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BRASIL

O futebol contra o fascismo

Pedro Brandão*, de Belém, PA
Bahia Antifascista

A utilização do futebol como instrumento de alienação das massas não é nenhuma novidade quando o esporte é tema de debates políticos. Entre os que dizem não gostar de política e amar o futebol, há um tolo clichê que diz que não se deve misturar futebol com política. Um grande engano! Pois a história nos mostra que futebol é política, assim como todos os outros assuntos na sociedade. Todo ato é um ato político, já dizia aquela antiga frase.

Historicamente, inúmeros acontecimentos nos confirmam a afirmação de que o futebol foi, e ainda é, instrumento de alienação e uma grande arma de opressão desde suas origens. A própria versão oficial da chegada do Futebol ao Brasil com a “Tese Miller”[i] é um dos exemplos de como a história contada em uma versão hegemônica esconde a sua verdadeira face. Entretanto, precisamos compreender, a partir da história, que muito além de um instrumento de opressão, o esporte mais popular do mundo também é instrumento de resistência das minorias.

O futebol origina-se oficialmente na Inglaterra, em um contexto pós-revolução industrial, na qual a classe burguesa passa a usufruir do ócio, privilégio de quem não trabalhava durante muitas horas nas insalubres fábricas inglesas. Sendo, portanto, acessado por uma minoria.

É neste contexto também que muitos jovens de famílias bastados do Brasil são enviados para a Europa em busca de uma educação (que também era privilégio para poucos). Nos colégios ingleses, conheciam o Football Association[ii] e ao retornarem ao Brasil, traziam na bagagem elementos da cultura da burguesia inglesa. O futebol era uma delas, como conta a “Tese Miller”.

Essa tese, até hoje sustentada, foi disseminada para exaltar uma suposta origem nobre do esporte no país. Porém, muitos sabiam que por aqui já se jogava o Esporte da bola no pé, mas silenciaram-se diante da versão oficialmente aceita.

O futebol logo mostrou as desigualdades de uma sociedade de classes, pois, ao espalhar-se pelo país, paradoxalmente classificava como nobres e distintos os membros das elites que o praticavam e, ao mesmo tempo, como desocupados os membros da classe trabalhadora. No início do século XX, um aviso colocado nos estádios paulistas, onde se jogavam as partidas de futebol da liga de São Paulo, avisava que era expressamente proibido vaiar ou xingar os jogadores que eram membros das “melhores” famílias paulistas.

Quase mesma época, ao relatar a inauguração de um posto de saúde com a presença do presidente da república, um jornal de grande circulação afirma que o primeiro atendimento da ambulância é para um “vagabundo” que jogava futebol na periferia em um campeonato paralelo, com clubes não eram aceitos pela liga mas que não deixaram de praticar o esporte, que já tinha seus “donos” que não aceitavam pobres ou negros dividindo seus espaços.

Ao tentearem entrar nesse espaço, os negros têm como resposta a feroz reação dos adeptos de um esporte exclusivamente branco. Embora a Ponte Preta desde o ano de 1900 e o Bangu em 1905 já tivessem admitido jogadores negros em suas equipes, ainda era um espaço predominantemente branco. A invenção do drible é um grande exemplo da resistência dos negros às agressões que sofriam dentro de campo. Sem poder revidar ou reclamar, a forma que os brancos tinham para mostrar onde era o seu devido lugar eram as travas das chuteiras, substituindo o açoite.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, clubes eram fundados por operários das fábricas. O Corinthians e o Bangu são bons exemplos disso. Em alguns clubes em que operários eram chamados para completar as equipes dos funcionários do escalão mais alto, negociações de carga-horária de trabalho eram barganhadas em troca do talento de jogadores operários.

Apesar de várias formas de resistência e de ocupação de espaço das minorias no futebol, a face mais perversa do preconceito e do seu uso como forma de opressão surge quando ele se consolida como esporte mundial. Na Copa do Mundo de 1934, Benito Mussolini transforma o evento na maior propaganda do Fascismo, interferindo diretamente desde a escolha da Itália como sede do mundial, passando por pressões psicológicas e ameaças aos jogadores de sua seleção e de países adversários, com decisões estranhas tomadas pela arbitragem até o resultado final. Era “a vitória ou a Morte” para o Duce[iii] e, de fato o título da Itália foi a vitória do fascismo. Tudo para mostrar a superioridade da raça e o poder de um estado totalitário.

Em terras brasileiras Não foi diferente, o regime militar utilizou-se do futebol como promotor do patriotismo e do slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, tornando a seleção de futebol e sua camisa “canarinha” um símbolo nacional até os dias atuais. Os horrores dos porões da ditadura eram encobertos pelo sucesso da seleção tricampeã do mundo. Mas, assim como os movimentos sociais resistiam ao regime, o futebol mais uma vez demonstrava resistência, por meio da criação de novos modelos de torcidas organizadas. Diferentemente das que já existiam anteriormente, essas associação participavam de atividades políticas que envolviam os clubes.

Um de seus mais conhecidos marcos foi o apoio à “Democracia corinthiana” durante as década de 1970 e 1980, movimento que reivindicava, inclusive, o direito de jogadores de futebol posicionarem-se politicamente. Nas arquibancadas, a “Gaviões da fiel” ficou marcada pela faixa “anistia ampla, geral e irrestrita” exibida em 1979 durante um jogo pelo campeonato paulista, em manifestação pela libertação de perseguidos políticos pela ditadura.

Em 1984, uma torcida do Flamengo exibiu faixas contra a candidatura de Paulo Maluf na época do PDS, à presidência do Brasil nas eleições indiretas. Mais recentemente, na Bahia, torcedores e o próprio Esporte Clube Bahia manifestaram-se pela demarcação de terras indígenas, o clube criou até um núcleo de ações afirmativas responsável por tratar de causas sociais.

Esses são muitos exemplos de que futebol e política não se separam. Neste 31 de maio de 2020, vimos acontecimentos em São Paulo e no Rio de Janeiro que uniu torcidas rivais em prol da democracia. Embora durante os últimos anos as torcidas organizadas tenham sido relacionadas com a violência nos estádios de futebol, com a própria mídia não dando visibilidade a trabalhos sociais que muitas delas fazem, elas agora ganham destaque por retornar às suas verdadeiras origens como movimentos politizados.

Por todo o Brasil, nos últimos anos torcidas de vários clubes com a denominação de “antifa” (antifascistas) vêm ganhando corpo e estão cada vez mais dispostas a reacender a chama que torna o futebol muito mais do que um entretenimento, revivendo o que nele sempre houve: a resistência das minorias, como mostra o movimento de continuidade e descontinuidade da história com conquistas e derrotas.

Agora não é mais Corinthians x Palmeiras, Flamengo x Vasco, ou Remo x Paysandu, agora é TODOS CONTRA O FASCISMO!

* Professor substituto da Universidade Federal do Pará (UFPA)

Notas

[i] Versão oficial da chegada do futebol ao Brasil atribuída ao brasileiro filho de ingleses, Charles William Miller. Ele teria sido o primeiro a trazer o esporte, em 1896, na cidade de São Paulo.

[ii] Nome dado ao recém criado esporte com bola.

[iii] Forma como Mussolini era chamado pelos italianos, assim como Hitler era chamado de Fürher pelos alemães.