Pular para o conteúdo
BRASIL

A geografia dos aplicativos: precarização local, lucro global

Caetano Branco, de Porto Alegre, RS
PSOL Niterói

Manifestação no dia 01 de julho

UM PROBLEMA GLOBAL

No dia 1º de julho ocorre uma grande greve nacional contra a precarização das condições de trabalho dos entregadores por aplicativo no Brasil. Entretanto, cabe ressaltar que a precarização destes trabalhadores não se dá exclusivamente no Brasil, tampouco apenas nos países subdesenvolvidos, é uma realidade latente em todos os países inseridos no capitalismo globalizado, ainda que de modos particulares em cada região. Nos países desenvolvidos, por exemplo, os trabalhadores precarizados, em sua maioria, são representados pelos imigrantes. É interessante, neste contexto, que seja feita uma análise considerando os fatores locais que levam a essa mobilização no Brasil, mas sem esquecer que estamos inseridos em um cenário global no que se refere ao surgimento e desenvolvimento destas “novas” formas de trabalho.

Para entender os fatores locais, primeiro precisamos entender o contexto urbano capitalista no qual estamos inseridos enquanto país subdesenvolvido e periférico. Estamos falando de um país pobre, com atuais indicies de desemprego altíssimos e uma crise política que parece sem fim. Esse contexto somado a enorme desigualdade social também abre margem para discursos que visam cada vez mais precarizar as relações de trabalho maquiados como formas de expandir as ofertas de empregos. O povo, sem perspectiva de melhora e em situação de desespero pela sobrevivência, muitas vezes compra este discurso. Portanto é importante pensarmos a pobreza, como consequência da desigualdade social, geradora de um enorme exército reserva em tempos de crise (mas não só), como um fator central para o avanço deste processo de uberização das relações de trabalho.

A definição de pobreza deve ir além dessa pesquisa estatística para situar o homem na sociedade global à qual pertence, porquanto a pobreza não é apenas uma categoria econômica, mas também uma categoria política acima de tudo. Estamos lidando com um problema social. (SANTOS, 2009, p.18)

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E AS FALSAS OPORTUNIDADES

A ascensão das empresas multinacionais de aplicativos de transporte e entregas no Brasil coincidiu também com o período pós golpe de 2016 onde o governo de Michel Temer iniciou o processo de desmonte da CLT e aprovação da terceirização irrestrita, que foi intensificado posteriormente pelo governo Bolsonaro. A questão ideológica e a disputa de narrativas quanto a esse desmonte e desregulamentação das leis também é um fator importante de análise pois muitas vezes é apresentado pela direita como “modernização”, “empreendedorismo”, “oportunidades”, ou seja, relacionando o conceito de moderno enquanto liberal e desregulamentado, colocando a culpa do desemprego no próprio trabalhador que teria muitos direitos ao invés de culpar a crise estrutural do capitalismo. 

Há muitas maneiras de esquivar-se ao problema da pobreza, seja tratando o assunto como uma questão isolada, seja ignorando que a sociedade é dividida em classes. […] Já não se afirmou que o pobre pode melhorar sua situação através do esforço individual, da iniciativa pessoal ou da educação? É dessa maneira que se alimenta a esperança da mobilidade ascendente, justificando, ao mesmo tempo, a sociedade competitiva. (SANTOS, 2009, p.20-21)

É justamente no contexto de crise do capitalismo que ocorre a intensificação da exploração dos países subdesenvolvidos na economia global. Em escala local, acontece a precarização das relações de trabalho. O meio técnico-científico-informacional se desenvolve nos países desenvolvidos mas necessita dos países subdesenvolvidos para se sustentar.

