicitadas nas entrevistas, é o trabalho não pago que envolve o uso dos aplicativos. Não há dúvida de que neste ambiente a exploração é um elemento fundante, aliás nunca é demasiado lembrar que a exploração está na estrutura do capitalismo e que a superação da primeira depende da superação do segundo. Num período em que ideologias como o empreendedorismo conquistam corações e mentes de milhares de trabalhadores é fundamental reafirmar que o capital é engenhoso em subordinar e subsumir o trabalho. Ainda sobre o trabalho não pago, há um destaque para o fato de as empresas de plataformas e mesmo os diversos aplicativos de smartphones alimentarem com informações várias empresas que são transformadas em mercadorias para serem negociadas. O trajeto realizado pelo trabalhador de aplicativo de entrega ou de passageiro fornece informações que, após serem processadas, serem comercializadas, isso em larga medida pelo georreferenciamento, função presente em inúmeros aplicativos e dispositivos; acrescente a esse processo de mercantilização das informações produzidas pelos usuários, o mercado que envolve as marcações e hashtags.

No documentário por vezes a questão dos algoritmos é problematizada, inclusive com o destaque para o fato de que, segundo as pessoas entrevistadas, há um enorme número de trabalhadores(as) precarizados(as), com baixíssima remuneração e com vínculos altamente precarizados, que são responsáveis em alimentar sistemas, oferecendo informações e desempenhando ações que impulsionam os algoritmos. Este elemento é tão importante que num dos diálogos um dos entrevistados afirma, os algoritmos somos nós!

Apenas duas últimas avaliações que gostaria de socializar com vocês. Tive uma ligeira impressão que ao se aproximar o final do documentário francês, pois há uma tendência que se assemelha às ideias dos socialistas utópicos. O socialismo utópico de cariz proudhoniano, particularmente quando tratam das alternativas de luta e resistência. Tal suspeita foi confirmada realmente ao final, quando o editor responsável afirmar que, na sua avaliação, princípios anarquistas estão presentes na concepção das plataformas.  Não quero aqui jogar um balde de água fria, ao contrário, minha intenção é estimular que a série documental seja amplamente assistida. Mas não poderia deixar de comentar que, a despeito de iniciativas com relativo êxito de plataformas criadas e geridas por cooperativas de trabalhadores, a disputa neste campo é completamente desigual e além disso não se pode subestimar o alcance do processo de subsunção do trabalho ao capital. Por fim, os relatos de experiências de organização dos(as) trabalhadores(as) de aplicativos e demais trabalhadores(as) envolvidas nos espaços de trabalho digital são importantíssimos. A constituição de sindicatos, ou mesmo a criação de estruturas nas centrais sindicais já existentes, que permitam garantir espaços e mecanismos de organização, seja nas tradicionais organizações do trabalho ou com o surgimento de novas formas associativas, são sinais muito importantes. 

Encerro convocando todos(as) a prestarem nossa solidariedade de classe ao movimento de trabalhadores de aplicativos, particularmente para fortalecerem às lutas e a resistência, deste que também estão arriscando suas vidas durante a pandemia. Dia 01 de julho está sendo convocada uma paralisação destes trabalhadores(as).

 

*Prof. do Departamento de Serviço Social da UFPB