O espaço sempre foi associado ao tempo. E hoje, na acentuação de diferentes espaços-tempos reside uma das raízes da geopolítica contemporânea. As redes são desenvolvidas nos países ricos, nos centros do poder, onde o avanço tecnológico é maior e a circulação planetária permite que se selecionem territórios para investimentos, seleção que depende também das potencialidades dos próprios territórios. (BECKER, 2005, p.71)

Assim como antes se fez necessária a exploração dos recursos naturais nas colônias para acumulação primitiva de capital nas metrópoles, assim como antes as grandes empresas multinacionais instalaram suas fábricas nos países de terceiro mundo onde houvessem maior isenção fiscal e falta de leis trabalhistas, hoje, as empresas de aplicativos do capitalismo informacional atuam nos países subdesenvolvidos. O meio técnico está presente nos países desenvolvidos, mas a mão de obra e as maiores margens de lucro estão disponíveis nos países subdesenvolvidos. Portanto, falar em liberalismo e “flexibilização” das leis trabalhistas enquanto sinônimo de modernização é uma falácia. O que ocorre de fato é a retirada de direitos por interesses econômicos externos e que de nada contribuirão para a economia local, pelo contrário, ajudarão num processo de trabalho não formal (formal e informal aqui são terminologias questionáveis e serão abordadas mais adiante) e também com a fuga de capital para fora do país através das multinacionais de tecnologia.

DIALÉTICA DOS CIRCUITOS DA ECONOMIA

Os trabalhadores que prestam serviços através das plataformas de aplicativos multinacionais, atuam em escala local, naquilo que Milton Santos define como circuito inferior da economia. Este circuito inferior 

é formado de atividades de pequena escala, servindo, principalmente, à população pobre ao contrário do que ocorre no circuito superior, essas atividades estão profundamente implantadas dentro da cidade, usufruindo de um relacionamento privilegiado com a sua região. (SANTOS, 2009, p.43)

O circuito superior seria, portanto, em oposição, aquele relacionado diretamente com a modernização tecnológica, corresponde ao comércio de exportação, indústria urbana moderna, comércio e serviços modernos. Ambos circuitos são interdependentes, o circuito inferior depende dos capitais e tecnologias do circuito superior. Este, por sua vez, depende da relação regional diretamente ligada aos territórios e dos rendimentos gerados pelo circuito inferior para fazer extrair, girar e acumular seu capital.

Pode-se afirmar imediatamente que a diferença fundamental entre as atividades dos circuitos superior e inferior está nas diferenças de capital, tecnologia e organização, entre outras. O circuito superior usa em geral uma tecnologia “capital intensivo” importada, ao passo que no circuito inferior a tecnologia é, em grande parte, baseada no uso da mão de obra numerosa. (SANTOS, 2009, p.49)

Assim, as multinacionais provenientes do circuito superior da economia introduzem suas plataformas tecnológicas e virtuais (aplicativos) no território brasileiro e usufruem dos bens privados dos indivíduos como carro, moto, bicicleta, etc, e infraestrutura pública como ruas, sistema de trânsito, sistema de saúde (caso de acidentes) etc. Isso tudo sem investir um único centavo para a manutenção destes. Por se esconder atrás de uma proposta de economia de plataformas virtuais, ou seja, são o intermédio entre o “empreendedor” ou então “autônomo”, ou ainda pior “colaborador da plataforma”, e os clientes, não se responsabilizam por nenhum vínculo empregatício ou recebem qualquer tipo de taxação para manutenção das vias da cidade, por exemplo. “[…] o Uber tornou evidente tendências mundiais do mercado de trabalho, que envolvem não só a transformação do trabalhador em microempreendedor, mas também do trabalhador em trabalhador amador produtivo […]” (ABÍLIO, 2017). Afinal, o IPVA, revisão e manutenção dos carros e motos seguem sendo pagos pelo proprietário. Desta forma, empresas gigantes que atuam no ramo de transporte no mundo, como a Uber, não são donas de nenhum veículo, as empresas gigantes que atuam no gênero alimentício, como iFood, não possuem nenhum restaurante. Nesta dinâmica é que fica exemplificado a interdependência entre os dois circuitos da economia. Essa relação é dialética a partir do ponto que as características do inferior são explicadas pela economia como um todo, onde o superior está em posição dominante. Por isso é que os dois circuitos podem ser considerados subsistemas dentro do sistema urbano, sendo opostos, mas complementares (SANTOS, 2009).

A eliminação da situação de dependência do circuito inferior em relação ao circuito superior só será possível com uma mudança estrutural. O ideal, evidentemente, seria que “o circuito inferior se tornasse menos inferior, mas isso só poderia ocorrer se o circuito superior se tornasse menos superior”. Do contrário, a situação de dependência continuará e até se agravará, embora sob formas diferentes. (SANTOS, 2009, p.71)

INFORMALIDADE?

Por muitas vezes ouvimos o termo de “trabalho informal” ou então de “informalidade” quando a temática da uberização das relações de trabalho é posta em debate. Contudo, seria conceitualmente um equívoco aceitar a existência de um setor informal da economia após os apontamentos anteriores sobre os circuitos interdependentes da economia. Não tem como haver um setor informal dentro de uma lógica de sociedade globalizada e interligada pelas redes do capitalismo. É possível falar em precariado, mas informalidade não. Aplicado a uma sociedade, a noção de informalidade de um dos dois setores significaria que essa sociedade não opera de forma global (SANTOS, 2009). É nessa caracterização que retomamos Bertha Becker que ao falar sobre a circulação planetária das redes diz que 

Ocorre que ao se expandirem e sustentarem as riquezas circulante, financeira e informacional, as redes se socializam. E essa socialização está gerando movimentos sociais importantes, os quais também tendem a se transnacionalizarem. (BECKER, 2005, p.71)

Portanto, há organização coletiva através de movimentos e até sindicatos, que neste momento buscam a unidade dos trabalhadores de entrega por aplicativo para lutar contra a precarização de seu trabalho, reivindicando inclusive a não informalidade e exigindo direitos trabalhistas como outras categorias tem (apesar das constantes tentativas de suprimi-los). Aquilo que foi vendido num primeiro momento como modernidade, como possibilidade de ser dono do seu próprio trabalho, agora, se mostrou um museu de grandes novidades como diria Cazuza. Não passa de novas máscaras para a velha exploração do capital para com o trabalhador, agora ainda mais cruel e sorrateira.

David Harvey ao tratar da organização na dispersão, João Bernardo ao demonstrar que terceirizar a produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam evidente que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital ou qualquer tipo de democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o que vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho e transferência de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez mais difíceis de mapear. (ABÍLIO, 2017)

É GREVE!

Em síntese, o processo de uberização das relações de trabalho com a inserção das empresas de tecnologias com seus aplicativos de transporte e serviços no território dos países subdesenvolvidos, aqui com certo destaque para a conjuntura brasileira, tem por essência no circuito inferior da economia difundir o modo capitalista de produção entre a população através do consumo, e absorver para o circuito superior o capital através da máquina financeira de produção e consumo. E por esse motivo jamais podemos aceitar que este modo de trabalho se perpetue, ou até mesmo cair nas armadilhas de achar que um setor uberizado pode apresentar saídas para a crise do desemprego em massa. Esse raciocínio seria como a frase de Joan Robinson, citado por Milton Santos (p.71) que diz “a desgraça de ser explorado por capitalistas não é nada comparada à desgraça de não ser explorado de nenhuma maneira”. Uma mobilização, no Brasil, da categoria dos entregadores por aplicativo não só representará um fortalecimento da luta contra esse sistema predatório de exploração da força de trabalho no país como também será muito representativo quali e quantitativamente para o contexto global. É de certa forma “esperado” que estás mobilizações aconteçam com mais força nos países subdesenvolvidos, uma vez que são os mais atingidos pelas políticas de austeridade devido às pressões externas e também por apresentarem uma massa maior de trabalhadores que precisam se sujeitar à esse modelo precarizado em uma conjuntura de crise global do capitalismo. Contudo, o Brasil ainda se apresenta frente ao cenário mundial como uma iminente potência regional na América, e em especial na América do Sul, sendo assim a mobilização aqui fortalece a luta internacional contra a precarização do trabalho e também pelo direito à dignidade humana.

Pela manutenção dos direitos trabalhistas, pela dignidade humana!

Todo apoio à greve dos entregadores de aplicativo!

 

Referências bibliográficas

ABÍLIO, Ludmila Costek: Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 2017. Disponível em: . Acesso em: 29/06/2020.

BECKER, Becker K.: Geopolítica da Amazônia. São Paulo: 2005.

SANTOS, Milton: Pobreza Urbana. São Paulo: Edusp, 2009.

TOZI, Fábio: O território brasileiro como recurso das plataformas digitais de transporte por aplicativos. São Paulo: XIII ENANPEGE A Geografia brasileira na ciência-mundo, 2019.